terça-feira, 1 de setembro de 2009

Distopia ou Sonho de uma noite de inverno


Às portas do Neon Concursos, uma fila gigantesca se empurrava num vai-e-vem incessante atrás do último edital pra mais um concurso que oferecia diminutas vagas com salários astronômicos. Vivia-se uma época em que a única maneira de arrumar um emprego de verdade era estar inscrito numa escola preparatória pra concursos. As escolas tradicionais eram apenas um passo antes do paraíso, muitas disciplinas foram substituídas ou simplesmente abandonadas. Biologia, Química, Literatura, Geografia, História, foram trocadas pelo estudo minucioso da Constituição Federal e das leis dos estados e municípios, de um arrombar gramáticas, destrinchar qual atalho é usado no computador pra 'salvar como' um documento. Nas bibliotecas milhares de livros jaziam abandonados.

O apocalipse se abateu numa dessas tantas tardes ocas. Eram tempos estranhos e quando desabou do céu uma chuva de livros, muitos se apavoraram e procuraram abrigos. Ilíadas, Odisséias, Dons Quixotes formavam rios surreais. O vento forte lançava os livros contra janelas que se estilhaçavam, apartamentos recebiam suas cotas de Kafkas e Rosas. Foi passageiro, tão rápido como veio a chuva dissipou-se, as cidades é que nunca mais seriam as mesmas. Pessoas apressadas corriam segurando suas leis em PDF, dirigindo-se para suas salas de aulas, fugindo do encontro com tantos livros. Capas coloridas brilhavam. Nas ruas, motoristas aturdidos, não sabiam se iam ou ficavam, em alguns para-brisas livros caíram abertos e os passageiros podiam ler poemas de Emily Dickinson, galhofas de Osvald de Andrade. Nos ônibus alguns livros acertaram em cheio alunos distraídos, alguns bem-aventurados receberam diretamente nas mãos um Vargas Llosa um Mia Couto. Pessoas vindas dos metrôs paravam assustadas e tropeçavam em Dostoievskis e Camões. Beckets absurdos boiavam em rios. Rios metafísicos de Cortázar não corriam definitivos.

O governo, ignorante, decretou estado de calamidade pública, perdendo a oportunidade de provar tão belos manás. Para limpar as ruas uma brigada especial foi criada. Tal como no filme de Truffaut, os bombeiros agora queimavam livros, pra poderem tornar as cidades novamente habitáveis. Os lixões nunca tiveram tão formoso espetáculo: Machados, Woolfs, Camus, Eças, Drummonds, Gogols, Twains, Hemingways, Dantes, todos misturados numa visão escruciante. Tropeçava-se em livros. Ao alcance das mãos Macbeths abobalhados, Macunaímas abandonados. Nem Borges na sua infinita cegueira pensou em algo tão fantástico. Muitos aproveitaram-se dessa benigna dádiva, folhearam pequenas obras-primas, redescobriram o prazer do belo. Muitos se lembraram que um dia existiu Rimbaud. Declamaram Baudelaire. Choraram novamente com Romeu e Julieta. Ouviram o clamor da espada de Aquiles no escudo de Heitor. Um mundo virado do avesso pela força dos livros.

No dia seguinte alguns gaiatos já tentavam vender livros cobrando a quantidade de páginas, mas a oferta era grande demais. Na primeira semana em alguns canteiros de obras podia-se ver cenas como mestres de obras tentando ler “Meridiano Sangrento” do Cormac Macarthy ou um “Guerra e Paz”. Alguns acidentes foram causados por motoristas, que distraídos, liam ao volante “As Metamorfoses” de Ovídio ou um conto de Tchekov. O governo continuou sua labuta de recolher esses novos cavalos de Tróia. Trocava livros por comida, livros por dinheiro. Um Orwell valia um pacote de trigo; Graciliano Ramos, a obra completa, rendia cinco quilos de arroz. No fim do mês os livros estavam devidamente recolhidos e queimados, ou escondidos por hábeis comerciantes do mercado negro. O ministro da Educação recitava um discurso em rede de tvs e rádios, afirmou, citando Conrad, que “o horror!, o horror!” já havia passado. Que novos concursos públicos estavam sendo providenciados, que todos podiam voltar às suas escolas preparatórias. Afirmou também que os culpados por tão insólita chuva só podia ser pessoas da elite, tentando desestabilizar o governo. Contra essa afirmativa membros da elite afirmaram ser isso impossível, pois eles estavam tranquilamente contando dinheiro e lendo, como sempre, best-sellers aguados, inclusive esse que foi entrevistado segurava candidamente um Chico Buarque.

Passado um tempo, sanado os problemas, um policial, doutorado à distância por uma universidade federal, circulava numa praça esperando seu dia de trabalho acabar, quando percebeu um velho com um bocado de livros ao lado. Ele folheava “Eneida” e chorava, “Medéia” e soluçava; o “Grandes Esperanças” do Dickens e ficava com um olhar vago. O velho foi recolhido a um manicômio, pois segundo o graduado policial, os livros estavam lhe fazendo muito mal. Perto, um gari, formado em Letras num curso presencial de três anos, varria displicentemente enquanto na mão esquerda portava um Shakespeare pocket e baixinho recitava: “Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar...”.





s.o.

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