sábado, 12 de setembro de 2009

Violada



Pedaços de comida cairam no chão ao primeiro espasmo que ela sentiu. Torceu o corpo violentamente e, às duras penas, golfadas iam voando aleatoriamente. Impossível evitar respingos nos sapatos. Aqui e ali, uma mistura esbranquiçada e fétida lavaram o piso. Um perito criminal diria com certeza o que ela havia comido e bebido. Sherlok Holmes diria até a razão para que os fatos ocorressem desse ou daquele jeito. O certo é que depois do terceiro vômito, serenado os ânimos, recuperado um pouco da cor, que havia fugido junto com os líquidos e sólidos, ela reparou que estava num banheiro minúsculo e que tinha conseguido emporcalhá-lo um bocado a mais. Fora, batiam insistentemente na porta. Amigos? Desconhecidos? Que se danassem. Ela só precisava de mais um pouco de tempo pra que o seu pequeno mundo parasse de girar, pra que conseguisse lavar o rosto, a boca, a garganta. Pra que seu cérebro pudesse se lembrar.


A roupa que vestia ela reconheceu. Não era dela. Mas ela já havia visto numa amiga, menor que ela, o que já antevia que algo ruim já havia acontecido. Será que ela havia vomitado na sua roupa? Que banheiro era esse? Vencendo seu asco, olhou para os restos do que havia colocado pra fora. Em que lugar ela tinha comido macarrão? Perguntas, perguntas. Sua cabeça que girava, seu estômago enjoado. Um desespero de dúvidas, dúvidas. Lavou-se. Com papel higiênico secou seu rosto, limpou seus tênis. Achou que algumas daquelas marcas não sairiam mais. "Que se foda", pensou. Aprontou-se o melhor possível e, enfim, abriu a porta.

Rostos desconhecidos surgiram. A primeira que entrou no banheiro, recuou enojada: "puta que pariu, que merda, tá imundo essa bosta". Ela livrou-se do pequeno tumultuo e descobriu que estava em uma espécie de baile. Devia ser uma dessas coisas atrozes em que duplas sertanejas tocam e um turbilhão de pessoas dançam e bebem. Um cartaz numa parede explicou o que ela já temia: "Violada da Patroa". Que diabo seria isso? Como, ela que odiava música sertaneja, estava ali naquele lugar? Nenhum rosto conhecido lhe aparecia, ela procurava a saída daquele inferno. Uma mão a tocou no braço, ela virou-se e viu, Gustavo, o cara mais lindo do mundo. Sua obsessão naqueles meses todos. Havia corrido atrás dele com uma disposição de maratonista. Ele a abraçou. "E aí, tá gostando benzinho?". Um novo engulho subiu-lhe até à garganta. Lembrou-se então de tudo. "Caralho", pensou.

Lembrou que tinha chegado cedo na casa da amiga. Que tinham começado bebendo cerveja, dois latões cada uma, que tinham jogado conversa fora enquanto faziam mãos e pés. Elas haviam dado banho de creme nos cabelos. Colocado sacolinhas plásticas na cabeça e tinham secado e, depois, esticado os cabelos com uma prancha. A amiga dizia animada: "meu, você vai sair com o Gu, nem acredito, tem que me contar tudo depois". Quando estavam quase prontas, outras amigas chegaram, trazendo vodkas, muitas vodkas. E enquanto iam experimentando roupas bebiam e riam. A casa em polvorosa. No banheiro uma ainda raspava os pelos com uma lâmina e muito sabonete Lux. Outra, atacava os cabelos com a chapinha. Batons, perfumes, pós. Troca de colares, pulseiras, blusas. Tudo ia ficando revirado, e ela, levemente bebada e ansiosa, achava ainda que iria para algum lugar tranquilo com o Gustavo, que iriam se conhecer enfim.

Antes de sairem dividiram preguiçosos nissins e beberam mais cervejas. A vontade de sair com o Gustavo ia sumindo numa bruma de álcool e barriga cheia. Maria que era quem conhecia o Gustavo e tinha conseguido aquele encontro dizia: "o Gu vai esperar a gente lá na Cantina Mato Grosso". Foi a deixa que ela perdeu. As bebidas talvez. Qualquer pessoa sabe que na Cantina só vai quem gosta de música ruim, como ela não prestou atenção nisso? Uma vez no bar, quando o Gustavo dos seus sonhos enfim surgiu, aos olhos dela, já não estava mais tão atraente. Usava calças justas, camisa xadrez, uma bota com biqueira, e um cinto com uma fivela tão grande que ela morreu de vergonha alheia. Sentado ao lado dela ele exalava um cheiro esquisito que ela descobriu ser fumo, que ele havia mascado antes de chegar. A simples imagem de uma pessoa mordendo e cuspindo algo preto e podre fez seu estômago embrulhar. E ele falava diretamente no seu ouvido e o cheiro de fumo entrava pelo seu nariz e caia como uma pedra no seu ânimo. Pra evitá-lo, voltou a beber. Cerveja e copinhos de tequila, com limão que era espremido dentro da boca.

Ele a beijou ali mesmo na mesa. Ela, que pensava em realizar um sonho, viu tudo se tornar um pesadelo. Era o primeiro beijo deles, mas ele tanto forçou sua boca com a língua e seu bafo horroroso, que ela achou que ia desmaiar. Não de prazer. Pediu licença. Foi ao banheiro e vomitou uma primeira vez. Sujou suas roupas. Uma operação de guerra foi montada pra que ela fosse na casa da amiga trocar de roupas e voltasse, afinal, não era todo dia que se saia com o Gu. Daí por diante ela só recordou espaçadamente de tudo. Foi, trocou, voltou, a camionete do Gustavo, alta, veloz, a mão dele que errava a marcha e tocava-lhe as pernas, era as pernas? A fila na entrada da violada. A violada. Eles dançando chamamé, dando voltas, voltas, voltas.

"Amorzinho, você vai aonde agora?". "Eu? Pra lugar nenhum, você é quem vai pra puta que lhe pariu, seu filho da puta, sertanojo de merda". Ao que ele respondeu: "Vai você sua biscate de merda, vagabunda, some, desinfeta". Ela sorriu, saiu empurrando todos pelo caminho e quando encontrou a porta respirou aliviada e imaginou-se fazendo pra todos um gesto obsceno. Não fez, nem quis saber qual rumo haviam tomado as amigas, com certeza estavam todas empoleiradas em alguns daqueles carros, em algum quarto de motel. Que fossem todas à merda também, não passavam de umas caipiretes de quinta, que só estavam interessadas em se arranjarem na vida. No fundo da sua bolsa tirou seu MP4 e saiu cantarolando madrugada a dentro: "hey ho, lets go!!!"


s.o.

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