terça-feira, 22 de setembro de 2009

Jorge

I

Sozinho ao volante do Voyage, vendo surgir e desaparecer curvas, mal conseguindo acreditar na quantidade de buracos da rodovia, indefinidos e surpreendentes, que teimavam em brotar, como armadilhas engenhosamente calculadas, Jorge pensava em sua vida como quem visita um parente distante no cemitério: levemente compungido e bastante incomodado. Seria sempre assim, ele achava, desde pequeno fazia a si a mesma pergunta: “por que tudo era tão difícil pra ele?”. Sentado em bancos de igrejas, apenas ficava mais confuso, jogavam-no de versículo em versículo, de parábola em parábola, mas nunca lhe diziam claramente: “é por isso!”. A escola completou seu quadro de desespero, pois os professores estavam ocupados demais mandando que decorassem isto ou aquilo, e a resposta não estava em nove vezes nove, mesmo ele sabendo que era oitenta e um à custa de muitos cascudos de sua mãe analfabeta e cintadas do pai bêbado.

Assim, quando o exército o abraçou, para honrar a pátria, ele quase foi feliz. Os novos companheiros, que dividiam tudo, de um copo de cachaça com molho de pimenta, aos gigantescos cigarros proibidos, dividiam igualmente socos e pontapés quando alguém decepcionava a maioria, mas eram a melhor família que já conhecera. Ele podia sentir tremores consistentes na boca do estômago quando montava e desmontava seu FAL em menos de um minuto ou quando conseguia fazer mais de 300 abdominais. Mesmo quando sentia horror nas madrugadas insones em que cumpria seu quarto de hora no mesmo dia em que estava de serviço o tenente Arantes, um maluco que chegara da escola de para-quedistas e aplicava os maiores castigos se pegasse um soldado dormindo ou desatento que fosse, “ah, sua malditas senhas e contra-senhas”. Tudo era tão real e sincero que até gostava. E os acampamentos eram o mais próximo da sensação de perigo real que já sentira, com seus exercícios estranhos, seus rigores descompensados, como se estivessem realmente se preparando para uma grande guerra que nunca chegou. Caminhar pelas trilhas à noite é bem parecido com o cortar o breu da estrada de carro, lá a luz vinha dos camaradas, aqui dos faróis – pena que fosse uma luz muda. Mesmo com todas as dificuldades vividas ali, no 17º Batalhão de Caçadores, ele foi feliz, e, longe dos camaradas sempre prontos para tudo da sua 2ª Companhia o medo lhe corroía a alma.

II

Agora, como que agarrado às suas memórias, um náufrago tentando encontrar pegadas na praia da sua vida, um Sexta-Feira qualquer que fosse, para assim não pensar no que estava fazendo. Essa viagem maldita, com sua carga maldita, com o maldito dinheiro que já havia recebido metade, e tudo por que seu olho esquerdo agora só via nuvens brancas entremeadas de cores inusitadas e mentirosas. Foi isso que ocorrera naquele dia. Só quando sentiu a pancada é que se lembrou que não enxergava quase nada e que o retrovisor esquerdo, para ele, era uma peça inútil; mas percebeu isso tarde o suficiente para toda sua vida mudar naquele fatídico momento. A empresa não se recusou a pagar os reparos, nem mesmo quando o proprietário do Honda Civic levou-o para a autorizada da rua Bahia – cujos proprietários eram notórios rábulas do conserto. Jorge nem teve tempo de descobrir a razão disso, foi demitido dois dias depois, sem justa causa, mas com todos os motivos aparentes: o estrago era grande o suficiente pra que ele ficasse sem salários por quase um ano; a empresa descobriu enfim aquela cegueira parcial; fora a terceira vez que ele se envolvia em algum tipo de acidente, terceira e última.

Depois de uma certa idade o desemprego é como uma doença contagiosa, todos o olhavam com desconfiança, ainda mais quando percebiam que a única coisa que ele havia feito a vida inteira fora dirigir veículos grandes: Expresso Mira; Viação Mota; Viação Cidade Morena e tantas outras empresas. Mesmo assim ele tentou. Enquanto tinha o seguro-desemprego ia fazendo uns bicos, pedreiro, descarregador de caminhões, segurança. Mas, quando a última parcela foi retirada na boca do caixa, e o Detran só lhe concedeu a carteira B, um frio esquisito passou pela sua nuca: como iria fazer agora? E quando tudo ia faltando perigosamente, inclusive os parentes, que esses são como gatos que pressentem a morte de algum morador da casa, Jorge resolveu viajar pra Corumbá e tentar por lá uma sorte que nunca teve.

III

“Seu Jorge” - disse um senhor atarracado, que estava próximo o suficiente pra que sentisse o cheiro de peixe e cerveja que ele exalava – “nós confiamos no senhor”. “Aqui está o endereço onde você tem que levar o carro, entra, deixa as chaves e os documentos e me liga”. “Lembre-se, se a polícia te parar que não sabia o que estava carregando e nunca me viu nem mais gordo nem mais magro...a sua família agradece”; falava e voltava-se para seu prato de costelas de pacu fritas, arroz e mandioca branca. Jorge sorriu amarelo com seu garfo a poucos centímetros da boca e só conseguiu balbuciar: “Sim Senhor, pode ficar tranquilo”. “Eu só fico tranquilo na hora que o carro estiver lá em Dourados, isso sim”. “Mas, por hora, pega essa grana aqui, e manda pra sua família; a outra parte o senhor recebe lá” e atacava o pacu despedaçando-o, retirando as espinhas e colocando-as em cima da mesa. A quantia era a mesma de três meses de trabalho duro como motorista de ônibus, aguentando aposentados que insistiam em tomar o coletivo na hora de pico; pessoas fedidas; mal-educadas; mal-encaradas; infelizes; estudantes estúpidos; ou aquelas pessoas que faça chuva ou sol, sempre dão um bom dia gorduroso; aqueles tagarelas que nunca se tocam. E ainda teria mais na hora que chegasse. Correu para o banco e na hora que pegou o comprovante sentiu que havia vendido sua alma definitivamente e teve vontade de fugir. “Olha, paga todas as dívidas mais velhas, e faz uma compra bem grande pra casa, entendeu?”; “Pai, onde o senhor tá? Tô morrendo de saudades, você vai ‘voltá’ logo? O Fábio quebrou minha boneca”...

IV

O sorriso de seu filho, as pequenas mãos da sua filha não lhe saiam da lembrança. Foi por eles, só por eles que havia se metido nesta enrascada, insistia para ele mesmo acreditar. Não poderia suportar vê-los passando necessidades, sem ter o que vestir, sem terem o que comer. A deficiência do menino já era um fardo por demais grande, e ele nunca havia reclamado nenhuma só vez disso. Nunca cobrou do hospital onde ele havia nascido perfeito e sido derrubado, por uma enfermeira desastrada, logo no seu primeiro banho. Não tinha dado um pio quando a sua pequena menina teve, pela primeira vez, que fazer uma cirurgia gigantesca na perna para retirar um tumor; nem reclamou na segunda, pois a primeira não foi bem sucedida. Apenas queria saber a razão de tanto sofrimento. Esses terrores voltavam agora, a cada posto da Polícia Rodoviária; toda vez que percebia que os carros estavam andando mais devagar à sua frente, que aleatoriamente eles estavam sendo escolhidos, como numa roleta russa com duas balas no tambor. Sabia o que significava ser uma mula, mas temia que fosse mesmo é boi-de-piranha, que seria entregue por quem o agenciara, para que um carregamento maior passasse em outro lugar.

Há poucos quilômetros de Dourados, livre das barreiras odiosas, conseguiu sentir fome, e, em Itaporã, num restaurante inusitado do lado de um fogão à lenha, se serviu da melhor comida caseira que já tinha visto, comeu de verdade pela primeira vez, desde que se sentara no banco daquele malfadado carro. Foram generosos pedaços de carne, quiabo, feijão, costela, frango; sorria por ter conseguido chegar e já não evitava pensar em Vânia, a mãe dos seus filhos. Sorria quando pensava como a havia conhecido, nos encontros na sala ou no portão da casa, quando tinha que comprar a ausência dos irmãos dela com doces. A gravidez inesperada, a fuga alucinada, aproveitando-se de uma viagem do pai dela. Os casebres em que moraram, um quadrado de madeira, ás vezes com chão de terra batida, mas sempre com uma cama, e era lá que eles foram mais felizes. Trepavam o dia inteiro, até que a barriga começou a incomodar. Depois do primeiro filho tudo havia mudado, pouco, mas ainda assim o suficiente para não ser mais aquilo que ele queria. Mesmo assim, logo depois veio a menina e, com a família, a responsabilidade de ser o homem da casa, como cobrava a vida.

V

Numa garagem, o local indicado, entregou o carro, e pegou o dinheiro - a segunda parte do trato. Comprou uma passagem pra Campo Grande que sairia às 20 horas, depositou quase tudo, e sentou-se num bar em pleno centro de Dourados, e ficou ali vendo passar as pessoas, enrolando o tempo com umas poucas cervejas. Sentia-se disperso, nem feliz, nem infeliz, apenas cansado. Trabalhadores cruzavam ruas, carteiros voltavam com bolsas vazias; pedreiros sujos de mais um dia de trabalho passavam à sua frente; empresários em seus carrões; mecânicos de mãos imundas, mas com a alma limpa, roçavam sua agonia. Queria chorar, rir, gritar, mas nada desatava o nó da sua garganta. Tinha acabado de entregar um carregamento inteiro de droga? Talvez cocaína? Quem sabe maconha? Ou então era só o carro mesmo? Não sabia, não queria saber, queria só ir embora.

Na manhã seguinte, cansado do terror da viagem, o ônibus em que estava encostou-se à plataforma. Jorge chorava lágrimas desesperadas, havia chegado ao fundo do poço da desilusão. Havia acreditado em todos os deuses possíveis e impossíveis até chegar ali. Agora, enfim em casa, vendo sua família ali, esperando por ele, compreendeu que não havia ido levar uma mercadoria qualquer; descobriu o que já sabia e havia esquecido, sua família estava acima das dúvidas celestiais. O que ele entregou em Dourados fosse o que fosse, não era mais nada, ele não ficou sabendo nunca o que tinha entregue, então mentiu, pra si e para todos, que se tratava de peças para recuperar umas máquinas que estavam asfaltando a via de acesso à fazenda de um político importante da região, cujo nome ele não podia falar – mas todos sabiam - jurara por sua mãe, Dona Alaíde, mortinha.



s.o.

sábado, 12 de setembro de 2009

Violada



Pedaços de comida cairam no chão ao primeiro espasmo que ela sentiu. Torceu o corpo violentamente e, às duras penas, golfadas iam voando aleatoriamente. Impossível evitar respingos nos sapatos. Aqui e ali, uma mistura esbranquiçada e fétida lavaram o piso. Um perito criminal diria com certeza o que ela havia comido e bebido. Sherlok Holmes diria até a razão para que os fatos ocorressem desse ou daquele jeito. O certo é que depois do terceiro vômito, serenado os ânimos, recuperado um pouco da cor, que havia fugido junto com os líquidos e sólidos, ela reparou que estava num banheiro minúsculo e que tinha conseguido emporcalhá-lo um bocado a mais. Fora, batiam insistentemente na porta. Amigos? Desconhecidos? Que se danassem. Ela só precisava de mais um pouco de tempo pra que o seu pequeno mundo parasse de girar, pra que conseguisse lavar o rosto, a boca, a garganta. Pra que seu cérebro pudesse se lembrar.


A roupa que vestia ela reconheceu. Não era dela. Mas ela já havia visto numa amiga, menor que ela, o que já antevia que algo ruim já havia acontecido. Será que ela havia vomitado na sua roupa? Que banheiro era esse? Vencendo seu asco, olhou para os restos do que havia colocado pra fora. Em que lugar ela tinha comido macarrão? Perguntas, perguntas. Sua cabeça que girava, seu estômago enjoado. Um desespero de dúvidas, dúvidas. Lavou-se. Com papel higiênico secou seu rosto, limpou seus tênis. Achou que algumas daquelas marcas não sairiam mais. "Que se foda", pensou. Aprontou-se o melhor possível e, enfim, abriu a porta.

Rostos desconhecidos surgiram. A primeira que entrou no banheiro, recuou enojada: "puta que pariu, que merda, tá imundo essa bosta". Ela livrou-se do pequeno tumultuo e descobriu que estava em uma espécie de baile. Devia ser uma dessas coisas atrozes em que duplas sertanejas tocam e um turbilhão de pessoas dançam e bebem. Um cartaz numa parede explicou o que ela já temia: "Violada da Patroa". Que diabo seria isso? Como, ela que odiava música sertaneja, estava ali naquele lugar? Nenhum rosto conhecido lhe aparecia, ela procurava a saída daquele inferno. Uma mão a tocou no braço, ela virou-se e viu, Gustavo, o cara mais lindo do mundo. Sua obsessão naqueles meses todos. Havia corrido atrás dele com uma disposição de maratonista. Ele a abraçou. "E aí, tá gostando benzinho?". Um novo engulho subiu-lhe até à garganta. Lembrou-se então de tudo. "Caralho", pensou.

Lembrou que tinha chegado cedo na casa da amiga. Que tinham começado bebendo cerveja, dois latões cada uma, que tinham jogado conversa fora enquanto faziam mãos e pés. Elas haviam dado banho de creme nos cabelos. Colocado sacolinhas plásticas na cabeça e tinham secado e, depois, esticado os cabelos com uma prancha. A amiga dizia animada: "meu, você vai sair com o Gu, nem acredito, tem que me contar tudo depois". Quando estavam quase prontas, outras amigas chegaram, trazendo vodkas, muitas vodkas. E enquanto iam experimentando roupas bebiam e riam. A casa em polvorosa. No banheiro uma ainda raspava os pelos com uma lâmina e muito sabonete Lux. Outra, atacava os cabelos com a chapinha. Batons, perfumes, pós. Troca de colares, pulseiras, blusas. Tudo ia ficando revirado, e ela, levemente bebada e ansiosa, achava ainda que iria para algum lugar tranquilo com o Gustavo, que iriam se conhecer enfim.

Antes de sairem dividiram preguiçosos nissins e beberam mais cervejas. A vontade de sair com o Gustavo ia sumindo numa bruma de álcool e barriga cheia. Maria que era quem conhecia o Gustavo e tinha conseguido aquele encontro dizia: "o Gu vai esperar a gente lá na Cantina Mato Grosso". Foi a deixa que ela perdeu. As bebidas talvez. Qualquer pessoa sabe que na Cantina só vai quem gosta de música ruim, como ela não prestou atenção nisso? Uma vez no bar, quando o Gustavo dos seus sonhos enfim surgiu, aos olhos dela, já não estava mais tão atraente. Usava calças justas, camisa xadrez, uma bota com biqueira, e um cinto com uma fivela tão grande que ela morreu de vergonha alheia. Sentado ao lado dela ele exalava um cheiro esquisito que ela descobriu ser fumo, que ele havia mascado antes de chegar. A simples imagem de uma pessoa mordendo e cuspindo algo preto e podre fez seu estômago embrulhar. E ele falava diretamente no seu ouvido e o cheiro de fumo entrava pelo seu nariz e caia como uma pedra no seu ânimo. Pra evitá-lo, voltou a beber. Cerveja e copinhos de tequila, com limão que era espremido dentro da boca.

Ele a beijou ali mesmo na mesa. Ela, que pensava em realizar um sonho, viu tudo se tornar um pesadelo. Era o primeiro beijo deles, mas ele tanto forçou sua boca com a língua e seu bafo horroroso, que ela achou que ia desmaiar. Não de prazer. Pediu licença. Foi ao banheiro e vomitou uma primeira vez. Sujou suas roupas. Uma operação de guerra foi montada pra que ela fosse na casa da amiga trocar de roupas e voltasse, afinal, não era todo dia que se saia com o Gu. Daí por diante ela só recordou espaçadamente de tudo. Foi, trocou, voltou, a camionete do Gustavo, alta, veloz, a mão dele que errava a marcha e tocava-lhe as pernas, era as pernas? A fila na entrada da violada. A violada. Eles dançando chamamé, dando voltas, voltas, voltas.

"Amorzinho, você vai aonde agora?". "Eu? Pra lugar nenhum, você é quem vai pra puta que lhe pariu, seu filho da puta, sertanojo de merda". Ao que ele respondeu: "Vai você sua biscate de merda, vagabunda, some, desinfeta". Ela sorriu, saiu empurrando todos pelo caminho e quando encontrou a porta respirou aliviada e imaginou-se fazendo pra todos um gesto obsceno. Não fez, nem quis saber qual rumo haviam tomado as amigas, com certeza estavam todas empoleiradas em alguns daqueles carros, em algum quarto de motel. Que fossem todas à merda também, não passavam de umas caipiretes de quinta, que só estavam interessadas em se arranjarem na vida. No fundo da sua bolsa tirou seu MP4 e saiu cantarolando madrugada a dentro: "hey ho, lets go!!!"


s.o.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sensações olímpicas

A vida só é vida se cumpre sua cota de surpresas maquiavélicas. Quando menos esperamos estamos sentados confortavelmente em nosso melhor sofá, deixando esvair a alegria de estar. Já não faltamos mais a nenhum compromisso, não molhamos os pés, majestosamente, em poças de chuva. Nos fechamos em nós e só abrimos pequenas frestas. Como isso tudo ocorre e nem percebemos? Qual o instante que nos trancamos em nossa carapaça e perdemos o apetite do olhar? Quando o beijo doce no rosto não arrepia mais? A alegria de viver, perdida em meios aos embrulhos da trapaça. Virtudes desperdiçadas quitando contas que já nem sabemos a razão de tê-las feito. Sacrifícios pueris pra não desagradar ninguém, pois, de resto, só devotamos nossa parca felicidade aos nossos eleitos de sempre. A eles tudo. Como é ardiloso o cálice da ilusão: somos enganados pelo tempo que se esvai; pelos companheiros que não aparecem pra dizer olá, pelo simples prazer de dizer olá; pelas possibilidades que não se cumprem. Desejos indesejáveis. Compromissos inadiáveis. Nos importamos demais. A seriedade é roupa que compramos em brechó, que não cabe bem nas vezes que tentamos vesti-la. Deixar tudo de lado um pouco, nos abandonar à suave beatitude de não nos levarmos tão a sério sempre. Não somos relógios, por isso não precisamos ser tão amargos. Desejo de tocar as estrelas, de sorrir para o idoso, atravessar a rua enfrentando carros mau-humorados, cumprimentar o invisível gari, chegar atrasado ao trabalho pelo simples prazer de ver o dia acontecer numa hora diferente. Estamos cegos, perdidos em meio a uma corrida de obstáculos em que no final, mesmo conseguindo chegar, não ganharemos nada senão o cansaço característico de toda maratona. Mas sempre há de ser tempo, ("Está na hora de saber! Está na hora da pedra começar a florescer, de um coração golpear a inquietude. Está na hora de ser hora. Está na hora” - Paul Celan), pra abandonarmos nossas impenetráveis construções, pelo menos um pouco, e nos vestirmos com as cores da infância, e assim nos abandonarmos às delícias do mundo, pois sim, elas existem, nós é que já não as conseguimos divisar mais em meio ao nevoeiro do dia-a-dia infernal.










s.o.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Distopia ou Sonho de uma noite de inverno


Às portas do Neon Concursos, uma fila gigantesca se empurrava num vai-e-vem incessante atrás do último edital pra mais um concurso que oferecia diminutas vagas com salários astronômicos. Vivia-se uma época em que a única maneira de arrumar um emprego de verdade era estar inscrito numa escola preparatória pra concursos. As escolas tradicionais eram apenas um passo antes do paraíso, muitas disciplinas foram substituídas ou simplesmente abandonadas. Biologia, Química, Literatura, Geografia, História, foram trocadas pelo estudo minucioso da Constituição Federal e das leis dos estados e municípios, de um arrombar gramáticas, destrinchar qual atalho é usado no computador pra 'salvar como' um documento. Nas bibliotecas milhares de livros jaziam abandonados.

O apocalipse se abateu numa dessas tantas tardes ocas. Eram tempos estranhos e quando desabou do céu uma chuva de livros, muitos se apavoraram e procuraram abrigos. Ilíadas, Odisséias, Dons Quixotes formavam rios surreais. O vento forte lançava os livros contra janelas que se estilhaçavam, apartamentos recebiam suas cotas de Kafkas e Rosas. Foi passageiro, tão rápido como veio a chuva dissipou-se, as cidades é que nunca mais seriam as mesmas. Pessoas apressadas corriam segurando suas leis em PDF, dirigindo-se para suas salas de aulas, fugindo do encontro com tantos livros. Capas coloridas brilhavam. Nas ruas, motoristas aturdidos, não sabiam se iam ou ficavam, em alguns para-brisas livros caíram abertos e os passageiros podiam ler poemas de Emily Dickinson, galhofas de Osvald de Andrade. Nos ônibus alguns livros acertaram em cheio alunos distraídos, alguns bem-aventurados receberam diretamente nas mãos um Vargas Llosa um Mia Couto. Pessoas vindas dos metrôs paravam assustadas e tropeçavam em Dostoievskis e Camões. Beckets absurdos boiavam em rios. Rios metafísicos de Cortázar não corriam definitivos.

O governo, ignorante, decretou estado de calamidade pública, perdendo a oportunidade de provar tão belos manás. Para limpar as ruas uma brigada especial foi criada. Tal como no filme de Truffaut, os bombeiros agora queimavam livros, pra poderem tornar as cidades novamente habitáveis. Os lixões nunca tiveram tão formoso espetáculo: Machados, Woolfs, Camus, Eças, Drummonds, Gogols, Twains, Hemingways, Dantes, todos misturados numa visão escruciante. Tropeçava-se em livros. Ao alcance das mãos Macbeths abobalhados, Macunaímas abandonados. Nem Borges na sua infinita cegueira pensou em algo tão fantástico. Muitos aproveitaram-se dessa benigna dádiva, folhearam pequenas obras-primas, redescobriram o prazer do belo. Muitos se lembraram que um dia existiu Rimbaud. Declamaram Baudelaire. Choraram novamente com Romeu e Julieta. Ouviram o clamor da espada de Aquiles no escudo de Heitor. Um mundo virado do avesso pela força dos livros.

No dia seguinte alguns gaiatos já tentavam vender livros cobrando a quantidade de páginas, mas a oferta era grande demais. Na primeira semana em alguns canteiros de obras podia-se ver cenas como mestres de obras tentando ler “Meridiano Sangrento” do Cormac Macarthy ou um “Guerra e Paz”. Alguns acidentes foram causados por motoristas, que distraídos, liam ao volante “As Metamorfoses” de Ovídio ou um conto de Tchekov. O governo continuou sua labuta de recolher esses novos cavalos de Tróia. Trocava livros por comida, livros por dinheiro. Um Orwell valia um pacote de trigo; Graciliano Ramos, a obra completa, rendia cinco quilos de arroz. No fim do mês os livros estavam devidamente recolhidos e queimados, ou escondidos por hábeis comerciantes do mercado negro. O ministro da Educação recitava um discurso em rede de tvs e rádios, afirmou, citando Conrad, que “o horror!, o horror!” já havia passado. Que novos concursos públicos estavam sendo providenciados, que todos podiam voltar às suas escolas preparatórias. Afirmou também que os culpados por tão insólita chuva só podia ser pessoas da elite, tentando desestabilizar o governo. Contra essa afirmativa membros da elite afirmaram ser isso impossível, pois eles estavam tranquilamente contando dinheiro e lendo, como sempre, best-sellers aguados, inclusive esse que foi entrevistado segurava candidamente um Chico Buarque.

Passado um tempo, sanado os problemas, um policial, doutorado à distância por uma universidade federal, circulava numa praça esperando seu dia de trabalho acabar, quando percebeu um velho com um bocado de livros ao lado. Ele folheava “Eneida” e chorava, “Medéia” e soluçava; o “Grandes Esperanças” do Dickens e ficava com um olhar vago. O velho foi recolhido a um manicômio, pois segundo o graduado policial, os livros estavam lhe fazendo muito mal. Perto, um gari, formado em Letras num curso presencial de três anos, varria displicentemente enquanto na mão esquerda portava um Shakespeare pocket e baixinho recitava: “Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar...”.





s.o.