quarta-feira, 30 de março de 2011

Borges extraterritorial


Hoje em dia Jorge Luis Borges, o escritor argentino, é uma sumidade. Nem sempre foi assim. Sua repentina fama data do ano de 1961 quando ganhou juntamente com Samuel Becket o prêmio Formentor. Depois disso o mundo repentinamente sentiu-se atraído por quase tudo que ele escreveu, e passou-se a consumir avidamente suas estranhas iguarias. Ironia das ironias para quem vendeu apenas 37 exemplares do primeiro livro. Hoje em dia Borges é uma marca, sozinho é uma empresa lucrativa que vende muito a cada reedição. Suas monomanias agora tornaram-se a dos leitores: livros, bibliotecas, a cegueira, espelhos, labirintos, tigres, um outro eu, o tempo. Pensar que talvez por não ser tão conhecido Borges pudesse ter abandonado tudo, começado a escrever sobre outros assuntos, mas não, ele sempre permaneceu fiel a si mesmo.

Borges depois de conhecido mundialmente passou a ser copiado ostensivamente. Suas características podiam ser simuladas por escritores atentos, e foi o que fizeram, criaram do universo borgiano uma alegoria kafkiana, um mundo inundado de alephs, suspenses, intrigas. Mesmo assim, impressiona como um mundo particular ultrapassa o espelho e atinge todas as realidades possíveis. É que por trás das peculiaridades borgianas tinha um gênio de extremo e apurado rigor linguístico. Tudo é linguagem e a linguagem que salta da erudição de Borges é quem mantem de pé, por tanto tempo, o edíficio de suas obras. Suas particularidades escondem-se sobre o manto da universalidade, Borges está em casa em casa falando o inglês, francês, alemão, italiano, português, anglo-saxão e nórdico antigo, e é óbvio o espanhol, sendo que ainda tentou aprender japonês quando era bem velho. Borges é extraterritorial, escarafunchando o mundo que o rodeia, sendo guiado pelo seu "báculo indeciso", penetrando em diversas culturas.

Como explicar sua intrincada trama de alusões bibliográficas, reais ou inventadas; as citações são ás vezes tão eruditas que deixam o leitor perdido; suas referências cabalísticas, filosóficas, fazem, nesse tempo em a sabedoria parece ter fugido da face da terra, perceber que seu conhecimento beira a uma construção surrealista. É surreal o modo como Borges inventa e se reinventa o tempo inteiro sem sair do mesmo lugar. Repete, repete mas nunca se repete. Borges faz um inventário da civilização, salvando pequenos fatos do ostracismo, dando-lhe uma nova concepção, tornando desnecessidades em fatos quase reais e profundos, a golpes de muita imaginação. Toda sua estratégia baseia-se em reagrupar "peças da realidade sob a forma de outros mundo possíveis".

Sua concisão é o lugar de onde se enuncia. Do formato de contos, que teve por mestres Tchekov, Maupassant, Borges ergue um mundo extremamente fechado. Se hoje podemos dizer que temos uma vasta memória, Borges está na origem dela. Sua brevidade, aliada a sua erudição, somado a uma imaginação prodigiosa ainda assim não conseguem explicar de todo o fenômeno Borges. Ele mesmo explica que sua visão, a princípio fraca, depois nenhuma, o obrigam a compor mentalmente e que assim erguer um romance seria uma prova de força, uma complicação desnecessária, logo, acabou criando no formato de contos obras-primas justamente por conseguir de um só folêgo contar uma história que necessariamente não precisava de um fecho, ou até mesmo podia ficar sem aprofundar muitos fatos.

Borges insere-se nessa categoria dos escritores que partindo do seu idioma pátrio, conseguiram através da apreensão de novos idiomas, uma complexidade no modo de pensar; um, talvez, olhar oblíquo diante de um mundo estranho. Como Becket, Nabokov, Wilde, Pound, Conrad, Borges ultrapassa a barreira da linguagem, expressando-se ou compreendendo outras línguas. Esse acesso a uma infinidade de possibilidades textuais ampliaram seu universo pessoal e ao misturar nesse caldo extraterritorial suas teimosias ou credos, surgiu esse Borges colossal que temos hoje. Uma soma misteriosa de partes localizadas em bibliotecas esquecidas. "O grande escritor é tanto anarquista quanto arquiteto, seus sonhos solapam e reconstroem a remendada e provisória paisagem da realidade".


Fonte: "Tigres no espelho". In: STEINER, George. Extraterritorial - a literatura e a revolução da linguagem.



s.e.s.

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