domingo, 28 de dezembro de 2008

Ensaio Sobre A Cegueira

Uma palavra vale mais que mil imagens. Não restam dúvidas. Contudo, leitores compulsivos quando começam a ser tornam cinéfilos passam a conviver com um eterno drama. Os olhos estão sujeitos a uma divisão cruel. E é impossível escolher. Como homem que realmente é capaz de amar na mesma intensidade a amante e a esposa.
Olhos que se encantam com bibliotecas, livros, capas, páginas, capítulos, parágrafos, frases, palavras, letras querem igualmente se encantar com cinemas, filmes, cartazes, cenas, imagens, diálogos. Mas sabemos que é impossível um encaixe de côncavo e convexo entre cinema e literatura. Porém, Fernando Meireles quase o faz com êxito. Eu disse quase.
Somos levados ao cinema quase que por um patriotismo idiota. Uma espécie de solidariedade com o diretor brasileiro que já nos surpreendeu com Cidade De Deus. Chegamos quase a delirar com a possibilidade de um Oscar inexistente. Os mais insensatos chegam até mesmo a esquecer que se trata de uma adaptação. E que José Saramago não é nenhum Dan Brown ou tampouco uma J.K. Rowling, cujos livros já são quase que roteiros prontos. A escrita do autor português é por vezes permeada por uma complexidade quase que impenetrável. Transpor tudo isso para a tela não é tarefa muito fácil. Porém, Fernando Meireles quase o faz com êxito. Eu disse quase.
Já na primeira cena, uma decepção recôndita. “Os atores não falam português? Mas como?”. No entanto, logo a inconsciência verde-amarela nos diz: “Mas você não quer nada hein? Além de adaptarem para o cinema americano a obra de um autor de língua portuguesa, você ainda queria que mantivessem o idioma original?”. Tratamos de esconder nosso orgulho e seguimos atentos.
Na medida do possível, o filme vai tentando ser fiel ao livro. Todavia, não demora muito para mais uma decepção. Não vamos cortar o dedo junto com o primeiro cego. E quase não vamos nos chocar com esposa insensível e leiga da enfermidade do marido que o fez bagunçar a casa toda. E o que se dirá do orgasmo da “rapariga de óculos escuros” (que assim não é mais chamada), tão fugaz quanto o masculino? Os personagens de Cegueira (o livro) não possuem nome, possuem rótulos. O “médico”, “a mulher do médico”, “o rapazinho estrábico”, “o velho da venda preta”, “o ladrão de carro”, “ a recepcionista do hotel”, “o motorista de táxi”, “o policial” e assim por diante... Durante todo o filme, é isso que nos falta: a narração de Saramago, a escrita portuguesa com seus termos incomuns para nós e suas particularidades ortográficas de “cépticos”, “adoptar”, “reflecção”, “retrete” e etc... E onde está o maravilhoso “cão das lágrimas”? Ele até está lá, mas não há ninguém que lhe dê uma nomenclatura digna.
Saramago em sarcasmos aos detratores do filme, disse à Revista Bravo!: “[...] não obstante as incompreensões de certa critica que diz que o filme é demasiado violento. Pelo visto esses críticos não costumam ver televisão.” Não, Meu Caro Saramago, quem quiser violência não necessita recorrer à televisão, basta que leia o livro. O livro consegue ser muito mais chocante que o filme. Os cegos em desordem dentro do manicômio, as mulheres sendo assediadas. A terrível libido masculina. É indescritível a sensação diante do sanguinolento sexo oral. O cheiro nauseabundo que emana daquele chão como um esgoto improvisado, onde realmente já se tornou um reservatório de urina e fezes. O filme não é nem mesmo capaz de nos trazer a repulsa pelos excrementos que nem ao menos aparecem. Saramago sabe ser repulsivo na hora certa, e assim surge sempre nas horas que menos esperamos. E no filme, onde está o fogo fátuo dos inúmeros corpos, na segunda ida ao supermercado? Sabe ser sensível, quando já não temos força nenhuma. Somos acolhidos nos braços da única pessoa que ainda enxerga, “a mulher do médico”. Que já passa a ser a nossa mulher, tamanho amor e solicitude com que ela nos trata. Somos seduzidos por sua beleza revestida numa penúria de vaidade. Ela e todas as demais mulheres.
Difícil é chegar a um denominador comum quando passamos a pensar quais eram os intuitos de Saramago com esse livro. Mas o mais louvável de se responder é que cegos somos todos nós. Todos nós padecemos do “mau branco”. Ao ver aqueles personagens sendo apresentados apenas por rótulos, nos identificamos imediatamente. É essa a multidão em que vivemos todos os dias. Os cegos se digladiando em busca de leito ou comida como se assemelham com nós quando queremos adentrar ao ônibus. Os humanos são todos cegos. E vivem e morrem sem descobri-lo.

Tem coisas que só Saramago faz por você:

“Ao mover-se em direção à sala de estar, e apesar da prudente lentidão com que avançava, deslizando a mão hesitante ao longo da parede, fez cair ao chão uma jarra de flores de que não estava à espera. [...] Quis recolher as flores, mas não pensou nos vidros partidos, uma lasca longa, finíssima, espetou-se lhe num dedo, e ele tornou a lacrimejar de dor, de abandono, como uma criança, cego de brancura, no meio duma casa que, com o declinar da tarde já começava a escurecer”

“Saíram dois hóspedes, um casal idoso, ela passou para dentro, premiu o botão do terceiro andar, trezentos e doze era o número que a esperava, é aqui, bateu diretamente à porta, dez minutos depois estava nua, aos quinze gemia, aos dezoito sussurrava palavras de amor, que já não tinha necessidade de fingir, aos vinte começava a perder a cabeça, aos vinte e um sentiu que o corpo se lhe despedaçava de prazer, aos vinte e dois gritou, Agora, agora, e quando recuperou a consciência disse, exausta e feliz, Ainda vejo tudo branco”.

“Não é só o estado em que rapidamente chegaram as sentinas, antros fétidos, como deverão ser, no inferno, os desaguadoiros das almas condenadas, é também a falta de respeito de uns ou súbita urgência de outros que, em pouquíssimo tempo, tornaram os corredores e outros lugares de passagem em retretes que começaram a ser de ocasião e se tornaram de costume”.

“As mulheres, todas elas, já estavam a gritar, ouviam-se golpes, bofetadas, ordens. Calem-se, suas putas, estas gajas são todas iguais, sempre têm de pôr-se aos berros, Dá-lhe com força que se calará, Deixem-nas chegar a minha vez e já vão ver como pedem mais”

“Chupa, e deixa-te de conversa fina, Não, Ou chupa, ou na tua camarata nunca mais entrará uma migalha de pão, vai lá dizer-lhe se não comerem é porque te recusaste a chupar-me, e depois volta para me contar o que sucedeu”.

“Não chegarás a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se lhe com toda a força na garganta do cego, girando sobre si mesma lutou contra as cartilagens e os tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais. O grito mal se ouviu, podia ser o ronco de outro animal de quem estivesse a ejacular, como a outros já estava sucedendo, e talvez o fosse, na verdade, ao mesmo tempo que um jato de sangue lhe jorrara na cara, a cega recebia na boca a descarga convulsiva do sêmen”.

“Não, só vi que havia fogos-fátuos agarrados às frinchas, estavam ali agarrados e dançavam, não se soltavam”

“Alguém tinha deitado a mão ao último farrapo que mal a tapava da cintura pra cima, agora ia de peitos descobertos, por eles, lustralmente, palavra fina, lhe escorria a água do céu”

“Não podem imaginar que estão ali três mulheres nuas, nuas como vieram ao mundo, parecem loucas, devem de estar loucas, pessoas em seu perfeito juízo não se vão pôr a lavar numa varanda exposta aos reparos da vizinhança, menos ainda naquela figura”

“Os cães rodearam-na, farejaram os sacos, mas sem convicção, como se já lhe tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos”.

“O cão das lágrimas anda a farejar inquieto, demorou-se a pesquisar um certo monte de lixo, provavelmente havia escondido debaixo dele uma supina iguaria que agora não consegue encontrar, se estivesse sozinho não arredaria pé, mas a mulher que chorou já vai lá adiante, é seu dever ir atrás dela, nunca se sabe se terá que enxugar outras lágrimas”.
t.c.s

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Tempos Modernos – um capítulo abandonado


Os anos que antecedem o início do século XX, são pródigos de acontecimentos premonitórios dos cataclísmicos dias que irão brotar com os novos tempos. O ser humano alcança um nível de progresso impressionante mas que ainda não é nada se comparado com o que está por surgir. Com uma capacidade infinita e não dominada o homem entra numa espiral de construção e desconstrução do mundo em que vive. “A noção de Darwin relativa à sobrevivência do mais adaptável”, havia se tornado um elemento-chave tanto para conceitos marxistas de luta de classes, quanto para as filosofias raciais anti-semitas. Com o aprofundamento da Revolução Industrial o homem “torna-se o prisioneiro destas máquinas que fabrica em grande escala. Põe-se a adorá-la como o selvagem a seus ídolos”.

A guerra “higiene do mundo”, leva a humanidade a rever seus conceitos; “milhões de homens ficavam uns diante dos outros nos parapeitos de trincheiras barricadas com saco de areia, sob as quais viviam como – e com – ratos e piolhos”. A modernidade se apresenta para o mundo na forma de armas, bombas, produtos bacteriológicos e milhões de mortos, “o passado estava fora de alcance, o futuro fora adiado, o presente era amargo”. A humanidade descobre, da pior maneira possível, que “não só a sociedade moderna é um cárcere, como as pessoas que aí vivem foram moldadas por suas barras, somos seres sem espíritos, sem coração, sem identidade sexual ou pessoal – quase podíamos dizer: sem ser”.

No interstício entre uma e outra guerra, além de juntar os cacos possíveis, as idéias de Sigmund Freud começam a ser lidas com interesse, “Freud era uma figura famosa e polêmica em círculos especializados médicos e psiquiátricos. Mas foi somente no final da guerra que suas idéias começaram a circular como moeda corrente”. Ele era uma alternativa mais humana aos tratamentos que, eram utilizados antes do conflito, e que continuavam sendo, só que agora nos heróicos soldados sobreviventes da guerra, de onde uma grande maioria, voltou profundamente traumatizada. Muitos, aos choques elétricos que eram submetidos, preferiam o suicídio. Com os valores tão em baixa, sentindo-se oprimidos pelo mundo novo que tanto haviam desejado, mas que não estavam ainda acostumados e que se apresentava em mutação constante, as idéias de Freud vieram somar e embaralhar ainda mais essa fragilidade do homem que tateava na busca pelo seu lugar. Freud era competente também para fabricar slogans fantásticos, inventava palavras e expressões que se tornariam quase como que uma síntese desses tempos, sendo assim um protagonista explosivo e necessário nessa ainda incipiente idéia de modernidade que surgia.

Como ele, outro que abalou essas mesmas frágeis estruturas, foi Albert Einstein, “a descoberta de que o espaço e o tempo são relativos, em vez de serem termos absolutos de medida, é comparável, no seu efeito da nossa percepção do mundo, ao primeiro uso da perspectiva na arte, ocorrida na Grécia nas décadas de 500-480 a.C”. Com tantos paradigmas sendo quebrados podemos compreender, agora, a razão pela qual “a moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades”. Todas essas alterações são sentidas, mas a absorção é lenta, não se derruba facilmente pensamentos arraigados.

Em meio à toda essa convulsão vivida, agravada pelo nível a que chegou a industrialização, a guerra pelos mercados que já havia criado a aberração das colonizações financeiras, onde os grandes impérios (poucos países) comandavam com mão de ferro, as idéias de Karl Marx enfim são colocadas à prova, é a Revolução Socialista russa; num mundo acostumado ao fazer capitalista, às desigualdades sociais, um mundo dominado pelo poder e pelas diferenças, na qual as idéias marxistas sempre pintavam um mundo mais ameno e sobreviviam quase que como uma utopia, esse embrião “oferecia a prova de que a grande mudança começara”. Era como se um novo mundo tivesse surgido do nada, “como os primeiros cristãos, a maioria dos socialistas pré-1914 era de crentes na grande mudança apocalíptica que iria abolir tudo que era mal e trazer uma sociedade sem infelicidade, opressão, desigualdade e injustiça”. “Marx, Freud, Einstein, todos transmitiram a mesma mensagem para a década de 20: o mundo não era o que parecia ser”.

Paralelo às mudanças em diversas áreas, o mundo seguia de convulsão em convulsão como um cambaleante doente terminal. Para agravar a humanidade ainda vai passar pela Grande Depressão de 1929, onde “a imagem predominante na época era a das filas de sopa, de 'Marchas da Fome' saindo das comunidades industriais sem fumaças nas chaminés onde nenhum aço ou navio era feito e convergido para as capitais das cidades, para denunciar aqueles que julgavam responsáveis”. Com as feridas mal curadas da 1ª Guerra, o desemprego, a fome, uma humanidade incrédula, imóvel como peças de um grande jogo, logo acontece a 2ª Grande Guerra, que serviu para que o ser humano percebesse que “o mal não está somente em suas criações, mas dentro de si mesmo”.

Se com a 1ª Guerra Mundial o descrédito no ser humano já beirou o paroxismo, a nova empreitada assombrará seus pensamentos e atos futuros por gerações afora; “as maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais”. A “guerra total” produziu improváveis conjunturas, uma devastação impensável, trilhou o caminho do Holocausto dos judeus (não só judeus, mas principalmente) e aterrissou na criação e utilização da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Suas perdas são literalmente incalculáveis, e mesmo estimativas aproximadas se mostram impossíveis, pois “a guerra (ao contrário da Primeira Guerra Mundial) matou tão prontamente civis quanto pessoas de uniforme, e grande parte da pior matança se deu em regiões, ou momentos, em que não havia ninguém a postos para contar, ou se importar”.

O pós-guerra trouxe com ele um período novo, onde “a modernidade une a espécie humana, porém, é uma unidade paradoxal, une desunindo, nos jogando no turbilhão de permanente desintegração e mudança, luta e contradição, ambigüidade e angústia”, e foram nesses turbilhões que brotaram as vanguardas modernistas, que tentavam responder entre histérica e inteligentemente, ágil e provocadoramente aos questionamentos que surgiam numa época onde predominou a escuridão, tal qual o manto negro que cobriu a Idade Média, de onde a humanidade saiu para a revolução do Renascimento. “Acalmados os sobreviventes da guerra, pensadas as feridas, reparadas as ruínas, sem choques, sem riscos de qualquer espécie, o regime pode acreditar que se abre à sua frente uma nova era de prosperidade”, e de onde a sanidade só foi mantida graças a manutenção da fé do ser humano na arte, pois foi através dela que o homem saiu, no fim do túnel, ainda com esperança que tempos melhores poderiam surgir.
p.s.: esse era a primeira parte do primeiro capítulo da minha monografia de conclusão de curso, extenso, descritivo, perdia-se tentando explicar tudo detalhadamente, e por infortúnio me esqueci do Nietzsche, logo abandonei esse e recomecei - os recomeços são gloriosos - mas até que isso aí em cima não está de todo mal, acho eu, como todo pai acha bonito seu filho.
s.o.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Diga sim ao preconceito!

Roberto DaMatta diz que “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito”. Isso é incontestável. Dificilmente, você vai encontrar alguém que diga com palavras claras que odeia e quer matar todos os negros e homossexuais. O preconceito está implícito. Ele aparecerá quando você cruzar com um negro mal vestido, em alguma rua deserta, ou quando um homossexual simpático vier puxar assunto com você, em algum ponto de ônibus.

Preconceitos assim são abomináveis e dignos de repúdio.

Mas nessa luta contra o preconceito, somos levados a identificar como preconceito aquilo que não é preconceito, e sim, apenas bom senso. Bom gosto. Cria-se a ilusão de que todos têm direito de se expressar. Não faltam caetanos para propagar essa falácia. Em nome de uma patética fraternidade intelectual, somos influenciados a aceitar de tudo, para que não sejamos tidos com preconceituosos. Temos a obrigação de ser tolos. Devemos aceitar como literatura o que não é literatura. Devemos aceitar como música o que não é música. Devemos aceitar como arte o que não é arte. Isso quando não somos importunados por um estúpido provincianismo. Gente que diz estar em busca de manter culturas regionais, e deturpa origens criando frankensteins artísticos. Diariamente, rádios repetem hipnoticamente deprimentes seqüências. Ouvidos desatentos as absorvem e línguas descansadas as repetem infindavelmente.

Vivemos tempos de perversão. Instrumentos musicais se pervertem. As palavras se pervertem na disposição do papel. Ouvidos e línguas se pervertem. Opiniões de pessoas dantes ditas como sérias idem.

Quem vai de encontro a esse processo melancólico não age de forma preconceituosa, e sim, sensata. Só existe preconceito quando conceituamos o que desconhecemos. Não é o caso. Só odiamos porque conhecemos demais. Vivemos num mundo que o que desgostamos é o que mais conhecemos. Sempre estamos vendo e ouvindo o que não queremos, sempre estão dissertando sobre o que odiamos e vemos com clareza os efeitos catastróficos disso tudo. Dessa forma, temos propriedade suficiente para opinar sobre tudo o que nos irrita. Não podemos negar isso a nós. Aos olhos alheios seremos sempre preconceituosos. Sejamos preconceituosos então! O que não podemos, em hipótese alguma, é ser coniventes com a obtusidade que impera em mentes cada dia mais maleáveis.

t.c.s.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

“A essência da arte é o inesperado” ou cinco contos de Babel


Volto a Isaac Babel, é como um retorno ao sagrado que existe na literatura. Os contos de A Cavalaria Vermelha sobrevivem em mim com uma insistência fascinante. Lionel Trilling pondera acerca da epifania a que autores como Babel incorrem, “percebemos a intenção do escritor de criar uma forma que seja em si mesma bem feita e autônoma e, ao mesmo tempo, extremamente compatível com a verdade externa, a verdade das coisas e dos acontecimentos”. Babel considerava-se “o mestre do gênero do silêncio”, e advogava “o direito de escrever mal”, em clara afronta às decisões do Partido e do Governo soviéticos; ‘obedientemente’ deram-lhe esse direito, pois Babel morreu num campo de concentração entre 1939 e 1940. Escolher cinco contos na profusão de excelência deles é tarefa inglória, mas a lista tem os que mais me encantaram, nesta ou na outra vez que li o livro:

Gedali: conto impregnado de uma “densa melancolia de recordações”, percebe-se isso, pois “nessas noites, meu coração infantil balouçava como um pequeno navio”. Vive-se o início da Revolução Socialista, todos acreditam que ela vai mudar a vida das pessoas – para melhor -, mas de repente o que se vê é destruição, acaba-se a “alma da abastança, da fartura”. O desespero desiludido que dá a tônica do ambiente é sentido nas “paredes amarelas e indiferentes”; nos “farrapos trágicos” e nos “cadeados mudos”; Essa evocação a um passado não tão longínquo é algo doloroso, ocorre uma parada do tempo, uma saudade inalcançável, e as pessoas que sobram ficam tirando “poeira de flores mortas”. A Revolução não havia acontecido para melhorar a vida de todo mundo? Essa perplexidade diante do estado de degeneração é contundente “a Revolução? Nós lhe dizemos ‘sim’, mas por isso temos de dizer não ao Sabá?”; e continua o velho judeu Gedali diante de tanta mudança “sim, clamo pela Revolução, sim, clamo por ela, porém a Revolução oculta seu rosto a Gedali e nada envia, senão tiros...”. Esse caminhar por entre a ambigüidade de situações é que faz de Babel o clássico que é, e se de repente ele clama: “onde estaria a tua bondosa sombra naquela noite, oh, Dickens?”, e pede um “copo de chá judeu, e um pouco desse Deus aposentado num copo de chá?”, somos nós, os leitores, que ficamos perplexos.

O Caminho de Brody: “tive pena das abelhas”, assim começa esse pequeno conto. Em meio à guerra que travavam os cossacos contra os poloneses, na qual Isaac Babel era do exército cossaco, as abelhas são um ponto de fuga ou a fé que subsiste. Gosto dessa narrativa pela sua simplicidade de intenções. Diante da violência das batalhas, pois “na véspera, fora o primeiro dia da carnificina de Brody”, é das abelhas que se sente dó. E quando relembra a história das abelhas na crucificação de Cristo, pode-se notar o universo estranho que se vivia à época, a Revolução pregava o ateísmo, mas como matar Deus no inconsciente coletivo? “Se houve gente que ofendeu Cristo ou não, chegaremos a saber, um dia. Porém as mulheres dos acampamentos contam que quando Cristo sofria na Cruz, mosquitos de toda espécie o rodeavam, atormentando-o. Então ele olhou os mosquitos e desanimou. Mas a multidão dos mosquitos não via os seus olhos. Uma abelha também voejava em torno de Cristo. “Pica-o”, gritavam os mosquitos para a abelha, “pica-o, e nós nos responsabilizaremos”. “Não posso”, diz a abelha, voando acima da cabeça de Cristo, “não posso. É um carpinteiro como nós”.

A Vingança de Prishchepa: nós que sabemos de guerras o que nos contam a televisão, ou manchetes de jornais, jamais saberemos da violência real que ela gera. Tudo bem, todo mundo viu as fotos dos judeus mortos, ou os vídeos inacreditáveis onde montes de seres humanos eram arrastados para valas comuns como lixo, mas mesmo assim essas imagens se misturam a outras e logo se perdem, ou quem sabe, escondê-las de nós mesmos seja um aprendizado para manter a sanidade. Assim quando lemos a narrativa de Prishchepa ficamos incomodados, após ter sua família assassinada e todas os bens divididos entre diversos habitantes da cidade onde morava, a vingança imaginada e efetivada por ele, ainda assim, consegue surpreender. “Nas palhoças onde encontrou utensílios que pertenceram a sua mãe, um cachimbo que fora de seu pai, esfaqueou impiedosamente mulheres velhas, pendurou cães sobre poços, conspurcou ícones, sujando-os de excrementos”. Por esse breve relato pode-se ter uma pálida idéia do que a guerra faz com a humanidade, em princípios, amedronta, para logo em seguido animalizar.

Sal: todo mundo sabe do tratamento dado a estupradores nas prisões, mas e os tratamentos dispensados às mulheres numa guerra, imaginam ao menos? Acredito que não. Em Sal pode-se até sorrir diante do bom tratamento dado a uma delas, uma mãe carregando um filho no colo, que pede para que a deixem viajar junto com eles “nessas estações temos passado por grandes dificuldades”; esta se livra do estupro, pois “lembrem-se de suas mães, e assim compreenderão que não devem falar desta maneira”. “A instalaram no carro, competindo uns com os outros nas atenções que lhe prestavam”. Essa bucólica cena colocando num mesmo compartimento lobos e o alimento deles logo desaba, pois “permita-me descrever-lhe aqui a inconsciência das mulheres, que não estão nos ajudando em nada”. Quando os cossacos descobrem-se traídos pela mulher, que carregava um saco de sal e não um bebê, “mas veja os cossacos, minha boa mulher, os rapazes que a puseram num pedestal, por ser uma mãe que trabalhou pela república. Veja essas duas moças que choram agora pelo que lhes fizemos esta noite. Pense nas esposas, que nos trigais de Kuban gastam suas forças sem seus maridos, e eles também sozinhos, vendo-se na dura necessidade de violar as jovens que encontram”. Veja vocês a dura realidade para a mulher. Lembram-se da guerra na antiga Iuguslávia? Milhares de mulheres muçulmanas foram estupradas pelos sérvios numa verdadeira faxina étnica? No conto a sorte da mulher foi outra: “assim, tirei o meu fiel rifle, preso à parede do carro, e lavei aquela mancha da face da terra dos trabalhadores e da república”.

Guy de Maupassant: nessa pequena obra-prima ainda não existe a Revolução, vive-se um 1916, a cidade é São Petersburgo. Acompanhamos nosso mestre de cerimônias, que mesmo sem dinheiro evita empregos “já naquela época, aos vinte anos disssera a mim mesmo: é preferível passar fome, ir para a prisão ou ser um vagabundo, a permanecer dez horas do dia a uma mesa de escritório”. Uma característica de Isaac Babel é não desperdiçar tempo descrevendo ambientes, seu texto prima por uma concisão tchekoviana, assim ele nos passa a contundente impressão que tem da empregada: “a empregada de seios empinados movia-se silenciosamente. Tinha uma bonita figura, era míope e de ar um tanto orgulhoso. Em seus olhos cinzentos, muito abertos, notava-se uma expressão de lascívia petrificada”. Traduzir contos de Maupassant é um dos caminhos desta narrativa, percebe-se toda a paixão de Babel pelo autor francês “vinte e nove livros, vinte e nove bombas repletas de sentimento, gênio e paixão”. Nota-se também uma intertextualidade com o fazer literário, “falei-lhe então de estilo, do exército de palavras, exército no qual toda espécie de arma pode ter atividade”; e segue dizendo que “nenhum aço pode penetrar no coração e apunhalá-lo com tanta força como um ponto final no lugar justo”. O ponto final que é o acompanhamento perfeito para contos curtos como os que produz Babel. Esta narrativa segue até o momento da tradução de A Confissão, com as belíssimas seqüências entre o texto do francês e o de Isaac Babel, e conclui-se com uma leitura sobre a vida do grande autor francês, com um fim melancólico e perfeito: “O nevoeiro aproximava-se da janela: o mundo ocultou-se aos meus olhos. Meu coração contraiu-se, pois o presságio de alguma verdade essencial tocara-me de leve os dedos”.



s.o.

sábado, 30 de agosto de 2008

O Sétimo Selo


Bergman carrega o incômodo selo de chato pregado pelos propagadores do kistch. É que no Brasil vivemos, hoje em dia, o triunfo do patrulhamento intelectual. A vitória da companheirada, que é só a ponta do iceberg; oculto temos aqueles que dão o suporte à banalização de tudo que é belo e em que é necessário desprender uma energia a mais para à compreensão. Se não é passível de uma deglutição rápida, simples; se exige um pouco das ligações neuronais, logo é inútil e desprezível. Spielberg, um astro pop por excelência não corre esse risco, entre um e outro filme 'sério', derrama os filmões por excelência, que lotam as salas e não necessitam de muita esperteza para sair de lá muito feliz. Mas é com pessoas como Bergman e Woody Allen que a crítica tosca gosta de se preocupar, essa cruzada anti-inteligência e pró-povão é como diria um dos personagens deste filme “uma tolice que só um idealista inventaria”.

Estamos na época das Cruzadas, um cavaleiro e seu escudeiro voltam depois de dez anos lutando; aquele retorna para empreender uma busca de alguma prova, uma confirmação de sua fé; esse pretende só viver seus dias esperando a morte, pois não acredita em nada mesmo. E é ela, a Morte, que surge para buscar o cavaleiro e assim dar início à uma das seqüências mais famosas do cinema, me arrisco a dizer tanto quanto o vento na saia de Marilyn; o reflexo das crianças de bicicleta passando pela lua; Carlitos indo embora nos seus filmes; a cena do chuveiro de Hitchcock. A cena do jogo de xadrez com a Morte é bela e simbólica e marcou toda uma geração.

Bergman é um estilísta, fez o Sétimo Selo com pouco recursos, e ainda assim embebe o filme com diversas influências culturais: os acrobatas de Picasso, Carmina Burana, o Apocalipse de São João, quadros renascentistas. Essa luta contra “uma vida sem sentido”, onde “o vazio é um espelho que reflete meu rosto”, mostram um roteiro teatral. A velocidade das cenas, a clareza dos diálogos, os cenários rústicos e simples, dando o realismo necessário para uma história que parece, vamos recontando até hoje, onde a “fé é uma aflição dolorosa”.

Transformando o cinema, levando para ele a substância de um livro, Bergman, para horror dos ineptos de plantão, distribui reflexão onde antes era só diversão. Mas em Sétimo Selo não podemos dizer que falta humor, ele está no escudeiro e seu ateísmo nietzschiano, está na Morte cerrando uma árvore para levar mais um para seu reino (reino?). Nada das paródias escrachadas e emburrecedoras de hoje. O tormento do cavaleiro, a angústia de uma vida destituída de sentido, esse o caminho pedregoso que somos levados a seguir.

Se a “Morte Negra” está à solta, viver passa a ser um questionar-se eterno; enquanto aguardam (ou fogem d) a peste, um clima de dúvida perpassa o ar, e a Igreja que não podia deixar de ser, é mostrada em toda sua estupidez medieval. Grandes procissões, inquisições, caça e morte às “bruxas”, levando a Morte perguntar para o cavaleiro: “Nunca pára de questionar?”. O contra ponto à tanta dor está em Jof e Mia o casal do circo e seu filho. É nessa família que o cavaleiro encontrará o que buscava. Uma tarde, um breve instante de reencontro com a alegria, o que para ele já basta. Logo, salvar essa família das garras da Morte passa a ser seu único objetivo, pois ele quer “levar uma lembrança com cuidado como se fosse uma tigela de leite”.

Podemos dizer que a Morte triunfou, na seqüência da Dança da Morte, mas que ao mesmo tempo perdeu, pois se “o amor é perfeito em sua imperfeição” a vida dos acrobatas cheio de felicidade e amor por si como eles vivem, passa a sensação de que a troca para a Morte foi mal negócio. Levou consigo seres que haviam perdido a alegria de viver, pois viram de tudo e não se encontraram com Deus e nem mesmo consigo mesmo e deixou uma família que buscava estender a sua alegria e simplicidade a mais pessoas, sem nem querer muito em troca.


s.o.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Manoel de Barros Begins


Temos, hoje em dia, que Manoel de Barros é um dos maiores poetas do país. Justo, muito justo. Mas na maior parte das vezes, essa crítica se refere à sua obra atual, esse desvario inominado em que se transformaram suas criações do quarto livro em diante. Assim abandonamos às traças três pérolas, livros que ficaram perdidos em estantes de colecionadores, amigos ou de quem comprou sua primeira antologia: Gramática Expositiva do Chão - Poesia Quase Toda. Poemas Concebidos Sem Pecados (1937), Face Imóvel (1942) e Poesias (1956), se inserem no que foi feito de melhor em poesia no Brasil, por uma poeta que viveu um tempo de profundas mudanças e fez do ato poético um grito de revolta contra o mundo que o cercava. Devíamos trazer à tona esses livros, fazer com que fossem estudados, admirados, pesquisados.

Em 1937 vivíamos já o pós-pós-Semana de Arte Moderna de São Paulo, eram tempos de consolidar a revolução dos "moços de 22", e a poesia tinha perdido os ares parnasianos, rima e métrica haviam sido viradas do avesso, tínhamos novos heróis buscando seu lugar ao sol. Manuel Bandeira, os Andrades, Drummond, Raul Bopp e tantos outros. Nesse meio de gigantes, ele ousou colocar seu tímido ovo de Colombo. Passou despercebido, eram tantos e tão maiores os polemistas da época que o Manequinho não foi considerado. Em 1942, com o mundo em meio à 2ª Grande Guerra, ele tentou de novo, voltou para falar do silêncio da dor, foi ignorado novamente. Manoel que depois seria (re)conhecido por sua mutação constante, em 1956, publica o terceiro livro, onde parece se despedir do meio em que não viveu. Quando o homem Manoel de Barros leva o poeta para o campo, ocorre a mudança final, agora ele vive no mato, para o mato, do mato, mas sempre sendo universal. Inegável dizer o quanto isso fez bem para a carreira de Manoel enquanto poeta (desnecessário dizer que para ele isso não queria dizer nada), aumentou seus horizontes, desbravou novas realidades e, enfim, quando nada mais fazia tanta mossa, alcançou o céu, deixando para trás essas três pérolas, diamantes brutos aguardando lapidadores.

Ele sempre foi grande, os olhos de então que não estavam treinados para sua poética que caminhava em direção à contradição. Insurgia-se contra os princípios norteadores do pensar, "por não se ajustar ao raciocinar retilíneo clama por um retorno ao originário do pensar", conforme nos diz o pesquisador Prioste. O Poeta apreende a realidade como um cenário construído a partir do alicerce verbal. E nessa desconstrução por que passa alcança um idioma quase próprio, que nada mais é que um misto de variações das novidades de vanguarda (fonte constante), com a simplicidade de um eu-poético em busca de um mundo adâmico. Foi ele quem melhor descreveu a representação poética do desfragmentado ser humano que restou das crises e novidades da sociedade moderna.

Em Poemas Concebidos Sem Pecados, o poeta ataca "a questão do humano a partir do confronto com uma civilização dominada pela técnica racional que delibera sobre a utilidade da produção e transforma os sujeitos em sujeitados a um modo de pensar delimitado ao objetivo, ao racional, ao exato, ao legível e ao inteligível".

"Sou bugre mesmo
me explica mesmo
me ensina modos de gente
me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa
me explica por que que um olhar de piedade
cravado na condição humana
não brilha mais do que anúncio luminoso?"

Barros realça o avesso do mundo, mira seu olhar no rejeitado desvalorizado "por uma sociedade produtiva de bens consumíveis tanto duráveis como descartáveis". A razão "condena ao ostracismo o poeta por declamar palavras sem sentido por serem contrárias tanto ao senso comum como à distinção das idéias".

No livro de 1942, a guerra atroz afeta o poeta: "a fala impossibilita-se, pois o homem encontra-se diante de contingências históricas graves: uma guerra mundial. Como então reagir diante do pesadelo da história? Frente ao ecoar de sirenes e explosões distantes, prevalece o silêncio".

"Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito"

Vemos o quanto, em alguns momentos, sua obra está impregnada dessa dor universal, mas misturada ao seu “fusionismo” habitual; temos que "a instância primordial da poesia de Barros, no entanto, preserva-se intacta, pois tanto ao valorizar a fala dos segmentos marginalizados da sociedade como ao enunciar o emudecimento e a consternação diante de um mundo em conflito, a preocupação fundamental é com o outro".

Em 1956, percebemos um poeta vivenciando a modernidade mais profundamente, aqui lemos poemas vigorosos e centrados no seu olhar único: "a boca do poeta frente a um mundo desigual não se permite compactuar com uma estética subscritora do vazio da neutralidade asséptica de um postal, mas vira a construção cenográfica pelo avesso para denunciar o humano que ainda pulsa".

"Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri sede."

Mostrando ser um poeta consistente, em busca de quebrar o cotidiano normal da poesia, se reinventando, e nunca abandonando a sua maior arma, a consciência perante a sociedade em que vive: "Frente à degradação humana o poeta não silencia e afronta o moralismo provinciano por uma intervenção que sobrevém através da palavra".

São esses os livros, guardados que estão nas estantes, belíssimas obras, um treino de luxo para as obras que surgiriam depois. Um poeta que viu esse mundo urgente surgir e diante do caudal de novas idéias que iam aparecendo, ia emprestando aqui, renovando ali, nunca se prendendo a nenhuma escola pré-fixada, mas sempre utilizando-se dessas inovações para se tornar esse poeta singular, muito singular que hoje conhecemos:

“Singular, tão singular
Ó passar-se invisível pela alma da alameda de casas
espaçosas —
Imaginando a feição ideal dentro de cada uma!
Ir recebendo um pouco de poesia no peito
Sem lembranças do mundo, sem começo...
Chegar ao fim sem saber que passou
Tranqüilo como as casas,
Cheio de aroma como os jardins.
Desaparecer.
Não contar nada a ninguém.
Não tentar um poema.
Nem olhar o nome na placa
Esquecer.
Invisível, deixar apenas que a emoção perdure
Fique na nossa vida fresca e incompreensível
Um mistério suave alisando para sempre o coração.
Singular, tão singular..."


Poemas:
Barros, Manoel. Gramática Expositiva do Chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.


E-book:
PRIOSTE, José Carlos Pinheiro. A Unidade Dual: Manoel de Barros e a Poesia. Tese de Doutorado. UFRJ, 2006.



Imagem: A Moça com Bandolim - Pablo Picasso



s.o.

sábado, 12 de julho de 2008

Poetas Mediocres

Todo cuidado é pouco. Não há como escapar deles: os puxadores de assunto. Eles estão por toda parte. Escondem-se sob os mais diversos disfarces. Normalmente surgem nas mais impróprias, nas horas da tua maior pressa. Um deles é perigosíssimo, usa a já até manjada armadura de velhinho aposentado. Ele chega ao teu ponto de ônibus, como quem não quer nada, olha em volta, te olha. Até quem vem a primeira pergunta. Sempre alguma exclamação relacionada com o tempo, como “que calor!”, “que frio!”, “que chuva!”, “que tempo feio!”. Daí, não há mais como você fugir, pois independente de qual seja a tua resposta, a tua opinião, você já se tornou uma presa. É irrelevante qual seja e como seja a tua réplica diante do comentário dele. Você pode simplesmente dizer “sim” ou “não”, ou ainda, simplesmente fazer um aceno de cabeça, negativo ou afirmativo. Não há como livrar-se, você já se tornou a próxima vítima. De repente, o assunto seguinte pode até não ter com qualquer relação com o segundo. Ele pode talvez querer comentar a partida de futebol da noite anterior, exalando opiniões sempre com muita propriedade. Faz uma nova escalação para o time, sugere um novo técnico, novos patrocinadores, classifica a torcida como quente ou fria, critica o locutor e comentaristas do jogo, xinga a mãe do juiz. Nesse momento de entusiasmada explanação, a tua recepção pouco importa. Você pode até mesmo ficar no teu cantinho, caladinho, sem dizer um pio. O que é até melhor para ele, porquanto faz o seu show sem interrupções. É melhor que você não tente concordar com o que ele diz e nem tampouco objetá-lo, já que ele não vai deixar você falar de maneira alguma. A única coisa que você tem a fazer, é torcer para que o teu ônibus chegue primeiro que o dele, e torcer para que não seja o mesmo que o dele. Se isso acontecer e o ônibus estiver vazio, procure sentar-se no fundo, normalmente ele vai querer ocupar os da frente. Mas se o teu ônibus estiver lotado e ainda por cima for o mesmo do teu algoz, não tente reagir, entregue os teus ouvidos na hora. Quando for a pontos de ônibus, escolha os que não ficam próximos a supermercados, porque os puxadores de assunto, depois que o papo já começou a rolar, costumam também exigir favores. Se você der o azar de encontrar um deles em dias de quinta-verde, a situação se agrava. Portanto, não se assuste se um deles te pedir que você corra até a seção de verduras e traga uma cebola, uma batata, uma maça que ele esqueceu de trazer enquanto fazia a compra.
Supermercado é também outro lugar bastante perigoso, onde todo cuidado também é pouco. Além do velhinho, existe a versão feminina da velhinha sorridente, que age quase sempre de forma aparentemente inofensiva. A princípio, ela chega pedindo apenas que você olhe para ela qual é o preço no pacote de café. Depois, ela sai agradecida, demonstrando que nunca mais vai te encontrar. Porém, ela sempre retorna e te reencontra na seção ao lado. Nesse momento, vocês dois já se tornaram íntimos, de maneira que ela já pode te dizer todas as opiniões políticas e econômicas dela. Então ela te despeja uma série de revoltas: “os preços estão absurdos”, “o atendimento no supermercado está péssimo”, “os produtos estão vencidos”, “os folhetos são mentirosos”, “a propaganda na televisão é mentirosa”, “ a novela está sem-graça”, “o governo é corrupto”, “tudo era melhor na época do Sarney”. Não obstante, a coisa não para por aí, logo ela passa a interferir nas tuas escolhas, dando palpite em quais produtos você deve levar; o mais barato, o de melhor qualidade, a melhor marca, qual marca mais tradicional, qual rende mais, etc. Lembre-se: o melhor que você tem a fazer é ficar sempre calado. E cumprir direitinho o seu serviço de ouvidoria. Ainda no supermercado, outro momento de alta periculosidade é quando você vai ao banheiro. Pois lá sempre existe uma versão mirim dos puxadores de assunto. O menininho perdido. Aquela velha história, do filho pequeno que diz à mãe que ele quer ir ao banheiro, a mãe o leva e diz: “fica aqui, que daqui dois minutos eu já volto!”. A mãe nunca volta em dois minutos. O menino acaba de fazer o que tem para fazer e volta com as calças ainda arriadas à procura de sua mãe. Logo ele arma o berreiro em frente às portas. Você sempre se penaliza, se sensibiliza com o caso. Entretanto daí em diante você terá que lidar com um dos casos mais graves de puxador de assunto, porque na verdade, ele não chega a ser um puxador de assunto, é apenas um puxador de choro. É você quem tem que puxar assunto. É uma árdua tarefa, pois a cada pergunta que você faz para ajudá-lo, ele dá apenas um novo acorde de choro, afinal você está lidando com puxador de assunto que é treinado para não dar assunto para ninguém. Das duas uma: ou você corre e deixa o garotinho em desespero, ou se vinga nele de todos os puxadores de assunto que você encontrou na tua vida, fazendo todas as formas de interrogatório possíveis, fazendo de tudo para ser ouvido por quem não quer te ouvir de jeito nenhum. Ainda no supermercado, no estacionamento, você pode ser abordado por outra forma ainda mais nociva de puxadores de assunto, os flanelinhas ou trombadinhas. Eles chegam contando histórias mirabolantes de que a mãe está doente, o pai está doente, que estão com fome, que precisam inteirar para pagar o passe de ônibus. Tudo para arrancar alguma moedinha de você. Os puxadores de assunto sempre querem alguma coisa de você. Por isso talvez, as meninas devam sofrer mais com milhares de manés que surgem por aí contando as asneiras.
Outro lugar que você deve evitar o máximo possível é o banco. Nele, os puxadores de assunto, acham que todos que estão na fila, são analistas ou podem resolver a desconfortante situação. E vêm esparramando lamúrias a torto e direito: “salários baixos”, “os juros abusivos”, “a fila que não anda”, “só tem um caixa atendendo”. E por aí vai... Outro personagem bastante comum é o office-boy. Existem dois tipos dele. O primeiro é aquele que quer parecer advogado ou executivo da firma em que trabalha. Esse chega todo engomadinho, de roupinha social, perfumado (embora já suado), cabelinho com gel. Daí a pouco, ele começa a reclamar que tem que andar rápido o atendimento porque ele “tem ainda uma série de compromissos pelo resto da tarde”. Na verdade, o que ele tem é uma porção de carnês e boletos para pagar nas lojas do centro da cidade, e vem com esse papinho de “compromissos”, insinuando que tem uma infinidade de reuniões importantíssimas e inadiáveis. O outro office-boy é o tipo mais desprendido que existe. Esse faz questão de mostrar que é adolescente. Chega vestido de roupa moderninha, brinco na orelha, bonezinho pra traz. Ele sempre dá uma de pegador. Ele sempre acha que tem um na fila que é truta dele. Daí ele começa a contar dos embalos de sábado à noite, como se o seu interlocutor realmente estivesse muito interessado na conversa. À medida que a fila vai diminuindo, tanto o office-boy moderninho, como o social, fazem novas amizades, procuram novas pessoas com que dialogar. Será tua sorte se você tiver muito à frente, ou muito atrás deles, e se livre de uma vez por todas do banco e dos puxadores de assunto.
Às altas horas da noite, os puxadores de assunto também estão à solta, de plantão, ainda por cima mais sensíveis, dispostos a conversar com qualquer um. O corriqueiro bêbado pode ser inevitável nessas horas. Ou ainda o viajante. É isso, sobretudo se mais uma vez você estiver em ponto de ônibus. O puxador de assunto viajante chega meio desnorteado, te perguntas que horas são, senta e de repente, não mais que de repente, solta: “acabei de chegar de viagem”. Não tente ser estúpido e simplesmente lhe responder: “e eu com isso?”. Ele pode ainda ser mais agressivo ou mais dramático e melancólico. Lembre mais uma vez: tudo que você tem a fazer é ficar quieto! Agressivo jamais! Deixe que o viajante conte de sua viagem. Ele vai te dar em detalhes toda a viagem que fez. Os lugares que visitou, as coisas que comprou, as pessoas que conheceu, os parentes que reviu, etc. É claro que é inevitável que ele faça comparações com o lugar que ele visitou e a tua cidade. O que você tem a fazer é escutar, já que pelo visto você tem mesmo vocação para atendente do CVV.
Saiba: conversas de puxador de assunto jamais serão agradáveis. Se ele está se dispondo a conversar com você que é um estranho, é porque todas as pessoas que ele conhece já não agüentam o papo dele, o cara pode ser realmente insuportável. Ou simplesmente carente. E outra, as pessoas com quem você gostaria de conversar, dificilmente virão falar com você. Elas já têm gente demais para falar, não vão querer falar com um estranho. Sendo assim, o jeito é você se tornar um puxador de assunto de vez em quando. Então é sempre bom que você tenha toda a paciência do mundo com os puxadores de assunto. Afinal ninguém sabe o dia de amanhã, você pode se tornar um deles. Seja mais compreensivo. Para muitos a rua é um abrigo, juntamente com supermercados e bancos. Na verdade não é a inconveniência que cria puxadores de assunto. É a solidão, a carência, a vontade de falar com alguém, a vontade de ser ouvido, de ouvir a voz de alguém, ainda que seja um desconhecido. Os puxadores de assunto por mais chatos que possam parecer, não são chatos, são mendigos, mendigam sentimentos, compaixão, diálogos. Mendigam palavras, como poetas medíocres em busca do verso. Por isso os assuntos são desagradáveis. Mas no fundo só querem registrar sua existência, a vontade de alguma coisa que querem, mas não sabem o que é, ou não querem dizer, ou não sabem como dizer, como poetas medíocres. Não há como fugir dos puxadores de assunto, eles são muitos.





t.c.s.










segunda-feira, 9 de junho de 2008

Kawabata e as prisões do ser humano


Yasunari Kawabata fez muito mais que livros, sua concepção de como contar uma história ia sempre além de incluir significados na espuma leve do texto; a busca dessas vivências para o leitor deveria ocorrer no corpo cavernoso dos detalhes. A Casa das Belas Adormecidas é assim, muito mais que só um texto sobre ninfetas dormindo para o deleite de "velhos decrépitos", e sim um mergulho na grande luta do ser humano, tentando conviver e sobreviver às prisões que a vida lhe impõe.

Toda a delicadeza com que conseguia forjar "insólitas associações e metáforas táteis, visuais e auditivas que surpreendem por revelar os processos de fragilização do ser humano diante do cotidiano", ainda não diz tudo sobre essa intensa luta que o velho Eguchi trava nas noites mal (mesmo que bem acompanhado) dormidas, com esses entraves quase invisíveis da nossa vida.
O nosso dia a dia é um dos vilões, cheio de nuances, possibilidades, ambigüidades. Em vigília criamos barreiras para não deixar transparecer os nossos pequenos infernos pessoais, o corpo é um exemplo disso, sendo um invólucro que envelhece e se enfraquece e lidamos com essa e outras complicações da nossa vida muito mal; as recordações movidas pelas livres associações, onde como dizia Freud "o inconsciente é o próprio psíquico e a sua realidade essencial" é outra dificuldade; a atmosfera de sonhos onde "há um conteúdo manifesto que recordamos e contamos quando acordamos, que nada mais é do que pura fachada, máscara" também. São nesses universos que circulamos, num misto de concretudes e abstrações. São essas as pontes que Kawabata levanta ou demole na passagem do seu texto.

O livro conta a história de um velho que descobre, através de outro idoso, um local onde ele poderia passar a noite ao lado de uma jovem virgem, nua, adormecida quimicamente, fato que acende na nossa personagem um último resquício de desejo e talvez os últimos de moralidade, mas uma vez instalado na cama o que vemos é ele ser remetido ao reino das lembranças e também do onírico. Uma vez dentro desse quarto, ao lado de sua "bela adormecida", transborda o duelo entre o real e o irreal, ou como dizia Breton: "tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde", talvez seja para não perder essa crença na vida real que o velho Eguchi procure o local; uma vez nele, é como se penetrássemos numa via de várias possibilidades.

O que existe de concreto e pode ser tocado, a "chave comum", o cigarro, as cortinas que "pendiam nos quatro lados do aposento", a porta, a garota com a "mão direita até o punho para fora da coberta", se mistura à atmosfera de irrealidade que se instala diante da "surpresa de ser conduzido de repente para fora do real de sua vida cotidiana". Pronto a cena, o que vamos assistir então é essa mistura de sensações, de mundos. O corpo nu, morno ao seu lado, é a porta de entrada para recordações pungentes, logo Eguchi se perde entre o presente, tão irreal quanto os agora fatos passados, "bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu", já falava Breton no Manifesto Surrealista. "Nos seus 67 anos de vida, o velho Eguchi com certeza conhecera noites deploráveis. E essas noites lhe deixaram marcas das mais inesquecíveis. O deplorável não provinha da falta de beleza física das mulheres, mas de suas tragédias, suas vidas infelizes", o caminho para dentro de si, pode ser a salvação, e logo "recordações secretas" o alcançam.

Essa metáfora do quarto como sendo a nossa memória é comum na literatura, Kawabata não foge dela mas a amplia no limite pois as ações são mescladas e quase podemos vê-las ocorrendo ao mesmo tempo, embevecido com um seio jovem (que tem para ele um “formato tão belo”), deitado numa cama aconchegante, tendo, entrado numa viagem de reminiscências, quem sabe a sua última viagem e quem sabe “a última mulher da minha vida?”. Surgem cidades, Kyoto, com a “ferrovia de Hokuriku”, as “camélias despetaladas em plena floração”, um hotel em Kobe com uma amante.

São nesses momentos que podemos entender o que separa um grande autor dos outros reles mortais ou aprendizes de feiticeiros, um bom livro fica tanto quanto melhor, conforme a quantidade de caminhos que temos que trilhar para entendê-lo. A decrepitude do corpo, onde “já que a menina não acordava, o cliente idoso não precisa envergonhar-se do complexo de senilidade, e ganhava permissão de perseguir livremente suas fantasias a respeito das mulheres e mergulhar em recordações”, é onde nasce o reino das lembranças, amargas para quem não pode fazer mais do que ver e sentir “um êxtase inconsciente”; sendo o próximo passo o sonho “e o velho Eguchi sonhou”. Reinos misturados onde conforme Breton “alucinações, ilusões etc são fonte de gozo nada desprezível”.

Aparentemente a pequena história, com um quê de romântico pervertido; um velhinho nos últimos dias da vida, uma jovem adormecida que não sabe o que acontece enquanto dorme; logo tudo transcende, a velhice não é o melhor dos mundos, e é no mundo da imaginação, das memórias que todos nós nos refugiamos durante a vida toda, mas o fazemos pelo puro prazer de sonhar coisas belas, momentos de preparação para alcançar o sublime, concretizar planos. Só que é para esse reino que nos mudamos na terceira idade, agora presos ao invólucro do corpo, as lembranças não são mais só uma fuga prazerosa e sim um calabouço onde sonhos e pesadelos se misturam ao concreto e ao impossível da vida; vida essa, que nessa etapa, não tem nada de “melhor idade”, e quase sempre é de faltas e não de sobras, onde podemos vislumbrar só “uma luz misteriosa na profundidade das trevas”. E quais são as prisões do homem? O corpo e a mente...o concreto e o abstrato, vivemos entre esses universos diariamente mas na velhice ele não é mais uma janela prazenteira e sim com grades e alarmes nos lembrando que o tempo passou e nos enroscamos desastradamente nos fios da vida.

s.o.

sábado, 7 de junho de 2008

Grandes Esperanças - Resumo da ópera


Grandes Esperanças é o segundo dos romances de Dickens em que o herói conta sua própria história, e parece uma tentativa de preencher o que não foi dito em David Copperfield. Conta a história de Philip Pirrip, ou só Pip, como ele mesmo se contenta em chamar. Órfão de pai e mãe, mora com a irmã que é casada com Joe Gargery, o ferreiro. Pip tem por acaso a oportunidade de se tornar fidalgo, e se transforma num pequeno e desprezível esnobe. Começa com o pequeno Pip visitando o túmulo de seus pais e irmãos, mas essa bucólica cena, pelas mãos de Dickens, já é transtornada por um fugitivo d galé-prisão, que ataca violentamente o menino e, com ameaças, o obriga a jurar que voltará no outro dia com comida e uma serra. Nesse pequeno capítulo já percebemos toda força da narrativa dickensiana.

Passado esse medo inicial, que o atormentará por toda sua vida, Pip é mandado por sua irmã e seu tio Pumblechook, para visitas periódicas à Srta. Hawisham, velha e rica que foi abandonada no altar e por conta desse fato parece que sua vida parou no tempo e na determinação de, através de sua sobrinha Estelle, se vingar de todos homens. É nesse ambiente que Pip se apaixona por Estelle, é nesse lugar que tecerá algumas de suas “esperanças”. O relacionamento da Srta. Hawisham e de Estelle é como o de uma professora e uma aluna aplicada e Pip é um mero brinquedo nas mãos das duas. Sem a malícia necessária em tal situação, suas idas nessa casa, durante um bom período, não parece mudar em nada sua situação, temos um Pip puro, ingênuo e bom. Quando alcança a idade de 14 anos, tem que começar a trabalhar como aprendiz na oficina de Joe Gargery, o faz, mas não é com muito prazer. Até que sua sorte muda e recebe misteriosamente uma renda mensal de um doador desconhecido, que Pip crê ser a Srta. Hawisham, em um dos seus surtos esperançosos, sendo, acredita ele também, tudo uma preparação para que futuramente possa se casar com Estelle. Mas Dickens não entrega assim de mão beijada sua criação, seus heróis tem que passar pelo purgatório para merecerem o céu.

Pip deve sua renda misteriosa ao condenado com quem, na sua infância, fizera “amizade” nos charcos. O próprio Abel Magwitch (o forçado agora chamado de Provis) era filho de um pobre funileiro que, “desde quando se entendeu por gente roubava nabos para viver”. Mais tarde ele fora explorado por um patife da nobreza (por acaso o mesmo que abandonou Srta. Havisham no altar) que se tornara escroque e que deixou Magwitch ser surrado quando ambos caíram nas mãos da lei. O pobre plebeu ficara impressionado com as vantagens que a condição social de seu companheiro - fora mandado para uma escola pública – lhe conferira aos olhos do tribunal. E, quando mais tarde Magwitch prosperou em Nova Gales (onde se encontrava banido pela lei inglesa), decidiu fazer de Pip um fidalgo. Desse modo Pip se viu numa situação em que o dinheiro que o prendia a Magwitch se não o associava a uma pobreza e ignorância mais abjetas do que aquela da qual escapara, o colocara sob as ordens de um indivíduo que representava para ele a escória do submundo, um homem com um preço sobre sua cabeça. Não apenas isso, mas a orgulhosa lady – que conheceu Pip na sua primeira fase e o desprezava tendo-o em conta de um simples menino de aldeia – é apresentada como sendo a filha de Magwitch e de uma mulher que tinha sido julgada por assassinato e que ora está empregada na condição humilde de governanta na casa do advogado que a defendeu.

O símbolo aqui são as “grandes esperanças” que tanto Pip como Estela alimentam: eles são a imagem do otimismo vitoriano do meio do século. Estela e Pip acreditaram ambos que poderiam contar com uma rica patroa, a herdeira de uma fábrica de cerveja então parada, para lhes assegurar contra a vulgaridade e as privações. Mas a patroa desaparece como um fantasma e eles ficam com os costumes de lazer da classe, sem as rendas suficientes para mantê-los. Eles tinham a princípio de se perderem um do outro também, Estela devia se casar por dinheiro com um gentil-homem do interior e Pip nunca mais a veria senão por breve instante em Londres. Eis a última esperança de Pip, que acompanhamos com interesse, pois vemos ele passar por todo um ciclo psicológico. No início, ele é simpático, em seguida, por um processo mais ou menos natural, ele se torna antipático, tornando-se depois de novo simpático. Ali os efeitos tanto da pobreza como da riqueza são vistos de dentro de uma só pessoa.

Nesse processo de transformação pelo qual passa acompanhamos então sua vida numa Londres próspera, e dentro dessa sociedade Pip alcança o céu e o inferno. Sempre suas “grandes esperanças” são demolidas, Estella se casa com uma pessoa simples, porém, desprezível, somente pelo dinheiro; Srta. Havisham se mata e não é sua benfeitora; Joe se casa com Biddy, professora que era apaixonada por Pip, antes dele sair da sua cidadezinha; Magwitch, o forçado se apresenta como seu protetor o que lhe causa extremo horror e vergonha. É nesse processo de perder, ganhar, viver num patamar bem maior que poderia, enfrentar seu passado, tanto diante da Srta. Havisham, Estelle ou Magwich que podemos perceber o amadurecimento de Pip, sua transformação se dá de maneira completa através do sofrimento.



s.o.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

No caminho da palavra



Houve um tempo, segundo Calvino no seu Cavaleiro Invisível, que "era uma época em que a vontade e a obstinação de existir, de deixar marcas, de provocar atritos com tudo aquilo que existe, não era inteiramente usada, dado que muitos não faziam nada com isso - por miséria ou ignorância[...]"; esse tempo ressurge em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Considerado pela crítica especializada (ela existe?) como um romance social ou do ciclo da seca, é assim repassado a quem interessar possa. Abandona-se um longo e pedregoso caminho, apequena-se possibilidades que o autor levou às últimas conseqüências. Analisado de modo simplista, os ingredientes estão todos lá, a caatinga, os viventes, as aves de arribação, os animais mortos, urubus que "arrancam olhos". Uma vez ultrapassado esse primeiro contato, um novo mundo se descortina ao leitor; caímos no reino do onírico, das prospecções dos abismos da alma, da incomunicabilidade, do pesadelo, da condição humana como um fardo da existência, e temos uma busca paradoxal no encalço da linguagem, da palavra que falta, que grita, que pode salvar.

As personagens atravessam a narrativa perdidos entre tempos desconexos, são retirantes, vagam atrás de um lugar melhor, mas, principalmente, buscam um espaço onde possam estar nesse mundo. Suas ferramentas são parcas, se comunicam, ou ao menos tentam, guturalmente. O papagaio arremedava a todos, pois os sons eram puramente onomatopéicos. Transbordam de vazios incompreensíveis, se ressentem dessa falta maior: a linguagem. Quando Fabiano descobre que os filhos "têm idéias", se assombra; o crescimento deles, essa possível curiosidade cria "uma perturbação que sente", pois para ele é mais simples ensinar a praticidade do trabalho. Seus pensamentos quase transbordam pois se lembra do amigo Tomás da bolandeira, o "mais arrasado homem do sertão", "porque lia demais". Segundo Fabiano "pessoa como ele não podia aguentar verão puxado". Temos aqui um darwinismo total, no sertão até os fortes tem dificuldades de sobreviver, por isso é preciso ser forte e simples sempre, pois a morte está sempre se "avizinhando a galope".

Através das técnicas freudianas do fluxo da consciência, as personagens travam seus diálogos silenciosos. Tudo se conecta e se perde em instantes. Fabiano diante do soldado amarelo pensa que diz e não fala, quando fala não diz: "Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto etc. É conforme". Graciliano entrecruza o seu texto com conjugações verbais que desnorteiam o leitor, passado, presente e futuro se misturam, criando atmosferas oníricas, de sonhos ou pesadelos. Preso Fabiano na cadeia e na falta de linguagem "queria berrar para a cidade inteira"; a fuga de um drama se dá recordando de outros piores, mas conhecidos, assim logo devaneia com a seca e com suas faltas. Sinhá Vitória sofre com seus pensamentos que flutuam num ir e vir monocórdico, desfragmenta-se, chega a duvidar até do que está pensando: "Encostou o fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava pensando?". Como passamos o texto lado a lado com o narrador, nos perdemos nesse descaminho, onde estamos agora? Quem está pensando o quê? É tênue esse limite, só sabemos que o narrador é culto e que nossos heróis são capengas no falar, limitados e flutuantes no pensar. "Nesse ponto as idéias de sinhá Vitória seguiram outro caminho"; é assim como um carro de bois, aos trancos e barrancos, que a história segue. Quando Fabiano diz que sinhá Vitória tinha "pés de papagaio" isso faz com que ela se lembre do papagaio que virou almoço e logo a seguir da seca, pesadelo maior e que sempre volta num eterno retorno.

Graciliano consegue, e talvez seja um dos melhores nisso, introduzir no texto imagens translúcidas, aproveitando para, através delas, alcançar as prospecções dos abismos da alma; suas fraquezas, seus desejos, suas surpresas e indignações. Os meninos quando chegam à cidade se admiram de tudo “Impossível imaginar tantas maravilhas juntas”. Sabemos quando estão desconfortáveis e queremos até ajudar nesse momento ruim, para Fabiano a roupa nova é como a prisão; os pés de sinhá Vitória doem horrivelmente. Estar assim entre tantas sensações reais e outras devaneadas, desnorteia. Leitores e personagens ficam como que perdidos “Impossível readquirir aquele instante de inconsciência” avisa o narrador; Fabiano rebate nesse diálogo que parece só deles “- Como a gente pensa coisas bestas”. De monólogo em monólogo nos assustamos quando Fabiano se pergunta “Quantos anos teria?”, perdido e despersonificado, ele existe mesmo ou é só um sonho?

Mas é na busca da palavra, de uma linguagem que os recrie, que Graciliano se esmera. É uma batalha feroz, todas as personagens sentem falta ou são surpreendidos pela palavra: o menino mais novo quer falar, faltam-lhe esses apetrechos verbais. Admira o pai e não consegue exprimir isso. O menino mais velho aprende a palavra inferno, quer saber o que significa, mas sem ter como lhe explicar “sinhá Vitória aplicou-lhe um cocorote”; ele “tinha um vocabulário tão minguado como o do papagaio”, acha que “todos os lugares conhecidos são bons”; a descoberta da palavra inferno já é uma admiração. Quando se reúnem em volta do fogo no inverno (e assim se assemelham aos homens das cavernas ou até às sombras da caverna de Platão) sentiam necessidade de verem o rosto de Fabiano para tentarem decodificar o que ele falava, pois é como se assim fosse possível domar as palavras que saiam da boca dele.

Nessas histórias contadas à luz de fogo, Fabiano mente, aumenta, reconta com palavras diferentes (como se fosse possível), o filho mais novo não gosta “Teria sido melhor a repetição das palavras” avisa o narrador que diz também que o menino “Brigaria por causa das palavras”. Na festa da cidade, os meninos se maravilham com tudo e “nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão, provavelmente aquelas coisas tinham nomes”; e assombro maior “Como podiam os homens guardar tantas palavras?”, pois “livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas”; é a mesma surpresa que teve Cortéz, conquistador do México, que numa carta para o rei da Espanha diz: “eu queria falar de outras coisas da América, mas não tenho a palavra que as define nem o vocabulário necessário”. Quando sinhá Vitória é capaz de pensar lógicamente, cortando caminho: “as aves de arribações matam o gado”, Fabiano se admira, a considera muito esperta e sente-se feliz por tê-la como companheira. E na hora da fuga, quando o sertão está novamente em brasas é devaneando nas palavras de sinhá Vitória que Fabiano encontra forças para continuar: “As palavras de sinhá Vitória encantavam-no”. “E andavam para o Sul, metidos naquele sonho”. Sonhos trazidos pela palavra, ou palavras que levam ao sonho, mas de toda maneira palavra que é a única que salva quer seja na vida ou no devaneio.



s.o.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Fabrício Carpinejar


Fabrício Carpinejar, Poeta, Jornalista, Mestre em Literatura, Gaúcho, 35 anos. Tem doze livros publicados. Seus textos são marcados principalmente pela arte de poetizar o cotidiano, enxergar a beleza oculta nos acontecimentos mais corriqueiros. Em seu mais recente livro, Meu Filho, Minha Filha, decanta as sensações paternas diante do universo infantil. Também traz sempre novidades poéticas em seu blog, no qual publica crônicas quase diariamente. Além disso, viaja por todos os cantos do país liderando palestras nas quais trata da Literatura sempre com o máximo bom humor, deixando os participantes sempre num clima de imprevisibilidade e de riso quando Carpinejar começa contar as histórias dele, supostamente biográficas. Recentemente esteve em Campo Grande, onde presenteou a cidade com mais um módulo de sua Oficina de Construção Poética e nos intervalos desta, nos concedeu uma entrevista-bate-papo

Fabrício, como seus filhos receberam Meu Filho, Minha Filha?

Fabrício Carpinejar: Eles não têm obrigação de receber. A Mariana leu e disse: “- ótimo... exagerou um pouco...”. Eu li alguns poemas pro Vicente, ele tem seis anos agora, ele disse “- vamos jogar futebol agora?”. Eu não escrevi o livro para a minha família, eu escrevi o livro pra sair dela, para tentar reequilibrar a figura do pai, porque é uma figura ainda muito subestimada. O pai não tem realmente os mesmos direitos que a mãe na justiça, o pai, pra ficar com o filho, ou a mãe não quer ou haverá maus tratos, mas se a mãe é boa, como realmente todo mundo quer que seja, não tem igualdade de condições.

Explique “eu deixei de ser teu pai para ser a pensão da tua mãe”...

F.C.: Isso é a coisa mais difícil pela qual um pai pode passar. Eu pagava a pensão pra minha filha, em acordo verbal, e de repente eu recebo: “Mariana Carpi Nejar versus Fabrício Carpi Nejar”, é um baque. É uma violência simbólica. Eu acho legal a pensão, mas é uma violência simbólica você perceber que é real da tua filha. É uma violência simbólica, sem que a criança saiba, porque a criança não tem como pesar isso. Tem de ter um cuidado para o pai não sangrar, porque se o pai sangra o filho sangra junto; da mesma forma, se eu atingir a mãe dela, eu estou atingindo minha filha. Como é que eu vou atacar a casa dela? Colocar a pedra no chão é muito mais difícil que arremessá-la...

Então pisa-se em cacos, sem direito a revidar?

F.C.: Eu acho que é uma mistura trágica da figura do marido e da figura do pai. Muitas mulheres não conseguem distinguir, elas acabam tratando do marido, esquecendo que ele é pai. A criança vai receber o quê, vai receber o pai ou o marido da mãe? O marido. “Ah, ele me abandonou, ele não me amou, ele foi um canalha...”, de repente o cara foi um ótimo pai pra criança, e pra criança ele é tudo de bom. Acaba criando um adepto, correligionário; isso é terrível, e a criança acaba depois na adolescência cobrando do pai.

Fabrício, você acha que a juventude lê pouco? Se sim, que motivos você atribui a isso?

F.C.: Acho que a juventude não lê pouco, lê tanto quanto antes. Talvez ela não leia tanto livro, mas ela lê. Na internet, por exemplo, ela tem mecanismos de leitura: revistas digitais, sites, blogs. Eu acho que ela está perdendo um pouco a seqüência, ela está perdendo o enredo. A gente está transformando a leitura num zap de tevê.

Isso é bom ou ruim?

F.C.: É outra tensão, muito mais dispersiva, mas eu não sei até que ponto isso é ruim. Antes criticavam a minha geração, que é a geração da tevê, dizendo que ela seria totalmente alienada, e a geração do videogame, e descobriram que essa é a geração mais concentrada, pois o videogame ajuda na fixação das imagens. São tabus. O mercado do livro caiu muito, mas eu não sei se diminuiu a leitura. Talvez seja uma época da safra dos romances exóticos: se tem um romance, por exemplo, da Ásia, todo mundo quer ler, o pessoal quer fugir dos seus problemas.

Informação, conhecimento e sabedoria: o jovem ele tem acesso à informação pela internet, mas ele tem de processar essa informação para que ela se transforme em conhecimento, e sempre estar se reciclando, para que esta informação vire sabedoria. O jovem não está tendo um excesso de Informação, sem que consiga alcançar o resto?

Não é um problema só do jovem, também é do adulto. Há uma precocidade no texto, que atinge todas as faixas etárias. O que nos dava um elo eram as histórias da família. A contação de histórias, porque a nossa fonte é a família; a gente confirmava as informações como os pais. Isso está se perdendo, a gente não tende a reconhecer a sabedoria dos mais velhos, porque ficamos distante deles. Se alguém vai contar uma história para nós e fica dando voltas, a gente já sai de casa.

Na lista de livros mais vendidos, chovem Dans Browns, Caçadores de Pipas, Paulos Coelhos. O mundo emburreceu?

F.C.: Não, é exotismo. Porque tu vai ver que tem livros bons ali. A gente não pode dizer que Caçador de Pipas é ruim, bem melhor que Paulo Coelho. A Menina que Roubava Livros é um bom livro, Reparação do Ian McEwan é um romance muito bom, é deprimente no começo, depois é um sufoco voltar para casa e ser feliz, um sufoco!

A literatura hoje parece uma necessidade das pessoas de afirmação, de encontro, é uma busca individual. Seria essa a razão do sucesso desses livros?

F.C.: O grande marketing do livro ainda é o boca a boca. São livros que um recomenda ao outro, uma inveja, “- ah ele tem esse livro? eu quero ter". Reparação entrou na lista, foi lançado há mais de cinco anos. Ele foi relançado, em função do filme, assim como Tropa de Elite, assim como Meu Nome não é Johnny... porque atinge um grande público, sai daquela casta dos iniciados.

É uma literatura mais fácil?

F.C.: Vá lá: Morte e Vida Severina, virou seriado de TV, é um poema dramático, um auto de Natal de João Cabral de Mello Neto. Na época que virou um seriado de TV o livro despontou, é um livro absurdo, mas é um belo livro e teve uma ótima adaptação, assim como Grande Sertão: Veredas. É justamente a adaptação que vai fixar o livro.

Seria uma espécie de popularização, de treinar a deglutição do livro?

F.C.: É exatamente. O importante do livro é ser lido. Aliás, nem sei se os livros da lista são lidos, são comprados, isso eu tenho certeza, comprados são, está na lista.

Muitas vezes, entre o livro e o filme, a pessoa opta pelo filme, e não lê o livro porque ela acha que ali vão estar todos os elementos que tem no livro...

F.C.: Em alguns momentos o cineasta acerta, o Reparação é muito fiel ao livro, Meu Nome é Johnny é também é muito fiel. Não sei...

Desse modo a pessoa não lê o livro.

F.C.: Sim. O pior é que no Reparação eu não li o final do livro, não quis ler o final, aí eu fui ao cinema para assistir, sabe o que aconteceu? Faltando dez minutos falta luz no shopping...

Castigo...

F.C.: Total, vou ter que voltar a ler o livro.

Você acredita que em um autor vida e a obra se misturam?

F.C.: Não pode terminar na vida do autor, mas pode partir dela; Tu quer a vida dele, só que não é biografia, é literatura. Eu tenho medo de encontrar os autores que eu gosto, tenho uma imagem tão bonita e cativante deles, e de repente, o cara não é espirituoso. Muitas vezes tu coloca na obra aquilo que tu não é na sua vida, isso tem que ser levado em conta, é uma saída. Eu faço questão de confundir minha vida com a minha obra, é uma delícia.

Você não tem medo de daqui alguns anos sair uma tese analisando você e sua obra?

F.C.: Eu não sou polícia para reprimir, mas a minha vida é inventada, por isso eu sou biográfico. Nem a minha mãe sabe o que é real ou mentira, eu confundi tanto a minha mãe que tu pode perguntar para ela, que ela não vai ter certeza.

Vamos fazer um exercício de imaginação kafkiana: você vai perder um dos sentidos. Qual o poeta Fabrício Carpinejar escolhe pra ficar sem?

F.C.: O nariz é o meu latifúndio improdutivo. A questão do ouvir para mim é muito importante, ouvir uma música, o ritmo. O tato é minha visão, antes de tudo. Uma mulher, por mais exuberante que seja, precisa ser vista com o dedo, com o toque. A visão não é a fundamental, ainda mais se eu perdesse hoje a visão: eu já teria como encontrar as coisas. O cheiro, assim, ver pelo cheiro... não sei, é uma pergunta islâmica essa....

O que mais te encanta então?

F.C.: O que mais me seduz é a narração, se ela me conta uma história é muito mais que visual, eu sou aficcionado por Mil e uma Noites em função disso, ali eu acho que trabalha essa questão, a fantasia, seduzir, explorar, saber provocar, ter personalidade para fazer isso, senão é “ah não sei”, “ah não quero”, “faz o que tu quiser”, isso é tão chato, “escolhe você”, não ter personalidade nenhuma, uma submissão, seguir o que outro está fazendo, seguir o que ela tá fazendo, não. Você pode escolher, mas eu quero ver a outra pessoa escolhendo, tem que saber errar também.

Suas palestras são sempre muito explosivas, e suas aulas também são assim. Você acha que a monotonia dos professores colabora com a inércia e a falta de interesse dos alunos?

F.C.: Tem que ter a questão do confronto, o aluno ele precisa ser incitado, não é para ser uma amizade fácil, precisa ser uma amizade estimulante. O desejo do escritor e do professor é que o aluno realmente o supere. O aluno precisa se superar, precisa questionar, e ser questionado. Gosto muito de ensiná-los, o que pra eles é apenas mais quatro horas para mim é tudo, aquilo para mim é minha vida. Isso interfere, a diversão também, você tem que se divertir na sala de aula.

Pode haver conteúdo e show numa mesma aula?

F.C.: O conteúdo é o show. Ter um conteúdo que é explosivo é show, mas o professor tem que ter sustentação psicológica, emocional, porque ele encontra resistência, retração. Chegar numa aula e falar coisas que as pessoas não admitem que possam ser ditas numa sala de aula, como sexo, por exemplo, ainda trava as pessoas.

Você leria o texto Involuntariamente Pornográfico - numa sala de aula?

F.C.: Sim, é um texto feito para isso, pra provocação, depois daquele texto, você acaba se sentindo invadido e reequilibra a intimidade. A gente tem vergonha de coisa que a gente não precisa ter, a gente precisa ter vergonha por exemplo da indiferença, da omissão, da competição. A gente precisa ter vergonha de um monte de coisa, vergonha do roubo, não vergonha disso, a gente acaba assumindo uma vergonha que não é pra ter vergonha, é o corpo é a liberdade do corpo.

Sexualidade: como você vê a maneira como as mulheres lidam com ela?

F.C.: As mulheres se cobram demais; elas querem ter respostas, respostas, respostas... A mulher assumiu um espaço que é delas, só que não deixou os espaços que ela tinha antes: continua com a casa, agora tem trabalho, agora tem que gozar, quer ser mãe; é muita coisa! O homem faz o que pode, a mulher quer a unidade, quer o conjunto, quer tudo, quer ser um pouco mais. Uma fome...

De abraçar tudo, de proteger tudo?

F.C.: É uma fome de mundo, de proteger, de se sentir protegida, de ser entendida, de ser explicada, porque para a mulher não basta sentir, ela tem que explicar o que está sentindo, o homem sente e não precisa explicar.

O homem ainda acha que domina o relacionamento?

F.C.: O homem não domina um relacionamento, o amor deve ser o único sentimento que dizima, que deserda. Eu sinto falta da dor de cotovelo, de chorar no bar por uma mulher, isso é bonito, descascar o rótulo de uma garrafa, beber até perder a consciência por uma mulher, sem contar outras situações vexatórias...

É uma falta de dignidade bonita?

F.C.: É luto. O homem é muito cobrado, tem de provar a toda hora que é homem. Passa a vida inteira provando que é homem, para os seus amigos, nas brincadeiras, escola, em casa. Quanto tempo nós demandamos da nossa vida para provar que somos homem? Muitos anos, pode somar, dá muito tempo! Por isso que eu acho que tem a inteligência gay. O gay não precisa provar que é homem, e também não é como a mulher que se cobra. Como tem tempo disponível, ele acaba sendo muito mais sofisticado na música, nas relações, muito mais amigo, muito mais humorado... Acho que os homens tem de aprender com a inteligência gay.

O gay está muito mais próximo da mulher...

F.C.: Mas é evidente. A mulher cobra do homem também masculinidade. Começa o relacionamento ela tá cobrando, e pode ser nas situações mais elementares, abrir a lata de pepino, matar barata, são obrigações de homem, trocar lâmpada, são obrigações de homem, não é? Carregar....ah pára; não, elas confundem homem com estivador.

Quando você encontra um livro seu no sebo, o que sente?

F.C.: Eu não me sinto rejeitado, mas têm poucos livros meus autografados no sebo. O público tem o direito de não gostar do que eu faço, e isso também é uma visão que o escritor precisa aprender, precisa absorver: a humildade. Quando que a gente escreve entramos numa certa paranóia de todo mundo ter de gostar, a gente condena os outros a gostarem da gente, não admitimos nenhum contraponto. De repente sua obra pode ser ruim, tu tem que aceitar isso. Ninguém tem a grandeza de te botar no chão, mas você precisa dar o direito de escolha.

Como você lida com as críticas?

F.C.: Se ela não ataca a vida pessoal, não é sarcástica, eu acho que é bom. Mas se ela não respeita minha vida pessoal, eu fico chateado mesmo. Se for uma crítica legal eu recebo numa boa, ainda mando “-agradeço a leitura do livro”, isso eu aprendi. O Faulkner dizia o seguinte: “escreve uma resposta, vai lá escreve uma resposta, depois lê, lê uma segunda vez, e rasga. Você já respondeu, só não precisa entregar”.

Como o povo gaúcho vê a sua poesia?

F.C.: Tenho uma empatia muito grande com o público gaúcho, a luz de Porto Alegre é uma luz coada, eu sinto falta. Às vezes se eu fico mais de uma semana fora de casa minhas personalidades cindidas começam a se afastar, só minha mulher para reunir minhas personalidades. A amizade ajuda a literatura, a literatura brasileira cresceu em função de grandes amizades, Drummond amigo do Fernando Sabino, que era amigo Rubem Braga, que era amigo do Hélio Pelegrino, que era amigo do Otto Lara Resende; um competindo sadiamente com o outro...

Estão faltando elos na literatura?

F.C.: Ambição, a ambição faz os elos. Na verdade, se uma pessoa é muito boa, você se afasta dela. Nem leu a obra nem nada, diz que é metido e tenta criar fofocas a respeito. Se tu percebes que tem um baita talento na tua época, o que não é uma coisa fácil, tu não vai dar força? Não vai chegar perto? É um crime!

Qual a coisa mais absurda que você já vivenciou como poeta?

F.C.: Tem uma história engraçada: eu fui convidado para celebrar um casamento, agora, no final de março. Já fui padrinho, já fui o marido, agora eu vou celebrar um casamento. Um casal de leitores da minha poesia parte do princípio que nada melhor que um poeta para celebrar o amor. Vou ser padre!

Qual a maior qualidade de Campo Grande?

A maior virtude de Campo Grande é a contação de histórias, então as pessoas elas são contadoras de histórias mas não lêem, isso é um paradoxo. Porque aqui acontece diferente de outros estados, no Rio Grande do Sul, se você é um contador de histórias, você lê, a contação de histórias leva pro livro, o livro leva pra contação de história, aqui a contação de história só leva para a contação de histórias, a pessoa não sente necessidade do livro, o livro é dispensável. Não sei se é pela ausência de bibliotecas familiares, não sei, pode ser. Porque se você forma uma biblioteca, você sabe que ali tem uma história pra ser contada. Eu não entendo porque aqui a literatura é vista como literatura não é como vida. Teu melhor dos relacionamentos é com a literatura. É que as pessoas não entendem a literatura como reflexo de uma atitude, como reflexo de uma vida, como reflexo de uma escolha. Você pode ser médico é a leitura que vai te tornar um médico melhor , se for psicólogo é a leitura que vai te tornar um psicólogo melhor, latifundiário, é a leitura que vai te tornar melhor. É o trato com as pessoas; só que eles percebem a literatura com se fosse...

Um universo paralelo?

F.C.: Um universo paralelo, é isso. Acham que não é necessário, que não é fundamental, que parece conversa de louco. Talvez o grande papel de todo o país seja formar leitores, não escritores, leitores sem a ânsia de publicação. Leitores jornalistas, funcionários públicos. Que lê o livro pelo prazer de ler, não por querer escrever.

É possível um leitor que não queira escrever?

F.C.: Claro que é! Grandes escritores são feitos desses leitores. Se a gente escrever para escritores, nosso público é muito limitado.

Um grande escritor não é antes de tudo um grande leitor?

F.C.: O grande escritor é um grande leitor, mas um grande país é feito de grandes leitores que não precisam escrever. Nós somos apaixonados pela literatura e a gente não consegue pensar nisso de forma diferente. Mas se tu pode apenas ler só pelo seu prazer e isso é que vai fazer a lista dos mais vendidos.

O que fica de Campo Grande pra você?

F.C.: Eu gosto muito daqui. Talvez sejam as pessoas de quem eu me aproximo, eu não sinto fingimento. Mas algumas coisas que acontecem aqui me incomodam: a falta de editoras, a ligação da literatura com a coluna social, a pouca sintonia entre a música e a literatura, a ausência de literatura urbana. Literatura urbana, cidade, cadê? Parece que tu não tá no Pantanal tchê,..... As pessoas falam: “eu estou escrevendo em Campo Grande, então eu tenho que escrever à moda Manoel de Barros”. E quem disse que Manoel de Barros reproduz a obra de Campo Grande? De repente não. É uma coisa que tem que se saber. Quem é nossa voz genuína? Mas no Rio Grande do Sul se você vai pegar tem uma literatura iminentemente urbana, já teve toda uma literatura que preservava o passado, uma literatura mais aguerrida, o romance histórico, assim por diante; depois teve outros avatares; mas hoje se você vai pegar, literatura urbana, tem um sentimento político, Paulo Scott tu sente a cidade, Daniel Galera tu sente a cidade, a cidade é personagem, Amílcar Bêttega, Porto Alegre tá lá, o cais tá lá, o morro tá lá, tudo tá lá. É maravilhoso deslizar por descrições das tuas ruas, e dizer: “eu passo por esse livro todo dia”, ver um filme e assistir a tua cidade ali. Acho que a partir disso tudo se abre.


* Entrevista concedida dia 14/02/08, no Hotel Jandaia em Campo Grande/MS.


Thanks 1: Fabrício pela hora de conversa "totalmente excelente" que tivemos, mais do que uma entrevista foi um bate-papo que podia se estender indefinidamente que, pelo menos nós, não reclamaríamos.


Thanks 2: Aline pelo MP3.


Thanks 3: Para a equipe de produção, ou seja, nós mesmos: s.o./t.c./g.y.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A primeira vez num sebo


Confesso um pecado intelectual: nunca tinha visitado com tranqüilidade um sebo. Mas sempre tem a primeira vez. Acabo de sair de um. Ao me encaminhar para o ponto de ônibus fui meio zonzo ainda meio extasiado por tanta magia.
Ver as infinitas lombadas de livro é como ver uma multidão de mulheres maravilhosas de perfil, enfileiradas como dominós em pé. Agora inventaram o tal Estante Virtual, uma economia que nos rouba um prazer. Nada como o prazer de molestar os livros, folhear suas páginas, violar suas páginas, como se faz com o vestido da mulher amada. Aí que raiva, encontrei tudo que queria! E é justamente esse o problema. Encontrei tudo o que queria, só me falta encontrar todo o dinheiro que queria. Por mais que os sebos se apresentem com preços módicos, mas são tantas emoções! Dá vontade de levar tudo para a casa.
Nessas horas que reconheço a importância dos analfabetos funcionais. O que seria de nós se não existissem aqueles que não gostam de livros, que não os entendem? O que seria de nós se simplesmente não existissem aqueles que odeiam ler? Sebo é um orfanato de sonhos. Arrepio-me quando vejo páginas amareladas olhando para mim, dedicatórias que nunca me foram feitas. Uma sucessão de rabiscos que me enchem os olhos. Encontrar rabiscos em livros me faz me sentir menos só, pois há um diálogo entre mim e o leitor anterior e me dá certeza de que a leitura não é um prazer solitário. Quando leio meus cinco sentidos se despertam. Afago o papel, sinto o cheiro envelhecido ou o frescor da celulose, saboreio as palavras, vejo as palavras minuciosamente desenhadas como o sistema solar, ouço o tilintar da virada de cada página como uma lenta melodia.
Definitivamente a leitura faz as pessoas mais interessantes. Homens e mulheres não são mais os mesmos. As conversas são cada dia mais requintadas. Para muitos sempre seremos chatos, nerds, e ignorarão a nossa existência, a nossa convivência. Perdoe a eles senhor, não sabem o que fazem!
t.c.s.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Orfeu

Na hora da divisão das tarefas celestiais um anjo que adorava fazer nada fugiu do céu, vagou aqui e ali, um passarinho encantado brincando entre nuvens e crianças. Descobriram-no, cortaram-lhe as asas, ganhou nome e endereço pouco fixo, Cássia Eller. Do seu tempo divino restou a voz; ela era uma das sereias que cantou quando Ulisses voltava para casa. Pensava nisso quando ia para o show dela na tenda do parque das Nações, era a véspera do lançamento do Acústico, era a oportunidade de ouvir os gritos mais famosos desde que Cazuza tinha ido embora. Era a chance, e não sabíamos, de vê-la pela última vez ao vivo, viva. Ela que descobriu esconderijos na garganta, que tinha uma timidez espalhafatosa, ela que no palco se transmutava, como se tivesse nascido nele ou para viver dele.

Quando ela surge e, nós já enfrentamos o enorme vai-e-vém das pessoas procurando e desprocurando o melhor lugar, é como se o mundo ficasse no ar. Não seria sua voz quem segurava os Jardins da Babilônia? Sua banda é o melhor acompanhamento possível para o apocalipse que se forma dentro do circo. Aos primeiros acordes de Partido Alto somos acariciados por um elefante, estupidificamos nossas sensações, somos joguetes nas suas mãos de unhas roídas. É como se o céu abrisse e de lá viesse uma voz dizendo: "essa é minha filha preferida", seu canto quase nos arranca da arquibancada, nos sustentamos como podemos e a cada pausa não conseguimos sequer saber o que nos atropelou, mas ela logo pega nossa mão e nos coloca no caminho errado de novo.

Ela bebe algo, lembro que também estou com sede, hipnotizado não saio do lugar, ou melhor não páro de pular no meu lugar; começam os acordes de Segundo Sol e lá vamos todos saborear o que restou da ambrosia que ela se deliciava quando morava no céu. Ela não canta Malandragem e ninguém se lembra de pedir, ela ressuscita Kurt Cobain e nós seguimos nosso mestre de cerimônias. Ela sorri, brinca, sua carótida quase explode, "Hoomeem-Pássaroo"; Cássia é a, como dizia Cortázar sobre Louis Armstrong: "alegria dos homens que te merecem". No fim restam milhares de pessoas que procuram lentamente e sem vontade a saída, cada um perdido nos seus monólogos interiores, que segue repetindo, como se estivessemos dentro das ruínas circulares de Borges, e no meio dessa conversa (ab)surda Cássia ainda está ecoando tal qual Orfeu diante do trono de Plutão e Prosérpina, tentando levar Eurídice com ele.

É NOCHE DE VERANO

Pulsas, palpas el cuerpo de la noche,
verano que te bañas en los ríos,
soplo en el que se abogan las estrellas,
aliento de una boca,de unos labios de tierra.

Terra de labios, boca
donde un infierno agónico jadea,
labios en donde el cielo llueve
y el agua canta y nacen paraísos.

Se incendia el árbol de la noche
y sus astillas son estrellas,
son pupilas, son pájaros.
Fluyen ríos sonámbulos,
lenguas de sal incandescente
contra una playa obscura.

Todo respira, vive, fluye:
la luz en su temblor,
el ojo en el espacio,
el corazón en su latido,
la noche en su infinito.

Un nacimiento obscuro, sin orillas,
nace en la noche de verano.
Y en tu pupila nace todo el cielo.

OCTAVIO PAZ

PS: Show realizado em Campo Grande/MS, no ano de 2000 - acho eu - num Circo montado do Parque das Nações Indígenas, com ingressos a R$ 6,00, parte do projeto Temporadas Populares que trouxe durante três anos shows sensacionais como esse e Ira!; O Rappa com Yuka ainda; Lenine (que não tocou pois acabou a luz); Zeca Baleiro; Chico César; Los Hermanos quando recém tinham recém-lançado o Bloco do Eu Sozinho. Projeto que acabou pois diziam que quem morava na periferia não podia ir ao shows, sendo trocado pelo Festival de Inverno de Bonito onde os periféricos, agora sim, não tem acesso nenhum.

s.o.