sábado, 19 de dezembro de 2009

Utopia de um homem que está cansado


Vivemos o tempo dos fenômenos anabolizados pela Internet, uma era torpedeada via Google. Novos Michaels estão sendo gestados em fábricas de fundo de quintal. Só não serão melhores, que o péssimo original, pois estrelas precisam de lendas e mitos pessoais para os engrandecer e isso demanda tempo. Tempo é o que não temos hoje. Vivemos para ser bombardeado pela próxima grande atração que durará o suficiente até que outra a supere. E assim ocorre uma substituição sem fim, numa redundância sufocante. Como músicas que baixamos aos montes e nem nos damos ao trabalho de prestar atenção de verdade, pois sempre tem uma novidade novinha em folha clamando por atenção. A voracidade e o péssimo gosto dos fregueses de novidades impressiona. Se é para ficar linkado em algo, que seja sempre aquele que se expõe mais e se joga sem medo: uma princesa Diana entre ferros retorcidos; um Bush desviando de sapatos. Nosso desejo pelo volátil é imenso. Adoramos vozes belas em invólucros esquisitos, é contra tudo o que crescemos vendo, e é o novo da estação que nós sempre queremos. Sendo estação o sucesso do dia, quiçá, da semana. Balões prateados flutuando ao encontro dos nossos desejos (ou os desejos da mídia e dos seus vampiros).


Mas sempre existirá os rebeldes. Sorrio para esses minúsculos agrupamentos de plantão. Nossos neo-hippies-passadistas. Sempre teremos em meio a toda unanimidade, focos de resistência inermes. Niilistas de fachada, fingindo ser contra tudo e todos. Nada mais fake que grupelhos que usam cabelos mau penteados propositadamente; tatuagens; a roupa que não está na moda; a camiseta do Che. Novos bandos para substituir os de antes: punks, góticos, hippies, nerds, indies, metaleiros. São a resistência ao irreversível. São os anti-tudo da nova era. Abandonados no seu córner, sem adversário para lutar: quem liga pra eles?. "Não, eu não tenho orkut, nem facebook, e odeio msn", significa dizer como em um ontem não tão longínquo: "eu odeio a sociedade, por isso moramos aqui, nessa comunidade, integrados com a natureza, livres da opressão do sistema". Bela inutilidade.

O mundo dá mais voltas que conseguimos acompanhar. Celular sem bateria; um dia sem msn; uns minutos sem trocar e-mails ou torpedos; impossibilidade de baixar mp3s; melhor o Inferno de Dante, diriam não só os jovens, mas também as crianças, os de meia-idade; os idosos. Como imaginar a vida sem internet? Minha mãe esperando na janela meu pai chegar, enquanto cuidava das roupas, dos filhos pequenos, matava uma galinha, arrancava uma cenoura do chão. Minha mãe não conheceu a internet, feliz dela? Creio que não. Imagino ela hoje, ainda esperando meu pai chegar, conversando com seus filhos e netos em São Paulo, com seus filhos e netos em Cuiabá, com seus filhos, netos, bisnetos, irmãs em Campo Grande, ela, com certeza, se sentiria bem mais completa se tivesse tido a oportunidade de algo tão futurista.

Uma vida bucólica como era da minha mãe, será, num futuro próximo, um grande hit. Fazendas ecológicas, em que o contato com a natureza, liberdade, vagarosidade, será o tradicional em voga. Serão as sacristias da modernidade galopante. Templos em que se oficiará as novas missas. Computadores ultra-high-techs, laptops mega-powers, celulares-câmeras 24 horas online, mp20, tudo desligado. Rede, só as que dormirão sonos reparadores os visitantes ilustres, ou melhor, os viciados da modernidade, ou seja, quase todo mundo.

Outra tradição de um futuro próximo será o se doar. Ser ou estar em ONGs fará toda a diferença. Dos bagres mandis do rio Paraguai aos moradores do mangue da Polinésia. Das Genis dos becos ou as de luxo às pessoas que nunca passaram num concurso público. Dos gnomos e fadas aos políticos anônimos. Todo mundo terá alguém pra chamar de seu. Algo como um bolsa-família monumental. Doar R$ 7,00 para o Criança Esperança que nada. Um mundo mais glorioso será quando todos, tradicionalmente, além da sua jornada de trabalho, partilharem de leituras de livros para cegos analfabetos. Oh, o mundo estará melhor assim? É claro, mas quem não gostará muito serão os totalitários de esquerda que perderão um nicho do seu mercado, no vale-tudo pelo social.

O Carnaval vai sobreviver. Ele, que não é mais o tradicional que conhecemos, mas vai viver e mostrar mulatas ainda rebolando quase sem roupas; celebridades com a pele pintada; comunidades em transe. O carnaval ainda vai ser algo que chamará a atenção do mundo, pois, nós somos o país do futuro, do samba, do futebol, da banana, do pré-sal e de todos os clichês possíveis, não seria justo a maior festa pagã que temos sucumbir assim assim. Que acabe o futebol, essa farra de obtusos desmilinguidos, correndo atrás de uma bola em arenas de concreto e gramados verdes como um pasto, tá, melhor não também, precisamos de toda distração possível para o povo (esse ente infeliz que sofre e sorri ao mesmo tempo que tem seus sentimentos usados pelo bando da hora).

Manteremos outras tradições. Aqui não aprenderemos a tomar o chá das cinco londrino, mas salvaremos as que mais nos representam. Pão com mortadela. Casamento na Igreja. Sentar num bar para jogar conversa fora. Festa de debutantes. Café com pão de queijo. Churrasco no fim de semana. Show caipira em festa agro. Pudim de padaria. Trote aos calouros. Banda de escola. Assistir novelas. Postar o novíssimo e revolucionário texto, que não vai ser lido por quase ninguém. Manteremos muitas das nossas tradições: da cidade, do estado, do país, pois somos saudosistas de plantão e nada como uma festa junina pra alegrar um espírito.

Já dizia um ilustre escritor: "modernos são móveis velhos e neuroses novas", e clássico o que é? Hoje é tudo que tenha um mix de velho com um élan irrepreensível de novidade. Livros velhos, fotos velhas, fatos velhos, filmes velhos. Mortos famosos. Mortes antigas. Gênios reais e do marketing pessoal. Coisas não tão vistas mas que se materializam e assombram a todos; isso é o clássico de hoje. Mas clássico mesmo num futuro próximo será tudo aquilo que conseguir burlar o tempo atual - eis o grande senhor do mundo: o Tempo, será ele o Deus tão procurado? Aquele que sobreviver à ditadura do já será o clássico do futuro. Quem sobreviverá? Twitter? Kaká? Fast food? Kuat Eco? Obama? U2? Susan Boyle? Faustão? Naruto? Paulo Coelho? Fotografia digital? Clássico, será sempre aquilo que surge e muda tudo ao redor; quebra barreiras, é imitado, e o simples fato de sabermos que existe ou existiu, nos transforma ou transformará. Como um filme do Carlitos. Como Homero e Shakespeare. Como ver Mané Garrincha colocando pra sambar um bando de joões. Hitchcock. Beatles e Ramones. All Star. Arroz feijão bife batata frita e salada. Coco Chanel. Jeans. Como Machado, Kafka e Borges, que aliás empresta o nome de um conto seu para o texto todo.



* Texto publicado no http://picidaribeiro.blog.terra.com.br/ - na verdade feito de encomenda para ela, que queria saber o que eu achava que no futuro seria clássico ou tradicional. Quase uma armadilha, pois eu, boca aberta, podia ter sido conciso e dito tudo de maneira mais simples, mas não, e tome texto enorme, para o desgosto dos fregueses.



s.o.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Faz-me rir!

Domingo à noite, um dia mórbido. Ao sairmos de casa ou embarcarmos num ônibus, o que vemos é um cenário desolador. Os mais puritanos se revestem com a engomada roupa social, fazem o melhor ar de moço bom e carregam como um tesouro a bíblia debaixo dos braços. Mães desavisadas e pais embriagados equilibram sacolas e a coleção de filhos pequenos. Nesses rostos, o que se vê é a exaustão, a catarse de quem leva uma semana árdua de trabalho e tem como único lazer o fugaz fim de semana para levar os filhos para ver a avó, a qual talvez não os receba sempre com a mesma receptividade. Os bebês nos colos manifestam seu cansaço em lágrimas torrenciais e um berro incessante. Os emos púberes acham que a vida pode realmente ser mais colorida se encherem-se de piercings e trajarem o preto cotidianamente. Os bares, lotados de homens vazios, como lembraria Vinicius, todos diante de telões gigantes que exibem um futebol que inspira palavrões e o sarcasmo com o amigo que torce pelo time que está perdendo. Os que não assistem, praticam. As ruas esburacadas transformam-se em palco para a pelada dos amadores. Senhoras desperdiçam conversas nas calçadas. Outros e outras são mais acomodados ainda e se refestelam diante de domingos que eram ão e agora caminham para inho. É difícil acreditar que possa haver vida inteligente diante de tanto marasmo, tanta insalubridade. É quase impossível crer numa salvação. Mas ela existe. E existiu no último domingo.

O santo milagroso chama-se Fulano di tal. E o milagre produzido chama-se Faz-me rir. É claro que nem todos têm a chance de ser agraciado quando eventos assim acontecem. A peça aconteceu no Palácio Popular da Cultura. Que de popular só tem mesmo o nome. O pomposo teatro fica no meio do nada, ou melhor, no meio do Parque dos Poderes. Piada de mau gosto e herança maldita de Pedro Pedrossian; todos os órgãos públicos perto um do outro. Tudo perto. Mas longe do resto da população. Pra lá os ônibus rastejam levando uma multidão de funcionários públicos e cidadãos vitimados pela burocracia. Porém, só podemos desfrutar de tal infortúnio durante a semana. Nos finais de semana, só os bem-aventurados que dispõem de carros próprios ou de meios para custear os temperamentais taxímetros é que podem lá chegar. A “gente humilde” de Chico fica fadada ao nada da televisão. Na verdade, a “gente humilde”, muita das ocasiões, passa a ser também a ser gente invisível. Que importa saber se a maioria das pessoas não podem chegar lá, uma vez que elas também não vão ter como comprar os ingressos? O Palácio é palco das grandes produções, das estrelas globais e de vez vem em quando também frívolas. E o único meio é cobrar caro para bancar os gastos. No entanto, no último domingo não foi assim com Faz-me rir. A peça de produção local teve preços populares, mas o empecilho de se chegar lá persistiu. Os que conseguiram vencê-lo amanheceram em segundas-feiras encantadas.

A peça começa com um casal fazendo uma espécie de publicidade do grupo. Contando de como ele surgiu e as piadas e confusões que sempre surgem com o curioso nome de Fulano di tal. Nessa conversa a três com público, tomamos conhecimento de forma divertida de como é a dura realidade do artista que precisa buscar patrocínio. É verdade que essa introdução nem sempre traz piadas felizes e pode por vezes desanimar o público. Mas o espetáculo vai sempre ganhando vida num ritmo crescente a cada troca de personagem, o espetáculo é feito em esquetes.

A primeira é de um casal que se conhece pela internet e marca um encontro inusitado num restaurante. O computador é o cupido ideal para juntar personalidades que se atraem e se repelem. A menina é toda colorida, toda fashion como ela mesma diz, e ele parecer ter fugido da violada mais próxima; bota, calça apertada, camisa e boné. Não faltam tipos por aí assim. Sendo assim também não faltaram doces alfinetadas à música sertaneja que impera por aqui. Isso é o mais incrível da peça: humor local. Estamos carentes disso por aqui em todas as áreas. Na música, dança, teatro, poesia, sempre que queremos falar de nós lembramos de tuiuiús, jacarés, onças e afins como se fôssemos todos descendentes de Robson Crusoé. A segunda vem falar de política criando também tipos curiosos; o laranja, a secretária atraente e ambiciosa, o assessor corruptível e no centro de tudo, o deputado que não saber lidar com as próprias tramoias e alusões à política local também são meras coincidências. Risos também com as amigas que no meio da balada começam a pensar em casamento, em escolhas, em como lidar com os homens, se compensa mais ser uma princesinha ou uma amélia. O gaúcho de profissão não-revelada no início que começa a contar de seu cotidiano de trabalho criando uma série de trocadilhos de conotação sexual. A hilaridade única da noiva embriagada que foge do noivo e trava um diálogo ébrio com o público. Os nossos olhos também saem a dançar para acompanhar os movimentos do ator que percorre uns vinte de anos de dança para mostrar o quanto evoluímos nesse quesito. Música que já tínhamos esquecido, músicas que ouvimos sem querer, outras que já ouvimos e até sabemos a coreografia apenas por odiá-las. Mas engraçado mesmo é entramos no universo infantil e assistirmos com leveza temas como a pedofilia, a sexualidade em si e todas as noias e preocupações sérias e válidas dos adultos que afligem o pequeno mundinho de nossas crianças. Enfim, é impossível não sair extasiado depois de vivermos uma noite assim.

Morra! Mas não morra antes de ver essa peça. Talvez a única ressalva se faça é quanto ao uso de microfones que talvez pudessem ser dispensados dando mais liberdade aos atores e acabando com o problema de chiados ocasionais, embora quase imperceptíveis ao público. Com pouco cenário e não muito figurino fez-se um belo espetáculo. Vale a pena gastar dinheiro com táxi para vermos algo realmente fantástico.






 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
t.c.s.

sábado, 24 de outubro de 2009

Um silêncio provisório




Misteriosamente eles adotaram o silêncio. Em nenhum momento debateram que, o silêncio, seria a solução dos, não poucos, problemas. Era um acordo de olhares preguiçosos. De backspace apagando frases inteiras. Talvez achassem que no pós-discussão o melhor a fazer era pensar em coisas amenas, talvez nem pensar. Melhor o 'tergiversatio'. Acreditar que o desconhecido é um companheiro tão fiel quanto um cão. E eles se esmeravam em imaginar-se longe das crises por eles mesmos inventadas. Até faziam planos. Pensavam o futuro como se o passado não tivesse existido. Como se fosse possível que feridas tão recentes, milagrosamente, desaparecessem. Ah, os milagres, esses feitos gloriosos que sumiram da face da terra. Ninguém mais escapou vivo das covas dos leões, esquecemos o idioma deles e eles o nosso. E os dias correram por vielas até alegres. Passaram por alguns momentos que eles mesmos não acreditavam ser mais possíveis. Em alguns instantes até acreditaram que eles estavam certos. Portas novas se abrindo. E as outras, as portas de antigas dores, trancadas à sete, extraviadas, chaves. Mas todos sabemos como são essas coisas. Fica sempre um rancor armado no espírito... facas sendo afiadas... armas de destruição em massa compradas no mercado paralelo... a próxima batalha, se houver, será mais dramática ainda... mas, enquanto ela não chega, recuperam-se da última, um nos braços do outro...


s.o.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Jorge

I

Sozinho ao volante do Voyage, vendo surgir e desaparecer curvas, mal conseguindo acreditar na quantidade de buracos da rodovia, indefinidos e surpreendentes, que teimavam em brotar, como armadilhas engenhosamente calculadas, Jorge pensava em sua vida como quem visita um parente distante no cemitério: levemente compungido e bastante incomodado. Seria sempre assim, ele achava, desde pequeno fazia a si a mesma pergunta: “por que tudo era tão difícil pra ele?”. Sentado em bancos de igrejas, apenas ficava mais confuso, jogavam-no de versículo em versículo, de parábola em parábola, mas nunca lhe diziam claramente: “é por isso!”. A escola completou seu quadro de desespero, pois os professores estavam ocupados demais mandando que decorassem isto ou aquilo, e a resposta não estava em nove vezes nove, mesmo ele sabendo que era oitenta e um à custa de muitos cascudos de sua mãe analfabeta e cintadas do pai bêbado.

Assim, quando o exército o abraçou, para honrar a pátria, ele quase foi feliz. Os novos companheiros, que dividiam tudo, de um copo de cachaça com molho de pimenta, aos gigantescos cigarros proibidos, dividiam igualmente socos e pontapés quando alguém decepcionava a maioria, mas eram a melhor família que já conhecera. Ele podia sentir tremores consistentes na boca do estômago quando montava e desmontava seu FAL em menos de um minuto ou quando conseguia fazer mais de 300 abdominais. Mesmo quando sentia horror nas madrugadas insones em que cumpria seu quarto de hora no mesmo dia em que estava de serviço o tenente Arantes, um maluco que chegara da escola de para-quedistas e aplicava os maiores castigos se pegasse um soldado dormindo ou desatento que fosse, “ah, sua malditas senhas e contra-senhas”. Tudo era tão real e sincero que até gostava. E os acampamentos eram o mais próximo da sensação de perigo real que já sentira, com seus exercícios estranhos, seus rigores descompensados, como se estivessem realmente se preparando para uma grande guerra que nunca chegou. Caminhar pelas trilhas à noite é bem parecido com o cortar o breu da estrada de carro, lá a luz vinha dos camaradas, aqui dos faróis – pena que fosse uma luz muda. Mesmo com todas as dificuldades vividas ali, no 17º Batalhão de Caçadores, ele foi feliz, e, longe dos camaradas sempre prontos para tudo da sua 2ª Companhia o medo lhe corroía a alma.

II

Agora, como que agarrado às suas memórias, um náufrago tentando encontrar pegadas na praia da sua vida, um Sexta-Feira qualquer que fosse, para assim não pensar no que estava fazendo. Essa viagem maldita, com sua carga maldita, com o maldito dinheiro que já havia recebido metade, e tudo por que seu olho esquerdo agora só via nuvens brancas entremeadas de cores inusitadas e mentirosas. Foi isso que ocorrera naquele dia. Só quando sentiu a pancada é que se lembrou que não enxergava quase nada e que o retrovisor esquerdo, para ele, era uma peça inútil; mas percebeu isso tarde o suficiente para toda sua vida mudar naquele fatídico momento. A empresa não se recusou a pagar os reparos, nem mesmo quando o proprietário do Honda Civic levou-o para a autorizada da rua Bahia – cujos proprietários eram notórios rábulas do conserto. Jorge nem teve tempo de descobrir a razão disso, foi demitido dois dias depois, sem justa causa, mas com todos os motivos aparentes: o estrago era grande o suficiente pra que ele ficasse sem salários por quase um ano; a empresa descobriu enfim aquela cegueira parcial; fora a terceira vez que ele se envolvia em algum tipo de acidente, terceira e última.

Depois de uma certa idade o desemprego é como uma doença contagiosa, todos o olhavam com desconfiança, ainda mais quando percebiam que a única coisa que ele havia feito a vida inteira fora dirigir veículos grandes: Expresso Mira; Viação Mota; Viação Cidade Morena e tantas outras empresas. Mesmo assim ele tentou. Enquanto tinha o seguro-desemprego ia fazendo uns bicos, pedreiro, descarregador de caminhões, segurança. Mas, quando a última parcela foi retirada na boca do caixa, e o Detran só lhe concedeu a carteira B, um frio esquisito passou pela sua nuca: como iria fazer agora? E quando tudo ia faltando perigosamente, inclusive os parentes, que esses são como gatos que pressentem a morte de algum morador da casa, Jorge resolveu viajar pra Corumbá e tentar por lá uma sorte que nunca teve.

III

“Seu Jorge” - disse um senhor atarracado, que estava próximo o suficiente pra que sentisse o cheiro de peixe e cerveja que ele exalava – “nós confiamos no senhor”. “Aqui está o endereço onde você tem que levar o carro, entra, deixa as chaves e os documentos e me liga”. “Lembre-se, se a polícia te parar que não sabia o que estava carregando e nunca me viu nem mais gordo nem mais magro...a sua família agradece”; falava e voltava-se para seu prato de costelas de pacu fritas, arroz e mandioca branca. Jorge sorriu amarelo com seu garfo a poucos centímetros da boca e só conseguiu balbuciar: “Sim Senhor, pode ficar tranquilo”. “Eu só fico tranquilo na hora que o carro estiver lá em Dourados, isso sim”. “Mas, por hora, pega essa grana aqui, e manda pra sua família; a outra parte o senhor recebe lá” e atacava o pacu despedaçando-o, retirando as espinhas e colocando-as em cima da mesa. A quantia era a mesma de três meses de trabalho duro como motorista de ônibus, aguentando aposentados que insistiam em tomar o coletivo na hora de pico; pessoas fedidas; mal-educadas; mal-encaradas; infelizes; estudantes estúpidos; ou aquelas pessoas que faça chuva ou sol, sempre dão um bom dia gorduroso; aqueles tagarelas que nunca se tocam. E ainda teria mais na hora que chegasse. Correu para o banco e na hora que pegou o comprovante sentiu que havia vendido sua alma definitivamente e teve vontade de fugir. “Olha, paga todas as dívidas mais velhas, e faz uma compra bem grande pra casa, entendeu?”; “Pai, onde o senhor tá? Tô morrendo de saudades, você vai ‘voltá’ logo? O Fábio quebrou minha boneca”...

IV

O sorriso de seu filho, as pequenas mãos da sua filha não lhe saiam da lembrança. Foi por eles, só por eles que havia se metido nesta enrascada, insistia para ele mesmo acreditar. Não poderia suportar vê-los passando necessidades, sem ter o que vestir, sem terem o que comer. A deficiência do menino já era um fardo por demais grande, e ele nunca havia reclamado nenhuma só vez disso. Nunca cobrou do hospital onde ele havia nascido perfeito e sido derrubado, por uma enfermeira desastrada, logo no seu primeiro banho. Não tinha dado um pio quando a sua pequena menina teve, pela primeira vez, que fazer uma cirurgia gigantesca na perna para retirar um tumor; nem reclamou na segunda, pois a primeira não foi bem sucedida. Apenas queria saber a razão de tanto sofrimento. Esses terrores voltavam agora, a cada posto da Polícia Rodoviária; toda vez que percebia que os carros estavam andando mais devagar à sua frente, que aleatoriamente eles estavam sendo escolhidos, como numa roleta russa com duas balas no tambor. Sabia o que significava ser uma mula, mas temia que fosse mesmo é boi-de-piranha, que seria entregue por quem o agenciara, para que um carregamento maior passasse em outro lugar.

Há poucos quilômetros de Dourados, livre das barreiras odiosas, conseguiu sentir fome, e, em Itaporã, num restaurante inusitado do lado de um fogão à lenha, se serviu da melhor comida caseira que já tinha visto, comeu de verdade pela primeira vez, desde que se sentara no banco daquele malfadado carro. Foram generosos pedaços de carne, quiabo, feijão, costela, frango; sorria por ter conseguido chegar e já não evitava pensar em Vânia, a mãe dos seus filhos. Sorria quando pensava como a havia conhecido, nos encontros na sala ou no portão da casa, quando tinha que comprar a ausência dos irmãos dela com doces. A gravidez inesperada, a fuga alucinada, aproveitando-se de uma viagem do pai dela. Os casebres em que moraram, um quadrado de madeira, ás vezes com chão de terra batida, mas sempre com uma cama, e era lá que eles foram mais felizes. Trepavam o dia inteiro, até que a barriga começou a incomodar. Depois do primeiro filho tudo havia mudado, pouco, mas ainda assim o suficiente para não ser mais aquilo que ele queria. Mesmo assim, logo depois veio a menina e, com a família, a responsabilidade de ser o homem da casa, como cobrava a vida.

V

Numa garagem, o local indicado, entregou o carro, e pegou o dinheiro - a segunda parte do trato. Comprou uma passagem pra Campo Grande que sairia às 20 horas, depositou quase tudo, e sentou-se num bar em pleno centro de Dourados, e ficou ali vendo passar as pessoas, enrolando o tempo com umas poucas cervejas. Sentia-se disperso, nem feliz, nem infeliz, apenas cansado. Trabalhadores cruzavam ruas, carteiros voltavam com bolsas vazias; pedreiros sujos de mais um dia de trabalho passavam à sua frente; empresários em seus carrões; mecânicos de mãos imundas, mas com a alma limpa, roçavam sua agonia. Queria chorar, rir, gritar, mas nada desatava o nó da sua garganta. Tinha acabado de entregar um carregamento inteiro de droga? Talvez cocaína? Quem sabe maconha? Ou então era só o carro mesmo? Não sabia, não queria saber, queria só ir embora.

Na manhã seguinte, cansado do terror da viagem, o ônibus em que estava encostou-se à plataforma. Jorge chorava lágrimas desesperadas, havia chegado ao fundo do poço da desilusão. Havia acreditado em todos os deuses possíveis e impossíveis até chegar ali. Agora, enfim em casa, vendo sua família ali, esperando por ele, compreendeu que não havia ido levar uma mercadoria qualquer; descobriu o que já sabia e havia esquecido, sua família estava acima das dúvidas celestiais. O que ele entregou em Dourados fosse o que fosse, não era mais nada, ele não ficou sabendo nunca o que tinha entregue, então mentiu, pra si e para todos, que se tratava de peças para recuperar umas máquinas que estavam asfaltando a via de acesso à fazenda de um político importante da região, cujo nome ele não podia falar – mas todos sabiam - jurara por sua mãe, Dona Alaíde, mortinha.



s.o.

sábado, 12 de setembro de 2009

Violada



Pedaços de comida cairam no chão ao primeiro espasmo que ela sentiu. Torceu o corpo violentamente e, às duras penas, golfadas iam voando aleatoriamente. Impossível evitar respingos nos sapatos. Aqui e ali, uma mistura esbranquiçada e fétida lavaram o piso. Um perito criminal diria com certeza o que ela havia comido e bebido. Sherlok Holmes diria até a razão para que os fatos ocorressem desse ou daquele jeito. O certo é que depois do terceiro vômito, serenado os ânimos, recuperado um pouco da cor, que havia fugido junto com os líquidos e sólidos, ela reparou que estava num banheiro minúsculo e que tinha conseguido emporcalhá-lo um bocado a mais. Fora, batiam insistentemente na porta. Amigos? Desconhecidos? Que se danassem. Ela só precisava de mais um pouco de tempo pra que o seu pequeno mundo parasse de girar, pra que conseguisse lavar o rosto, a boca, a garganta. Pra que seu cérebro pudesse se lembrar.


A roupa que vestia ela reconheceu. Não era dela. Mas ela já havia visto numa amiga, menor que ela, o que já antevia que algo ruim já havia acontecido. Será que ela havia vomitado na sua roupa? Que banheiro era esse? Vencendo seu asco, olhou para os restos do que havia colocado pra fora. Em que lugar ela tinha comido macarrão? Perguntas, perguntas. Sua cabeça que girava, seu estômago enjoado. Um desespero de dúvidas, dúvidas. Lavou-se. Com papel higiênico secou seu rosto, limpou seus tênis. Achou que algumas daquelas marcas não sairiam mais. "Que se foda", pensou. Aprontou-se o melhor possível e, enfim, abriu a porta.

Rostos desconhecidos surgiram. A primeira que entrou no banheiro, recuou enojada: "puta que pariu, que merda, tá imundo essa bosta". Ela livrou-se do pequeno tumultuo e descobriu que estava em uma espécie de baile. Devia ser uma dessas coisas atrozes em que duplas sertanejas tocam e um turbilhão de pessoas dançam e bebem. Um cartaz numa parede explicou o que ela já temia: "Violada da Patroa". Que diabo seria isso? Como, ela que odiava música sertaneja, estava ali naquele lugar? Nenhum rosto conhecido lhe aparecia, ela procurava a saída daquele inferno. Uma mão a tocou no braço, ela virou-se e viu, Gustavo, o cara mais lindo do mundo. Sua obsessão naqueles meses todos. Havia corrido atrás dele com uma disposição de maratonista. Ele a abraçou. "E aí, tá gostando benzinho?". Um novo engulho subiu-lhe até à garganta. Lembrou-se então de tudo. "Caralho", pensou.

Lembrou que tinha chegado cedo na casa da amiga. Que tinham começado bebendo cerveja, dois latões cada uma, que tinham jogado conversa fora enquanto faziam mãos e pés. Elas haviam dado banho de creme nos cabelos. Colocado sacolinhas plásticas na cabeça e tinham secado e, depois, esticado os cabelos com uma prancha. A amiga dizia animada: "meu, você vai sair com o Gu, nem acredito, tem que me contar tudo depois". Quando estavam quase prontas, outras amigas chegaram, trazendo vodkas, muitas vodkas. E enquanto iam experimentando roupas bebiam e riam. A casa em polvorosa. No banheiro uma ainda raspava os pelos com uma lâmina e muito sabonete Lux. Outra, atacava os cabelos com a chapinha. Batons, perfumes, pós. Troca de colares, pulseiras, blusas. Tudo ia ficando revirado, e ela, levemente bebada e ansiosa, achava ainda que iria para algum lugar tranquilo com o Gustavo, que iriam se conhecer enfim.

Antes de sairem dividiram preguiçosos nissins e beberam mais cervejas. A vontade de sair com o Gustavo ia sumindo numa bruma de álcool e barriga cheia. Maria que era quem conhecia o Gustavo e tinha conseguido aquele encontro dizia: "o Gu vai esperar a gente lá na Cantina Mato Grosso". Foi a deixa que ela perdeu. As bebidas talvez. Qualquer pessoa sabe que na Cantina só vai quem gosta de música ruim, como ela não prestou atenção nisso? Uma vez no bar, quando o Gustavo dos seus sonhos enfim surgiu, aos olhos dela, já não estava mais tão atraente. Usava calças justas, camisa xadrez, uma bota com biqueira, e um cinto com uma fivela tão grande que ela morreu de vergonha alheia. Sentado ao lado dela ele exalava um cheiro esquisito que ela descobriu ser fumo, que ele havia mascado antes de chegar. A simples imagem de uma pessoa mordendo e cuspindo algo preto e podre fez seu estômago embrulhar. E ele falava diretamente no seu ouvido e o cheiro de fumo entrava pelo seu nariz e caia como uma pedra no seu ânimo. Pra evitá-lo, voltou a beber. Cerveja e copinhos de tequila, com limão que era espremido dentro da boca.

Ele a beijou ali mesmo na mesa. Ela, que pensava em realizar um sonho, viu tudo se tornar um pesadelo. Era o primeiro beijo deles, mas ele tanto forçou sua boca com a língua e seu bafo horroroso, que ela achou que ia desmaiar. Não de prazer. Pediu licença. Foi ao banheiro e vomitou uma primeira vez. Sujou suas roupas. Uma operação de guerra foi montada pra que ela fosse na casa da amiga trocar de roupas e voltasse, afinal, não era todo dia que se saia com o Gu. Daí por diante ela só recordou espaçadamente de tudo. Foi, trocou, voltou, a camionete do Gustavo, alta, veloz, a mão dele que errava a marcha e tocava-lhe as pernas, era as pernas? A fila na entrada da violada. A violada. Eles dançando chamamé, dando voltas, voltas, voltas.

"Amorzinho, você vai aonde agora?". "Eu? Pra lugar nenhum, você é quem vai pra puta que lhe pariu, seu filho da puta, sertanojo de merda". Ao que ele respondeu: "Vai você sua biscate de merda, vagabunda, some, desinfeta". Ela sorriu, saiu empurrando todos pelo caminho e quando encontrou a porta respirou aliviada e imaginou-se fazendo pra todos um gesto obsceno. Não fez, nem quis saber qual rumo haviam tomado as amigas, com certeza estavam todas empoleiradas em alguns daqueles carros, em algum quarto de motel. Que fossem todas à merda também, não passavam de umas caipiretes de quinta, que só estavam interessadas em se arranjarem na vida. No fundo da sua bolsa tirou seu MP4 e saiu cantarolando madrugada a dentro: "hey ho, lets go!!!"


s.o.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sensações olímpicas

A vida só é vida se cumpre sua cota de surpresas maquiavélicas. Quando menos esperamos estamos sentados confortavelmente em nosso melhor sofá, deixando esvair a alegria de estar. Já não faltamos mais a nenhum compromisso, não molhamos os pés, majestosamente, em poças de chuva. Nos fechamos em nós e só abrimos pequenas frestas. Como isso tudo ocorre e nem percebemos? Qual o instante que nos trancamos em nossa carapaça e perdemos o apetite do olhar? Quando o beijo doce no rosto não arrepia mais? A alegria de viver, perdida em meios aos embrulhos da trapaça. Virtudes desperdiçadas quitando contas que já nem sabemos a razão de tê-las feito. Sacrifícios pueris pra não desagradar ninguém, pois, de resto, só devotamos nossa parca felicidade aos nossos eleitos de sempre. A eles tudo. Como é ardiloso o cálice da ilusão: somos enganados pelo tempo que se esvai; pelos companheiros que não aparecem pra dizer olá, pelo simples prazer de dizer olá; pelas possibilidades que não se cumprem. Desejos indesejáveis. Compromissos inadiáveis. Nos importamos demais. A seriedade é roupa que compramos em brechó, que não cabe bem nas vezes que tentamos vesti-la. Deixar tudo de lado um pouco, nos abandonar à suave beatitude de não nos levarmos tão a sério sempre. Não somos relógios, por isso não precisamos ser tão amargos. Desejo de tocar as estrelas, de sorrir para o idoso, atravessar a rua enfrentando carros mau-humorados, cumprimentar o invisível gari, chegar atrasado ao trabalho pelo simples prazer de ver o dia acontecer numa hora diferente. Estamos cegos, perdidos em meio a uma corrida de obstáculos em que no final, mesmo conseguindo chegar, não ganharemos nada senão o cansaço característico de toda maratona. Mas sempre há de ser tempo, ("Está na hora de saber! Está na hora da pedra começar a florescer, de um coração golpear a inquietude. Está na hora de ser hora. Está na hora” - Paul Celan), pra abandonarmos nossas impenetráveis construções, pelo menos um pouco, e nos vestirmos com as cores da infância, e assim nos abandonarmos às delícias do mundo, pois sim, elas existem, nós é que já não as conseguimos divisar mais em meio ao nevoeiro do dia-a-dia infernal.










s.o.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Distopia ou Sonho de uma noite de inverno


Às portas do Neon Concursos, uma fila gigantesca se empurrava num vai-e-vem incessante atrás do último edital pra mais um concurso que oferecia diminutas vagas com salários astronômicos. Vivia-se uma época em que a única maneira de arrumar um emprego de verdade era estar inscrito numa escola preparatória pra concursos. As escolas tradicionais eram apenas um passo antes do paraíso, muitas disciplinas foram substituídas ou simplesmente abandonadas. Biologia, Química, Literatura, Geografia, História, foram trocadas pelo estudo minucioso da Constituição Federal e das leis dos estados e municípios, de um arrombar gramáticas, destrinchar qual atalho é usado no computador pra 'salvar como' um documento. Nas bibliotecas milhares de livros jaziam abandonados.

O apocalipse se abateu numa dessas tantas tardes ocas. Eram tempos estranhos e quando desabou do céu uma chuva de livros, muitos se apavoraram e procuraram abrigos. Ilíadas, Odisséias, Dons Quixotes formavam rios surreais. O vento forte lançava os livros contra janelas que se estilhaçavam, apartamentos recebiam suas cotas de Kafkas e Rosas. Foi passageiro, tão rápido como veio a chuva dissipou-se, as cidades é que nunca mais seriam as mesmas. Pessoas apressadas corriam segurando suas leis em PDF, dirigindo-se para suas salas de aulas, fugindo do encontro com tantos livros. Capas coloridas brilhavam. Nas ruas, motoristas aturdidos, não sabiam se iam ou ficavam, em alguns para-brisas livros caíram abertos e os passageiros podiam ler poemas de Emily Dickinson, galhofas de Osvald de Andrade. Nos ônibus alguns livros acertaram em cheio alunos distraídos, alguns bem-aventurados receberam diretamente nas mãos um Vargas Llosa um Mia Couto. Pessoas vindas dos metrôs paravam assustadas e tropeçavam em Dostoievskis e Camões. Beckets absurdos boiavam em rios. Rios metafísicos de Cortázar não corriam definitivos.

O governo, ignorante, decretou estado de calamidade pública, perdendo a oportunidade de provar tão belos manás. Para limpar as ruas uma brigada especial foi criada. Tal como no filme de Truffaut, os bombeiros agora queimavam livros, pra poderem tornar as cidades novamente habitáveis. Os lixões nunca tiveram tão formoso espetáculo: Machados, Woolfs, Camus, Eças, Drummonds, Gogols, Twains, Hemingways, Dantes, todos misturados numa visão escruciante. Tropeçava-se em livros. Ao alcance das mãos Macbeths abobalhados, Macunaímas abandonados. Nem Borges na sua infinita cegueira pensou em algo tão fantástico. Muitos aproveitaram-se dessa benigna dádiva, folhearam pequenas obras-primas, redescobriram o prazer do belo. Muitos se lembraram que um dia existiu Rimbaud. Declamaram Baudelaire. Choraram novamente com Romeu e Julieta. Ouviram o clamor da espada de Aquiles no escudo de Heitor. Um mundo virado do avesso pela força dos livros.

No dia seguinte alguns gaiatos já tentavam vender livros cobrando a quantidade de páginas, mas a oferta era grande demais. Na primeira semana em alguns canteiros de obras podia-se ver cenas como mestres de obras tentando ler “Meridiano Sangrento” do Cormac Macarthy ou um “Guerra e Paz”. Alguns acidentes foram causados por motoristas, que distraídos, liam ao volante “As Metamorfoses” de Ovídio ou um conto de Tchekov. O governo continuou sua labuta de recolher esses novos cavalos de Tróia. Trocava livros por comida, livros por dinheiro. Um Orwell valia um pacote de trigo; Graciliano Ramos, a obra completa, rendia cinco quilos de arroz. No fim do mês os livros estavam devidamente recolhidos e queimados, ou escondidos por hábeis comerciantes do mercado negro. O ministro da Educação recitava um discurso em rede de tvs e rádios, afirmou, citando Conrad, que “o horror!, o horror!” já havia passado. Que novos concursos públicos estavam sendo providenciados, que todos podiam voltar às suas escolas preparatórias. Afirmou também que os culpados por tão insólita chuva só podia ser pessoas da elite, tentando desestabilizar o governo. Contra essa afirmativa membros da elite afirmaram ser isso impossível, pois eles estavam tranquilamente contando dinheiro e lendo, como sempre, best-sellers aguados, inclusive esse que foi entrevistado segurava candidamente um Chico Buarque.

Passado um tempo, sanado os problemas, um policial, doutorado à distância por uma universidade federal, circulava numa praça esperando seu dia de trabalho acabar, quando percebeu um velho com um bocado de livros ao lado. Ele folheava “Eneida” e chorava, “Medéia” e soluçava; o “Grandes Esperanças” do Dickens e ficava com um olhar vago. O velho foi recolhido a um manicômio, pois segundo o graduado policial, os livros estavam lhe fazendo muito mal. Perto, um gari, formado em Letras num curso presencial de três anos, varria displicentemente enquanto na mão esquerda portava um Shakespeare pocket e baixinho recitava: “Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar...”.





s.o.

sábado, 15 de agosto de 2009

Biografia de um dia só


Ao acordar e perceber que o sol já estava alto uma pequena tristeza o invadiu, rápida e atroz, mas ele a dispensou educadamente, bom cavalheiro que era. Vestiu-se lentamente e, mesmo sem entender, tudo o que fez naquele dia foi assim numa lentidão calculada. À mesa, café, que sorveu encantado. O pão, ele rasgou caprichosamente. Na sua face estampava-se um rosto elegante, descomedido. Livre das amarras criptográficas que teimavam em surgir vida afora na sua testa. Hoje ele estava decidido a aproveitar o dia, simples assim. Sem entender a razão saiu à rua com seu melhor terno, sua gravata dourada, chapéu de palha e sua bengala de cabo de marfim. Suas elegância e falta de pressa destoaram do mundo, que o acolheu mesmo assim. O dia o adotou com um céu de brigadeiro. No bar da esquina, lugar em que passou muitos do seu tempo, cumprimentou a todos, que o receberam entre aturdidos e felizes. Abraços, apertos de mão, conversas sem rumo. Uma iluminação em cada rosto, uma felicidade legítima de todos. Logo um tabuleiro surgiu, logo estava ele gargalhando diante de desesperados peões que fugiam de duas ariscas damas, numa deliciosa caçada de gato e rato. Após o almoço servido na calçada - arroz, feijão preto, bife e batatas fritas - ele avisou que iria seguir sua via-sacra. No ônibus, dispensou os lugares ofertados, jogou conversa fora com o cobrador e saltou no centro da cidade decidido a rever outros amigos. Por onde passou espalhou alegria, comeu, bebeu, até dançou, mas não se cansou. Todos que o viam partir ligeiramente embriagado de vida, não podiam disfarçar uma ponta de satisfação por ele. Companheiro fiel a vida toda: trabalhador sistemático, pai cuidadoso, marido zeloso, amante dedicado, avô brincalhão, com todos os vícios na medida correta da balança de Epicteto e uns bons dons de Epicuro que ninguém é de ferro. Aquele ser maravilhado com o mundo, o mesmo mundo que viu ruir numa só tarde em que teve sua casa invadida por ladrões, que buscavam o que não haviam perdido ali. De um infortúnio brotaram todos os outros. Era dia dos pais, a família reunida foi mantida refém durante o domingo inteiro e diante da impossibilidade de negociar, a polícia invadiu a casa. Matou bandidos e também reféns. Um desastre sólido o suficiente para que ele - sobrevivente - não mais tivesse prazer pela vida até esse azulado dia. Sua peregrinação terminou na escadaria da Igreja da cidade. Ali quedou-se, quieto e melancólico. Se deixou estar durante alguns bons instantes. Para alguns ele rezava, outros disseram que ele chorava. Se chorava ou rezava, o certo é que se consumia em dor e ausência; saudade e impaciência. Todos, em algum momento da vida choram suas lágrimas de sangue, em que temor e dor se misturam a uma vontade férrea de que tudo seja diferente. São as lágrimas da resignação. Secas as suas, a alma mais leve, o corpo fatigado, rumou para sua casa. Despediu-se ainda de alguns extraviados, acalentou uns seres noturnos. Distribuiu algumas notas que lhe restavam. Em casa, banhou-se, colocou o pijama cinzento, suas chinelas, sentou-se à mesa, ergueu um brinde à vida e bebeu seu borgonha em goles milimétricos. Sorveu sua sopa de legumes. Fumou um Porto Faria. Deitou-se, não sem antes apagar as luzes da casa. À luz do seu abajur releu "Camponeses" do Tchekov, deixando escorrer grossas lágrimas pelo destino de Sacha e Olga. Beijou um porta-retratos, bebeu um gole d'água, ajeitou-se na cama, cobrindo-se até a altura do peito. Cruzou as mãos em volta do diafragma. Não sonhou.




s.o.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Jean Charles


Quando vi Selton Mello em A Mulher Invisível, quase não o reconheci. Selton se gaba por não fazer novelas, não quer ser um “burocrata da televisão”, como ele mesmo diz. E no entanto, fez um filme que é composto majoritariamente por estrelas globais. Já cri desde o princípio que o longa não seria de todo bom. Porém, fui vê-lo confiante no potencial cômico de Selton. Ledo engano. Selton se esmera mais uma vez na sua interpretação. Mas o roteiro é sofrível. Para preencher lacunas, Selton se vale de trejeitos que soam artificiais, exagerados, incapazes de provocar o riso em que consiga usar de mais dois neurônios pra pensar. Outra interpretação que vem funcionar como tapa-buraco é a de Luana Piovani. Que surge sempre sensualíssima para ocultar eventuais falhas. A grande virtude do filme é Fernanda Torres, quase sempre impecável mesmo num papel de pouco destaque. O filme arrastou milhões ao cinema que certamente saíram de casa com dois intentos: rir e/ou ver Luana Piovani pelada. Não conseguiram nem uma coisa nem outra. Somando-se tudo, a impressão que fica é que Selton fez esse filme por dois motivos: ganhar dinheiro e dar carona ao público para ver seu outro filme, Jean Charles.
Agora Selton Mello, em Jean Charles, são outros quinhentos. Resumidamente todo mundo conhece a historia: “o brasileiro que morreu no metrô de Londres”. Isso é o básico de tudo, o que foi falado por um bom tempo nos jornais. Mas o filme é mais que isso, como Selton tem ressaltado em suas entrevistas. Dessa vez, pode-se ver realmente o que acontece com os brasileiros que vivem fora do país, sem aquele romanceado com uma novela da globo tentou contar o mesmo fato tempos atrás. Fora do pais, ninguém é totalmente honesto ou totalmente desonesto. Ninguém age desinteressadamente. A ideia de fraternidade só surge quando pode haver reciprocidade, troca de favores. Jean Charles é assim, pois já começa a trama engabelando as autoridades para que a prima, de quem é apenas amigo o tempo inteiro, possa ficar na cidade. Em Londres, há brasileiros por toda parte, todos se conhecem. Todos se ajudam quando sabem que podem ser ajudados futuramente. Oportunistas? Não! São apenas pessoas que não desperdiçam bondade porque sabem que precisam sobreviver. Jean Charles é um filme de lágrimas e risos. Nesse quesito, Luís Miranda que o diga!
t.c.s.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Restrições culturais

Outro dia, alguém me disse que ivete sangalo é MPB. Não pude deixar de concordar com essa pessoa. ivete realmente é mpb: música pobre baiana. O primeiro equívoco já começa por aí. Na verdade, MPB simplesmente não existe. Mantê-la, hoje em dia, é uma necessidade comercial. As lojas precisam manter a seçãozinha MPB, que por sinal nem sempre se encontra ali o que realmente se entende por MPB. Mas a tal MPB, antigamente, surgiu de uma necessidade da imprensa esquerdista, demolidora e idiota, nos auges dos anos 60, quando existia no ringue: Música Brasileira versus Ditadura Militar. Nessa época, surgia o Tropicalismo liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Era também o tempo das antológicas composições de Chico Buarque. Paralelamente a toda essa efervescência, surgiam Roberto Carlos e Erasmo Carlos com a Jovem Guarda, inspirada no rock’n roll dos Beatles e Elvis Presley. O que consistia séria ameaça à soberania nacional que já não existia naquele período. Outra crítica ferrenha e mentecapta feita a Roberto Carlos é de que ele simplesmente teria sido omisso ao que os militarem estavam fazendo. Que obrigação tinha ele de fazer músicas que falassem disso? Roberto Carlos nunca foi um alienado, um insensível, um conivente e muito menos covarde. Apenas não tinha interesses em músicas políticas, esse é o único motivo por nunca ter feito canções de protesto. Porém, em meio a tanta contundência no dito meio intelectual, Maria Bethânia teve a lucidez de assistir a um programa da Jovem Guarda e dizer que era ali que estava a “vitalidade”. Foi isso que também abriu os olhos de Caetano e fechou para sempre os da mentira Geraldo Vandré. E aí surge a MPB para distinguir a “americanizada” música de Roberto Carlos da dos demais. Pura Bobagem! Naquele tempo, Caetano já tinha entendido que não havia “americanização” nenhuma. Mas o que viria a ser MPB? Certamente, uma mistura de todos aqueles ritmos que pudessem ser considerados brasileiros: o samba, o baião, o frevo, e.... O que mais é realmente é brasileiro? Está vendo só? Se fossemos levar ao pé da letra tal conceito, não teríamos nem a bossa nova. Afinal, seus principais criadores: Tom Jobim e Vinicius de Moraes eram totalmente antropófagos. Tom já tinha influência da música clássica. E Vinicius já era um conhecedor de boa parte da cultura mundial. Quando se juntaram para fazer música, tudo isso veio à tona. A música clássica, o samba, o jazz americano e todo o mais pudesse existir de influência se transformou na receita da bossa nova. Lembrando que Chega De Saudade, canção símbolo da bossa nova, já havia sido gravada por Elizeth Cardoso em 1958 e depois em 1959, por João Gilberto. Portanto, nos anos 60, já não havia mais sentido falar em MPB, uma música genuinamente brasileira, se Tom e Vinicius já estavam fazendo músicas com tudo o que pudesse existir de boas influências de dentro e fora do país. Hoje, Caetano, Chico e Roberto são justamente os primeiros a recusar o rótulo de MPB, o mesmo vale para os bons artistas que estão iniciando, como é o caso da belíssima Roberta Sá. Quem se reveste da pele MPB, certamente quer aparentar ser o que não é. Não digo que ivete o faça, pelo menos nunca vi. Mas seu público e mídia abitolados insistem em colocá-la num patamar que ela não é capaz de alcançar.

Nesse momento, cheguei a uma conclusão- que cri sábia- de como a nossa sociedade é capaz de criar ícones estúpidos. São ivetes, calypsos, vitors e leos, enfim... inimigos da hp e da música. Tais pseudo-artistas não fazem sucesso pelo talento que possam vir a ter, e sim, por uma terrível restrição musical. Uns ficam. Outros aparecem e somem, graças a deus. Alguém ainda se lembra de é o tchan? p.o box? Há jovens e outros nem tão jovens assim, hoje em dia, que simplesmente não sabem quem é Chico Buarque, quem é João Gilberto, quem foi Elis Regina, quem foi Nara Leão, quem foram Secos & Molhados. E essas mesmas pessoas são bombardeadas por uma enxurrada de lixo tóxico que escorre das rádios que tocam mais comerciais do que as ditas músicas. Essas são sempre repetidas numa sequência quase hipnótica que as pessoas ouvem atentamente ou aleatoriamente e gostam. Como não conhecem o que de resto foi produzido pelo país sentem-se maravilhadas. Alguém que conheça 10% da música produzida no Brasil entre 50 e 70 não dá nem as horas para ivetes e afins. Mas o que acontece muitas vezes é que as pessoas que conhecem esses 10% sentem-se atraídas por uma medonha euforia coletiva e para não ficar de fora, embarcam junto, numa espécie de estranha inclusão social artística. O mesmo vale para outros cenários. Dos 3 milhões de expectadores de Se Eu Fosse Você 5, quantos já viram um filme de Glauber Rocha? Dos bilhões que compram livros de paulo coeho, quantos já leram algum de Guimarães Rosa?

E para piorar esse quadro, surgem intelctualoides que vem falar em diversidade cultural. Colocam tudo no mesmo bolo (fecal). Tudo é arte. O funk é arte. O pagode é arte. O axé é arte. O sertanejo é arte. E até o bbb é arte. Até aí tudo bem. Mas quem vai a um baile funk com o seguinte pensamento: “testarei todos os limites do meu corpo inspirados por uma envolvente dança, ao retornar a casa, ainda que exaurido de forças físicas, terei disposição mental, então sentarei para ler compulsivamente um volume de Dostoievski!”? Não sejamos tolos! A diversidade só leva a uma coisa: a restrição.




t.c.s.

sábado, 7 de março de 2009

Idade Média Moderna

É com pesar que recebi certas informações essa semana. Fui alardeado por um burburinho de uma tal menina pernambucana de 9 anos que foi estuprada e engravidou de gêmeos. Nem procurei obter informações mais precisas. Infelizmente já tinha ouvido falar de casos parecidos. Pensei que essa era só mais uma noticiazinha de algum desses jornais sensacionalistas e que o caso logo ia ser esquecido, como tudo que acontece neste país. Porém, qual não foi a minha surpresa quando soube que a menina já havia feito o aborto e que estupefatamente descobri que o arcebispo de Olinda e Recife, o dom José Cardoso Sobrinho simplesmente resolveu excomungar a mãe da vítima e os médicos que resolveram tomar tal decisão. Como é que é? Excomungar? Como é que se excomunga um médico? Pensei que isso só acontecesse com padres pedófilos. Aliás, pensei que a palavra “excomunhão” nem existisse mais. Achei que isso fosse coisa dos tempos arcaicos e medonhos da Igreja. Detalhe: o arcebispo não excomungou o suspeito do crime e teve o descaramento de dizer que o aborto é um crime pior do que um estupro. Então, arcebispo, que tal legalizar o estupro em vez do aborto?

Eu particularmente sou contra legalização do aborto. Não por motivos religiosos. Apenas não acho que o Brasil esteja preparado para medidas tão heterodoxas, como a regulamentação da prostituição e a liberação das drogas. Mas especificamente no caso do aborto, eu me preocupo é com a saúde física e mental das mulheres. Será que uma mulher que comete um aborto conseguirá futuramente administrar psicologicamente isso? Qual será a reação quando vir crianças alegres a brincar no parque? O que pensará quando resolver ter novos filhos e vir-los crescendo contentemente? Será que não achará que está faltando alguém ali? E não é só isso. Como será que se comportarão as clínicas mercantilistas que surgirão? Será que tratarão as mulheres com todos os devidos cuidados para que não corram nenhum risco? E será que já se pensou no comércio que isso irá se tornar? Já vejo faixa pelas ruas: “Abortos com 50% de desconto. Faça já o seu! Em caso de gêmeos, aborte dois, pague 1!” E por aí vai....

Mas é necessário sensatez! Algo que infelizmente não houve desta vez. A comissão dos bispos teve o despautério de dizer que a Igreja sempre defendeu a vida. Será que eles já ouviram falar em inquisição? Será que o arcebispo se ofereceu para adotar os gêmeos da menina e dar-lhes saúde, educação, moradia, lazer, conforto, carinho, família. Coisas que o poder público não garante completamente. Será que o arcebispo sabe que meninas de 9 anos não estão preparadas para ser mães? E ainda mais de gêmeos? E por que excomungar médicos e a mãe da menina? Se a Igreja considera aborto pecado, como expulsa do seio dela àqueles que são os possíveis pecadores? Ao que me parece, Jesus fazia exatamente o contrário. Já pensou se Maria Madalena tivesse sido excomungada? E quem é o senhor arcebispo para dizer publicamente o que é pecado ou não? E ainda vir falar em “arrependimento”, “conversão”? Caramba! Era a vida de uma menina de 9 anos que estava em jogo. Católicos, me desculpem, mas quem merecia mesmo ser excomungado é o senhor arcebispo!
t.c.s.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

O eclético


Ao surgir a pergunta: "de que tipo de música você gosta?"; a resposta devastadora que humilha meu parco intelecto: "ah, eu gosto de tudo". Essa frase merecia uma tese sociológica para ser explicada. Quem sabe um daqueles textos de Nietzsche, curtos e tão contudentes que destrói convicções mais arraigadas. Como é possível alguém gostar de tudo?

Primeiro o 'ah', essa interjeição provisória, o on/off do cérebro da pessoa. Uma pausa, a mensagem viaja milhares de quilômetros pelos cerca de 86 bilhões de neurônios estimados (em novíssima recontagem) no sistema nervoso humano. Sabe lá o que é isso? Um corpo celular, em que os dendritos recebem sinais elétricos de outros neurônios e dos axônios, esses sinais chamados de sinapses são transpostadas por várias substâncias químicas chamadas neurotransmissores; esse bombardeio gera ondas de corrente elétrica, excitantes ou inibitórias, logo os neurônios caracterizam-se pelos processos que conduzem impulsos nervosos para o corpo e do corpo para a célula nervosa. Senhoras e senhores, tanto trabalho, para depois do "ah', sair um pífio 'eu gosto de tudo'. Como é possível esse espetáculo humano com nome de cérebro, capaz de decodificar milhões de informações por micro-segundos, se reduzir, na grande maioria, num patético e simplório 'tudo'. Como assim gosta de tudo, o que significa esse tudo.

A explicação vem fácil, como notícia ruim, eu gosto de um pouco de cada coisa. De axé, de sertanejo, de pagode, da morte da bezerra, de comida estragada. "Aquela música que toca na novela, como chama mesmo?". O complemento piora o soneto - se é que existe um soneto, algo tão delicado, nessa maçaroca que é 'o tudo, ou um pouco de tudo'. Talvez no cérebro dessas pessoas falte alguma peça, os hemisférios cerebrais, por exemplo, que são os responsáveis pela inteligência e pelo raciocínio, quiçá só um sentido ou uma vontade schopenhauriana mais apurada de definição. É como ter um telescópio em casa e olhar todas as estrelas sem reparar em nenhuma especificamente. Quem sabe o 'tudo' a que se referem seja só uma chamariz, uma ponte que aguarda do outro lado da conversa uma confirmação ou uma negação contra a hipotética resposta. Dependendo do receptor da mensagem, o assunto pode partir para caminhos mais amenos, como uma troca de listinha de as mil mais favoritas, ou uma ouvida do mp4 do novo companheiro de indefinição.

Sendo a resposta um cenho franzido, como que dizendo: "quê?"; o indefinido é obrigado a se definir, afinar sua resposta. "Bom, eu gosto mesmo é de ouvir sertanejo de raiz (aqui o 'raiz' é mais um disfarce para tentar enrolar o perguntador chato); ou, eu gosto é da Ivete (como que afirmando isso, a discussão estará encerrada, por ela ser uma pessoa que um em cada dois gostam). Não encerra, não se enrola, não pode existir ambigüidade numa questão tão simples. Que tipo de música você gosta?

Que merda é essa gosta de um pouco de tudo? Seu...seu...eclético? (aqui a conversa acaba, chamar uma pessoa de eclético é o pior dos xingamentos).



s.o.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Texto

É preciso aprender a chamar o texto apenas de texto. O chamativo mais nobre que se pode dar a um texto é justamente chamá-lo de texto. Nada de definições. Pegue a lista telefônica. Pegue o jornal. Pegue o panfleto. Pegue a lista de compra. Pegue as palavras cruzadas. Nada disso! São todos textos! Chamá-los-emos apenas de textos! Definir o texto, chamando-o pelo seu gênero textual é esquecer sua real desimportância. É procurar nele utilidade prática. Quando na verdade, não há utilidade prática em texto algum. Por que lemos então? Pra que lemos então? Para nada! Por que vivemos então? Pra que vivemos? Para nada também. Dessa forma, é em busca do nada que devemos ir. E não vamos chegar a nada algum enquanto continuarmos a não chamar os textos de textos. Já não basta exigirmos que as pessoas se definam? se classifiquem? se nomeiem? Quando o bom mesmo é não ter nome algum, classificação alguma. Só assim somos realmente célebres. Esqueçamos o tecnicismo dos linguistas com seus mais de cinco mil gêneros textuais. O bom mesmo é ter só um gênero textual. O gênero textual texto. A tipologia texto. Sem função. Sem origem. Sem forma. Sem conteúdo. O conteúdo é justamente não querer encontrar conteúdo. Já temos conteúdo demais. Conteúdos que não queremos ter. Informações que não queremos ter. Já sabemos demais sobre pessoas que não nos interessa nenhum pouco. Não vamos fazer com que o texto nos informe justamente o que ele não quer nos informar. Não faremos de nossos textos celebridades. Dá-los-emos o direito de anonimato eterno.
t.c.s.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Fingindo um conto: Mais um pierrô


O café da manhã já não tinha sido, como também não o seria o almoço, se até a hora em que as panelas de feijões são abertas e o cheiro de alho vai dominando a paisagem, ele não cuidasse do problema com seriedade. Mas era um dia diferente, sábado de carnaval, a alegria tantos dias enrodilhada como serpente, vai se abrindo em todos os rostos. Para quê pensar em problemas, perder-se em lembranças vagas e desinteressantes se para todo lugar em que olhava era só aquela irresistível energia no ar? Parecia que lhe ordenavam: "vá, se perder por aí", contrariando mutantes de honrosa glória. Conquistou (depois de flanelar uma manhã inteira) o direito de engolir, com uma felicidade inabalável, um sanduíche recheado com mortadela Sadilar (de horrível aspecto), bebericou um achocolatado e por tudo não gastou nem R$ 3,00. Andava assim a ermo, verificando que aqui não era a Bahia e muito menos o Rio de Janeiro, onde o carnaval parece fluir de cada olhar. As pessoas que não viajaram, seguem sua rotina de vendedores de Casas Bahia, de atendentes de Americanas, uniformizados e infelizes. Mas para ele, a televisão não mentia, viu, num ponto de mototaxistas, imagens do desfile das escolas de samba de São Paulo e achou muito lindo a desfile da X-9, mas ele torce mesmo é pela Gaviões da Fiel; nem sabe a razão de estender à escola de samba a paixão que sente pelo time, mas todo mundo faz assim, com ele não seria diferente. O que ele aguardava era a noite chegar, quando a festa enfim se estenderia pra todos, no gigantesco e gratuito baile popular. Ele gostava daquilo, o aperto, o empurra-empurra, a cachaça, as mulheres - tantas quanto ele pudesse ganhar. Deitou para descansar num prédio abandonado, sua casa era longe demais e não valia a pernada, nem o passe que ele ainda não ganhara. Antes do sono, fumou, lutando bravamente pra não pensar em nada. Quando despertou a noite já o havia abraçado, e no relógio da Calógeras viu que já era hora de cobrar a sua cota de felicidade. Se misturou ao povo, era um deles, na mão um copo de caipirinha amargosa e aguada, mas para ele forte o bastante pra deixá-lo levemente embriagado e ainda mais feliz. Evitando pular demais por conta da falta de comida, ficava rodeando grupos de mulheres, cobiçando aqui e ali. Quanto mais se perdia em meio à multidão, mais transpirava uma alegria intangível, mais bebia, mais se soltava e suas mãos eram abandonadas ao encontro dos corpos; não evitava mais as trombadas com os homens; e, enquanto aqui colhia uma passada de mão numa bunda de aparência duvidosa, ali olhava feio para um outro folião que lhe pisou no pé. A cachaça acabara e ele procurava em latas no chão um gole final de cerveja. A fome, a falsa alegria, o álcool turvaram seus olhos de vez, o cérebro como que se desligou, as luzes tremiam, o chão faltava ou sobrava, a multidão o espremia, o ar ficou rarefeito, flashs agrediam suas retinas, a força se esvaía. Caiu, levantou...tropeçou e ali mesmo ficou...a alegria o cercava por todos os lados...pensou na mãe...pensou que pensava; sonhou que ria, dançava e que era feliz...



"Um corpo foi encontrado no meio de um matagal no bairro Tijuca 2. Levou um tiro no rosto, estava sem documentos, a vítima aguarda no necrotério para uma possível identificação. Aparenta ter entre 30 e 35 anos, está vestido de bermuda preta, camiseta do Corinthians e descalço."
* Imagem: Pierrot - Toru Iwaya/1976




s.o.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Santa Joana


O Nobel de Literatura de 1925 quase não foi entregue a Bernard Shaw, ele estava tentado a não aceitar a honraria. A solução para que o fizesse veio depois de muitos acordos, que culminaram com o eleito recusando-se a aceitar a generosa quantia que cada ganhador tem direito – hoje algo um pouco maior que um milhão de dólares. Resolveram criar uma Fundação que se dedicaria a traduzir livros de autores suecos para o inglês, o que agradou a ambos os lados.

De obra extensa, e que, possivelmente, nunca leremos tudo, mas que vale cada minuto empregado nesta empreitada. A literatura atual, de maneira geral e global, perde seu status de um novo Gênesis, e vai-se abrindo a meras obras passíveis de uma venda fácil, uma possível adaptação cinematográfica – movimentando uma lucrativa indústria de venda dos direitos autorais. Não temos mais os clássicos, da maneira que definia Borges: “Clássico é aquele livro que uma nação, ou um grupo de nações, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passível de interpretações sem fim”.

Os livros pulam das páginas para a tela, e ficamos desorientados com tamanha falta de pudor. Quando vi o “Animal Agonizante” do Philip Roth transformado em “Fatal”, com generosos closes dos seios de Penélope Cruz; e com os precisos músculos do Ben Kingsley, me tornei o próprio ser que agoniza. Para Mallarmé “o mundo existe para chegar a um livro”; existia, hoje se não se transformar em um bom roteiro, ocorrerá com ele um abandono cruel. Não existem mais autores e sim roteiristas travestidos de escritores.

Voltemos ao Sir Bernard – lá, não como cá, ocorre uma preservação das grandes personalidades, Machado que o diga, que até hoje tem sua obra devassada por críticos marxistas e defensores dos direitos raciais. Se em “A Profissão da Senhora Warren”, temos um embate de gerações, quase impensável hoje, com uma mãe, dona de prostíbulos pela Europa, patrocinando os estudos e a boa vida da filha, até que a verdade fosse posta na mesa, e a guerra declarada. Em “Pigmalião” temos uma comédia generosa sobre costumes e... fonética. O livro que me encantou mesmo foi “Santa Joana”, com seu prefácio caudaloso, e a impensável defesa de um inglês da santa francesa. Ler este prefácio nos conduz à peça, ler a peça faz com que pensemos no prefácio, e um não sobreviveria sem o outro - e ambos o conduziram ao Nobel.

“A verdade” dizia Shaw “está atravessada em nossas gargantas por causa do molho com que é servida; jamais descerá enquanto não a tomarmos sem molho algum”; qual é essa verdade? A de que é possível escrever grandes livros, uma peça gigantesca com três horas de duração, carregada de verdades profundamente verificadas, pois para ele a época estava cheia de pessoas que só iam assistir a peças para ter algo como uma diversão frugal, sem contudo as mesmas poderem tratar de assuntos de relevância, algo parecido ocorre com o cinema de Ingmar Bergman e Woody Allen que se contrapunham à frugalidade de Hollywood e foram taxados de elitistas e chatos.

Nota-se isso até com o filme sobre Joana D’Arc do francês Luc Bresson, trazido à vida por uma modelo de olhos azuis. O ufanismo não teve a contundência da Santa de Bernard Shaw – o que por si só é uma glória sem fim, para um socialista de língua ferina como ele. No prefácio sobram umas ríspidas palavras até pra alguém do quilate de Shakespeare – que para Bernard não criaria pessoas e sim simulacros impossíveis de serem reais. Assim temos uma santa de feições rudes, mas ou menos como os cientistas informam que seria Jesus (com cara de pastor e barba de um palestino comum). A história tem a mania de atribuir a atos bondosos, feições bondosas, como se uma pessoa feia de rosto tivesse que ser necessariamente horrenda de atitudes – um Corcunda de Notre Dame sem Victor Hugo.

Mas se Shaw defende a santa, também defende quem a julgou, se as visões de Joana eram heresias a de Lutero, que atirou um tinteiro no diabo, também seria. E nessa gangorra ele ainda ensina os procedimentos de uma boa pesquisa, mergulhar na época em questão, buscando imparcialidade pra que o texto seja o mais verídico possível. Esse era Bernard Shaw, alguém para quem: “Milagres são belos e grandes coisas. Há porém uma dificuldade. Nos tempos atuais eles não acontecem”. Assim como bons livros, grandes autores e nenhuma pretensão além da criação literária. “A obra de Shaw, ao contrário, deixa um sabor de libertação. O sabor das doutrinas do Pórtico e o sabor das sagas”, assim o disse Borges.



s.o.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre a cegueira


A humanidade, tal qual a conhecemos, é uma eterna caixa de Pandora, um labirinto eternamente retornando a lugar nenhum, provocando sustos, terror, piedade, agonia. O ser humano – imagem e semelhança de seu Criador – de posse do seu livre-arbítrio – seja lá o que isso for -, segue sendo um mero caçador e coletor, só que um pouco mais refinado, séculos de filosofia ou de um darwinismo mal empregado depois. Rodando junto com as engrenagens do sistema, finge encontrar felicidade em latas de conserva; em carros velozes; em caixas residenciais. Perdeu-se a beleza simples de viver, morre-se por bem pouca coisa; vive-se em busca de conquistas efêmeras.

“Ensaio sobre a cegueira” do português José Saramago, brota dessas pequenas (in)certezas. Ateu de carteirinha, quiçá o último comunista a assim se autodenominar, foca seu radar no ser humano, percebe que ele está rodeado pelas facilidades da modernidade. Despe esse ser, tirando-lhe a visão e joga-o de volta à arena que é seu próprio mundo, numa crítica contundente a valores tão caros ao capitalismo. O Nobel de Literatura de 1998, quer mostrar o quão servil é o ser humano; que “o medo cega”; ele questiona a grande humanidade escrava de suas próprias maquinações.

Quanto vale a dignidade? O que estamos dispostos a fazer quando nos falta o mínimo? Saramago roça no homus modernus suas cascas dormentes; retira-lhes a liberdade; não derruba nenhum prédio, apenas insinuando as inutilidades das conquistas tão dispendiosas e prodigiosas da humanidade e por extensão do capital. Faz com que as pessoas percorram o caminho inverso que nos trouxe até aqui, desumaniza o ser pra provar que todos “estão cheios de medo e obedecem ordens”. E não conseguem perceber um palmo além das próprias narinas e maus sentimentos, pois vivem iludidos e presos a convicções alheias.

Chamado, ironicamente, de parábola, “Ensaio” é uma alegoria catastrófica – o que parece ser uma obsessão do autor. Para Saramago a humanidade só se dá conta da verdadeira realidade quando vive um momento extremo. Passa por uma série de experiências únicas, e assim o indivíduo pode se rever, se reabilitar, perceber o mundo que o cerca, sem máscaras ou “avaliações-de-fachada” como dizia Nietzsche. O novo ser humano, em Saramago, só pode ter o direito a viver novamente se busca o saber das origens, o retorno ao útero materno, uma descida na caverna da alma. Uma alma socialista, se isso é possível.

Provado a total inutilidade de sistemas, que somos todos “cegos de olhos e sentimentos”; que “os animais são como as pessoas, acabam por habituar-se a tudo”; que “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”; resta enfim uma pergunta: a obra de José Saramago era ou é tão boa assim a ponto de merecer um Nobel? Abandonando o ufanismo da língua mátria, acho que não. Palmilho seus livros (sem muita convicção),venço conceitos arcaicos, ultrapasso pensamentos mofados caídos na lata do lixo da história, e não consigo entender tamanha honraria.

As trágicas fantasias elaboradas pelo português agradam, talvez, por serem “aliciadores de espírito”, causarem mal estar entre seus leitores – o que pode ser confundido com um momento realmente sublime – mas se nos aprofundamos em seus escritos, eventualmente, toparemos com idéias mórbidas e fossilizadas a respeito de tudo, de tudo o que não é socialista-marxista, divisível. Mas será que milhões de vidas desperdiçadas em ambos os lados da trincheira: a do capital, triunfalmente selvagem; e o do socialismo, notoriamente anti-democrático, já não bastaram? Ainda são realmente necessários livros como “Ensaio sobre a cegueira” pra sabermos que o mundo é vil, que o ser humano é pérfido e que estamos fadados, ou a um fracasso total ou um fim mentiroso? Creio que não, para mim cheira a falsa devoção ou só hipocrisia. Voltemos a Machado.
so