quinta-feira, 17 de março de 2011

Dickens - o primeiro astro pop



Charles John Huffan Dickens nasceu em Portsmouth, Inglaterra, a 7 de fevereiro de 1812, era filho de Mr. John Dickens, modesto empregado da Tesouraria da Frota. Seu pai era a um tempo encantador e temível; encantador porque era alegre, porque contava bem histórias, porque recebia amavelmente aos seus amigos; temível porque gastava sempre mais do que ganhava e submergia com uma curiosa mescla de indiferença, desespero e leviandade, em um oceano de dívidas. A mãe (Elizabeth Barrow) parece que foi um ser medíocre, uma dessas mulheres cujos pensamentos ruidosos e vãos, voam em todas as direções, como zangões aloucados. O filho não tardou a julgá-la severamente. O casal Dickens tinha oito filhos, sua vida não era fácil. Sem embargo, as pequenas impressões do menino Charles foram deliciosas. As histórias contadas por um pai tão divertido, gravaram-se na cera assombrosamente maleável desse espírito. Era uma bela criança de cabelos ondulados, olhos azuis e, além disso, um comediante nato. Possuía um talento extraordinário para cantar e recitar. O pai sabia transformar o menor acontecimento familiar em uma festa, para a qual preparava, assobiando, um ponche admirável à base de casca de limão. Com frequência levava o filho em excursões pelo campo; contava-lhe lendas, as quais entusiasmavam o menino.


Charles nasceu em 1812, e tinha nove anos quando o confiaram a um professor, a quem logo encantaram os progressos de seu aluno. Mas os verdadeiros mestres estavam noutra parte. Na água-furtada da casa de John Dickens, havia um montão de livros que ninguém lia. Charles deslizava sobre os telhados e devorava "Robinson Crusoé", Gil Blas, Fielding, "As Mil e uma Noites", coleções inteiras de periódicos e, sobretudo, "Dom Quixote", que lhe agradava de um modo particular. Desgraçadamente, as dívidas do pai iam subindo. Foi preciso deixar Chathan, e transladar-se para Londres. Mas Londres não foi favorável aos Dickens. Faltou o pão. As crianças choravam. Na casa não se viam mais que credores, carregando os últimos móveis. Por fim, Mr. Dickens foi detido e levado, por dívidas, para a prisão de Marshalsea. Charles sente-se a um tempo assustado, comovido e envergonhado, terrivelmente envergonhado. Só em casa, com uma mãe incapaz de ajudá-lo, deve fazer tudo; engraxa os sapatos de toda a família, cuida de seus irmãos e irmãs, faz as compras da casa, trata de vender os poucos objetos que restam e, quando tem um momento livre, vai à prisão ver o pai. Agora é o dono da casa, deve procurar ganhar a vida e, aos onze anos, entra de aprendiz na loja de uns parentes afastados, os Lamert, fabricantes de betume. Seu trabalho consiste em cobrir os postes de betume com papel parafinado, logo com papel azul, atá-los e pregar etiquetas em cada um deles. Trabalha em um sótão, com rapazes ignorantes, vulgares, e ganha seis shillings semanais. Depois de algum tempo, muito hábil no trabalho, seus patrões julgam oportuno exibi-lo aos transeuntes. Põem-no em uma vitrine, e as meninas e os rapazotes do bairro, comendo fatias de pão com geléia, acodem a colar seus narizes contra o vidro, para verem-no trabalhar.

Foram estes, tempos de humilhação; as feridas que lhe causaram jamais cicatrizaram. Mas logo faltou com que pagar o senhorio, e então, toda a família – mãe e filhos – foi viver na prisão por dívidas, pois nessa extraordinária prisão podia-se alugar quartos para neles alojar a família. Charles foi o único que não viveu nela, a fim de obter alguns recursos para os seus. Morava num minúsculo quarto, trabalha na fábrica de betume; no domingo, ia passar o dia com sua família na prisão. John Dickens recebe uma pequena herança que lhe permitiu sair da prisão, e o menino Charles explicou para o pai como lhe era penoso passar a infância num trabalho estúpido, com companheiros grosseiros, e o quanto ele gostaria de se instruir. Mr. Dickens mandou o filho à casa de Mr. Jones, diretor da Wellington House Academy. Mas Mr. Jones era, por sua vez, ignorante e bruto; durante todo o dia batia violentamente em seus alunos com uma grande bengala. Aí Dickens conheceu outro aspecto da miséria em que estava submersa a infância inglesa, as horríveis escolas. Ficou pouco tempo na escola, pois o dinheiro faltava de novo em casa e foi necessário tornar a empregar-se. Tinha, agora, uma letra excelente e boa ortografia; fizeram-no entrar de aprendiz na casa de um procurador judicial. Ali viu mil facetas da vida; um desfile contínuo de litigantes, e por ser mensageiro, isso o obrigava a andar por todas as ruas de Londres. Em dois anos, adquiriu dessas ruas, de sua miséria e de sua beleza, um prodigioso conhecimento.

John Dickens, vendo a herança esgotar, encontrou trabalho de repórter na Câmara dos Comuns, o que muito agradou Charles, e por 10 shillings e 6 pennies - todas suas economias – comprou um velho tratado de taquigrafia Como Charles era um rapaz de vontade firme e que julgava que “tudo que merece ser feito merece ser bem feito”, logo chegou a excelente taquígrafo. O periódico The True Sun, o contratou como redator parlamentar, função pela qual, recebia cinco guinéus. Para completar sua formação com a qual estaria apto para escrever faltava apenas um amor, e ele veio na forma de Mary Beadnell, filha de um dos banqueiros de Lombard Street, burgueses mais ricos e, provavelmente, mais distintos que os Dickens. Mary era uma coquete, jamais havia pensado em casamento, assim como sua família, mas permitiu-lhe flertar com ela. Os pais confiavam na filha e sabiam que ela era bastante razoável para suspender o jogo a tempo. Não se enganavam. Dickens sofreu muito quando suas visitas à casa dela já não era mais desejadas, ficou infeliz, humilhou-se, mas não pode evitar a ruptura. Mary casou-se e durante vinte anos desapareceu da vida de Dickens. Agora sua grande ambição era escrever, e é esse Charles Dickens, de olhos de aço, que a vida, aos vinte anos entrega às letras.

Aos vinte e dois anos, Dickens escreveu uma breve narrativa, e a depositou na caixa de uma revista. Na semana seguinte, ao comprar o número, teve a satisfação de encontrar nele seu ensaio. Logo publicava uma série em um jornal, o Evening Chronicle, mediante uma retribuição de sete guinéus semanais. São os “sketches”, quadros da vida provinciana e de Londres, que obteve êxito imediato (lançado depois como "Esboços feitos por Boz"). Com o sucesso dos sketches, decidiu escrever livros e abandonar a taquigrafia. Começa a escrever "As aventuras de Mr. Pickwick", em episódios, pois suas novelas publicam-se em capítulos que devem aparecer regularmente cada mês. Nenhum novelista havia trabalhado jamais em tal condição. Quando começou Pickwick, não tinha a menor idéia de como prosseguiria essa obra, e ainda menos, como concluiria. Não havia traçado planos; criava personagens, lançava-os ao mundo e caminhava atrás deles. O primeiro episódio não alcançou grande êxito, o desenhista suicidou-se e, como a venda não fosse muita, pensaram em suspender a publicação. Logo contrataram outro desenhista e decidiram continuá-la. Um reduzido público começou a se dar conta de como eram divertidos Mr. Pickwick e seus amigos, até que no sexto número, Dickens criou um Sancho Pança para Mr. Pickwick, o criado Sam Weller. O êxito foi instantâneo, fulminante. Do primeiro número vendeu-se 400 exemplares; no número 15 e já dele solicitavam 40.000 exemplares. Era um êxito nacional.

Um êxito tão rápido, tão extenso, tem, para um escritor, vantagens e inconvenientes. Uma vantagem é que o homem assim formado evita o humor atroz, o artista irritado; outra vantagem é que, adquirindo confiança em si mesmo, escreve com encantadora liberdade, que, talvez, seja um dos segredos de sua beleza. O inconveniente é que a popularidade proporciona gozos tão deliciosos, que logo o escritor não sacrifica sem dificuldades. Agradar a uma massa de leitores exige uma simplificação tanto mais elementar, quanto mais essa massa cresce. O autor excessivamente lido, pode sentir a tentação de escrever para os piores leitores.

Dickens casou-se durante a publicação de Pickwick. Ele foi convidado para ir na casa de um dos redatores do Morning Chlonicle, Hogarth, que tinha três filhas: a primogênita, Catherine, 20 anos; a segunda, Mary, 16; a terceira, Georgina, era uma menina. Dickens achava-se à vontade nessa família, onde era admirado. Casa-se com Catherine, mas muito se tem dito que Dickens, amava mesmo era Mary, que morre jovem, desgraça ocorrida meses depois do casamento. Morta foi mais perigosa para o lar dos Dickens, do que o fora viva. Dickens serviu-se dela para descrever suas personagens mais comovedoras. Os Dickens reorganizaram a vida, outra irmã de Catherine, Georgina foi viver com eles. Escreve "Oliver Twist" (1836), história de um pequeno órfão, educado primeiramente nessa horrível “work house”, esta Bastilha de indigentes que a nova lei dos pobres havia instituído. As classes populares odiavam as “work house”, e Oliver Twist fez muito para atrair a atenção para os defeitos dessa instituição. Este segundo livro instalou definitivamente Dickens na glória, tinha então 26 anos.

Dickens tinha, então, necessidade de estar continuamente em movimento. Sempre perseguido de perto por um impressor que aguardava seu original, trabalhava pela manhã, do café ao almoço. Pela tarde, eram-lhe necessários prolongados passeios, a pé ou a cavalo, para aliviar a fadiga intelectual e para tornar a tomar contato com esta realidade inglesa que era sua substância. Mas acima de tudo Dickens tinha necessidade de seus passeios noturnos pelas ruas de Londres; era um hábito que conservava desde a infância e que parecia necessário para a continuidade de sua inspiração. Pouco importava o tempo que fizesse, perambulava pelos bairros mais estranhos, captando à passagem uma frase, que anotava, escutava à porta de uma loja, lançando seu olhar sobre o estranho mobiliário de outra, seguindo um par de moleques. Fazendo isso à noite, pela manhã, seu trabalho, era fácil.

Em 1842, com trinta anos, é um dos homens mais célebres do seu tempo, é lido na América tanto quanto na Inglaterra, mas nessa época não havia nenhum tratado para salvaguarda dos direitos autorais, decide assim tentar resolver essa situação. Sua recepção foi entusiástica, aclamaram-no no cais; recebeu tão grande quantidade de cartas que se viu obrigado a contratar um secretário, e os convites foram tão numerosos que foi forçado a anunciar que não aceitaria nenhum. Os admiradores o perseguiam até no quarto e nem na cama podia livrar-se deles. Acabaram por aborrecê-los. Chocavam-no os costumes americanos. Ali, como na Inglaterra, havia observado abusos; a escravidão o indignara; acreditou ser seu dever protestar; Se na conservadora Inglaterra podia-se falar livremente em reformas, na América, país democrático, a liberdade de opinião não existia. Quanto às negociações para a defesa dos direitos autorais, não iam adiante. Respondiam-lhe que era absolutamente impossível para uma editora americana tratar com um autor inglês, pois se o fizesse, já não poderia adaptar as novelas inglesas ao gosto do público americano. Dois meses depois, Dickens volta para a Inglaterra, e publica "Notas Americanas", livro que os americanos acolheram muito mal.

Segue publicando livros, e decide escrever todo ano um conto de Natal. O livro "Martin Chuzzlewit" (1843/44) é um relativo fracasso de vendagem, o que leva Dickens a se mudar da Inglaterra, vai para a Itália e logo depois à França, país de vida barata. Dessa longa permanência no estrangeiro, Dickens trará vários livros, mas livros sobre a Inglaterra. O êxito de "Dombey e Filho" (1847) determinou o regresso de Dickens a Londres. Logo estava comprometido com numerosas ocupações, como sempre lhe atraíra o teatro, começa a fazer representações beneficentes, fazendo tudo, e como obteve grande sucesso, outras sociedades beneficentes solicitaram que ele repetisse a obra em benefício delas. Essa febril agitação quebrantou a sua saúde, sofreu violentas enxaquecas, adoeceu da vista. Mas mesmo assim fundou um jornal o Daily News, que ao fim de três meses abandonou para publicar apenas num suplemento semanal chamado "As Palavras do Lar". Por essa época escreve o primeiro livro em 1ª pessoa, "David Copperfield" (1849), uma clara biografia sua. Esse é o livro mais vendido por Dickens, depois desse livro Dickens é mais que um grande escritor, e ele se entrega às apresentações e a escrever ininterruptamente, "A Casa Soturna" (1852), "A Pequena Dorrit", "Tempos Difíceis". Esse excesso de trabalho malbarata sua força, Dickens agora escreve com menos facilidade, sua impaciência que nunca foi grande, torna-se terrível; não pode estar quieto. Para escrever agora toma notas, faz fichas, coisa que nunca suportou. E o casamento vai de mal a pior, sua mulher não o compreendia, não fora feita para ele; ela por sua vez não era mais feliz que ele. Tiveram dez filhos e viveram 22 anos juntos, e Dickens com belas qualidades e uma grande bondade, era egoísta e nervoso. O artista é um ser o qual é difícil de conviver. Separaram-se em 1858, e enfim, e Dickens sentiu sua vida renascer então e teve um período de paz.

Mas o espírito da agitação não o abandonou, e recomeçaram os pedidos por leituras públicas, em prol de um hospital aqui, de uma sociedade ali, lia sempre muito bem, o que atraiu empresários de espetáculos que lhe falaram dos lucros e lhe propuseram viagens pela Inglaterra. Seus amigos avisaram-lhe que isso não seria bom para sua saúde, tudo em vão. Preparava suas leituras em períodos de calma, decorava seus textos, e ia acrescentando, corrigindo, tornando-os mais teatrais, a fadiga era tanto maior pois punha nessas leituras todo o seu ser. Mesmo assim escreve nesse período "Conto de Duas Cidades" (1859), "Grandes Esperanças" (1861) e "Nosso Amigo Comum" (1864). Ao concluir esse último, fechou contrato pra mais trinta leituras, não dormia, tomava cada noite um soporífero; submerso pelo abuso de drogas em uma espécie de sonolência, devia, na hora da leitura, tomar um estimulante. A América, esquecida dos seus rancores, exigiu novas leituras, Dickens embarcou para a América. Leu em Boston, Filadélfia, Nova York e Washington. Tamanho esforço o extenuou, no navio de regresso, quando o reconheceram, pediram-lhe uma leitura, Dickens respondeu que se fosse obrigado, agrediria o capitão para ser preso.

Na volta para a Inglaterra, preparou uma leitura de despedida, uma seleção de episódios de Oliver Twist, depois começou a escrever o Mistério de Edwin Drood (livro que fica sem concluir), morre aos 58 anos, indiscutivelmente, por excesso de trabalho e desmedida atividade. Imagem perfeita de sua época, Dickens deixou-se dominar pelo mecanismo da vida, como a humanidade inteira, no século XIX. Assim, sem cessar deixado para trás por seus anseios, vive e morre sufocado pelo trabalho, sempre encantado de suas imaginações e contrariado por suas obras; mas é uma vida bela e uma bela morte.



MAUROIS, André. Dickens. Tradução: Rubens Mário Jobim. São Paulo: Dominus, 1963.

WILSON, Edmund. Raízes da Crítica Literária. Tradução de Edílson Alkmim Cunha. Rio de Janeiro: Lidador, 1965.

 
s.e.s.

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