sexta-feira, 18 de março de 2011

O mundo precisa de poesia?


Na Folha Online: Minc justifica aprovação de projeto de 1.3 milhão para Maria Bethânia


Queria poder dizer que o mundo precisa de poesia. Seria tão simples mentir e dizer: o mundo precisa de poesia, e voilá, a poesia se fizesse e salvasse o mundo. Mas pensei em mim primeiro, antes de pensar se o mundo precisa, indaguei-me se eu preciso de poesia, uma vez que faço parte do mundo, ou pelo menos acho que sim. Antes de poesia eu necessito de tantas coisas. Eu, que sou um leitor até razoável para os padrões brasileiros, que é pífio em relação a vários outros países do mundo, até leio muita poesia. Mas a poesia que a Maria Bethânia pretende fazer, declamada, com vídeo bem feito, essa eu nunca tive a menor paciência para ver e ouvir, mesmo sabendo que a poesia, nos seus primórdios, fosse feita exclusivamente para a leitura em voz alta e em púlbico, mas os tempos mudaram.

Seria incrível que as pessoas pudessem levar uma vida mais poética. Escapando da sordidez diária, para um universo cheio de alegorias, enfeites, encantamentos. No projeto consta que a idéia é: "abrir possibilidades a acessibilidade irrestrita à cultura a todos que tão pouco acesso têm?", e por isso a pergunta que não pode calar: será que as pessoas que tem tão pouco acesso, quando o tiverem não irão fazer como a maioria e se perder nos orkuts-facebooks da vida? Sim, a periferia (os que não tem acesso) talvez precise de mais poesia. É que nós, seres periféricos acabamos inventando poesia de nossas complicadas relações com o mundo. Ah, esse mundo tão avesso ao bom senso. Tão incompetente para apreender nossas vontades, para nos oferecer belezas diárias. O mundo, esse não precisa de poesia, precisa ser domesticado. O mundo é complicado e temos muito mais a perder do que a ganhar nessas trocas que fazemos diariamente. A poesia como evasão do mundo era algo que os românticos faziam muito bem, mas aquele romantismo que está em tudo e não está em lugar nenhum, está morto e sepultado.

Como ver beleza em gôndolas de supermercado? No motoqueiro esticado na esquina? Nos coletivos cheios? Nas escolas em que diariamente muita criança vai atrás do pão e não do aprendizado? Nas pessoas ainda abduzidas pelas novelas, pelo futebol nosso de cada dia? Como suprir esse mundo indolente com algo tão bom que faça as pessoas esquecerem suas dificuldades diárias? Por que Maria Bethânia seria capaz de fazer-nos esquecer das dores da vida, com pílulas tão amenas que produzisse em nós um sorriso? Sei não. Grandes ideias são às vezes simples que sem querer até nos assustam. Coisas grandiosas, com intenções grandiosas, são, no mais das vezes, megamolanias vazias.

Se o intuito é gravar uma poesia por dia, para tornar nossa vida melhor, qual a razão de não utilizar todas as mídias gratuitas que tantos se utilizam por aí? Quantos vídeos que conhecemos não foram gravados em modestos celulares e de lá ganharam o mundo? Se a ideia é dar pílulas de beleza diárias, que nem as "folhinhas de calendários" antigos (como está no projeto), qual a razão de não fazer disso, no início de maneira artesanal, contando com o apoio de amigos, e depois, conforme forem aparecendo patrocinadores ir inclementando aos poucos o blog até alcançar o objetivo final? Penso que a Maria Bethânia ou alguém da sua futura equipe deva ter em casa um computador potente, uma câmara legal, máquinas digitais, e isso tudo basta para vídeos quase profissionais hoje em dia.

Não pode a poesia ser utilizada como um mote, como um subterfúgio. Quem ama a poesia como eu, sabe que ela é tão individual é tão mais valiosa justamente por ser na individualidade de cada leitura que ela chega a fazer sentido. Transformar a poesia num produto, com preço na capa (sim, preço, nós, o povo, pagaremos a empreitada), com invólucro chique, é deixá-la menor e mais elitizada. Quantas pessoas estariam preparadas para assistir uma cantora declamando poesias diariamente, ao seu bel-prazer? Eu, talvez, de vez em quando daria uma olhada, como são as coisas na internet que hoje é um grande hit e de repente perdemos o link, esquecemos até sobre o que falava.

A pergunta no fim é, "o mundo precisa de poesia?". Pode até ser que sim. Mas eu continuo acreditando que o mundo precise mais de tantas outras coisas e que poesia é algo tão pessoal, tão intransferível, que mesmo que nesse repertório todo ela declame todos os clássicos da poesia antiga, moderna, pós-moderna, ainda assim serão os clássicos dela e sempre ficará de fora um outro tanto, que não pode ser aquinhoada com a benção da nossa declamadora oficial. Se ela quisesse fazer isso sem um centavo de dinheiro público, isso já seria outra coisa, e nem estaríamos perdendo tempo com essa discussão besta. Sim, o mundo precisa de poesia, mas eu não queria gastar nenhum centavo por isso. Por isso eu vou a bibliotecas públicas, baixo livros em pdf, por isso eu só compro o que realmente quero e vá ler, empresto de amigos, por isso eu sou favorável que nenhum centavo de dinheiro público participe deste projeto. Simples assim.


s.e.s.

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