quarta-feira, 23 de março de 2011

Roleta russa


Respiro. Minha vez. Pego a gélida arma, giro o tambor, encosto na têmpora...


Contemplo o espasmo das minhas poucas ideias. O vazio sorri de mim? Não há mais tempo a ganhar. Não há mais chance. Ao menor ruído minha coragem treme-se toda: basta de esperas. Quando descobrimos que existimos, experimentamos a sensação de um louco maravilhado que surpreende sua própria demência e procura no oco do cérebro um nome em meio ao vazio. Só a rotina nos salva da derrocada que é existir, nos habituamos a viver e vivemos sem questionar nada nem ninguém, o garfo, a faca, a caneta, o copo e todos os outros objetos nos salvam do buraco negro (e por que não buraco branco?) dos nossos dias. Os objetos existem para que possamos ser.

Conformado, finjo viver, imito bem a maioria, respeito as regras do jogo, tenho horror a tudo que é original. Resignado como um robô: simulo fervor e dou risada de tudo secretamente; submeto-me às convenções e odeio às escondidas; estou em todos os registros, mas não tenho casa no tempo; salvar o corpo, o único e verdadeiro lado da moeda, quando todos juram que perdê-lo é abrir um caminho para o paraíso. Desprezar tudo é assumir um ar de dignidade perfeita, ser aquele que leva as ovelhas para o precipício e se joga também, cumprindo sua tarefa de falso vivente. Camuflar a ruína fingindo prosperidade? O inferno não tem boas maneiras, o inferno vive-se diariamente, sem elegância, e isso quem disse foi Camus.

Aceito a vida por cortesia, no bolso sempre uma revolta perpétua, sublime fonte de ilusão. As fases da nossa ruína ao sistema: aos vinte anos somos todo revolta; depois isso cansa: "a pose trágica só corresponde à puberdade prolongada e ridícula". Logo descobrimos o falso bem-estar da conquista. Nos preparamos para que no espaço que brilha num átimo de tempo explodirmos num não-ser. Não-somos e achamos que temos todo o mundo. Desse poder às avessas prendemos correntes em nossos tornozelos e precisamos acatar às ordens de cima, pronto, somos agora um arquétipo do infortúnio; felizes desgraçados. Todo o tempo que nos resta depois passamos tentando corrigir nosso pecado original, o de deixarmos de acreditar no poder da diferença. A igualdade nos joga no fosso úmido da ordem. Unidos seguimos para o grande moedor de corpos, crendo piamente que fazendo assim salvamos a alma (a metafísica é o maior vilão do nosso tempo).

Para tolerar o falso da vida, necessitamos de uma dose gigantesca de mistificação. Somos todos impostores e nos suportamos, estoicamente, uns aos outros. Quem não aceita mentir vê a terra fugir sob seus pés, e por isso mentimos com método; nossa genética obriga a falsidade, pois a verdade se oculta na negação, na graça da veneração pública e da difamação camuflada. Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas verdadeiras opiniões sobre eles, todas as grandes falsidades do mundo seriam riscados para sempre dos dicionários; e se tivéssemos a coragem de olhar cara a cara as dúvidas que concebemos silenciosamente sobre nós mesmos, a vergonha tomaria conta de nós. O dissimular arrasta tudo o que vive. Só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres. Não há como precisar o real das coisas, o real arde no cérebro, por isso o conforto que traz um nada agradável: nossa constituição só tolera uma certa dose de verdade…

Respiro, minha vez outra vez, giro o tambor, tremo, cerro os olhos...



# releitura de: e. m. cioran


a.p.

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