sábado, 15 de agosto de 2009

Biografia de um dia só


Ao acordar e perceber que o sol já estava alto uma pequena tristeza o invadiu, rápida e atroz, mas ele a dispensou educadamente, bom cavalheiro que era. Vestiu-se lentamente e, mesmo sem entender, tudo o que fez naquele dia foi assim numa lentidão calculada. À mesa, café, que sorveu encantado. O pão, ele rasgou caprichosamente. Na sua face estampava-se um rosto elegante, descomedido. Livre das amarras criptográficas que teimavam em surgir vida afora na sua testa. Hoje ele estava decidido a aproveitar o dia, simples assim. Sem entender a razão saiu à rua com seu melhor terno, sua gravata dourada, chapéu de palha e sua bengala de cabo de marfim. Suas elegância e falta de pressa destoaram do mundo, que o acolheu mesmo assim. O dia o adotou com um céu de brigadeiro. No bar da esquina, lugar em que passou muitos do seu tempo, cumprimentou a todos, que o receberam entre aturdidos e felizes. Abraços, apertos de mão, conversas sem rumo. Uma iluminação em cada rosto, uma felicidade legítima de todos. Logo um tabuleiro surgiu, logo estava ele gargalhando diante de desesperados peões que fugiam de duas ariscas damas, numa deliciosa caçada de gato e rato. Após o almoço servido na calçada - arroz, feijão preto, bife e batatas fritas - ele avisou que iria seguir sua via-sacra. No ônibus, dispensou os lugares ofertados, jogou conversa fora com o cobrador e saltou no centro da cidade decidido a rever outros amigos. Por onde passou espalhou alegria, comeu, bebeu, até dançou, mas não se cansou. Todos que o viam partir ligeiramente embriagado de vida, não podiam disfarçar uma ponta de satisfação por ele. Companheiro fiel a vida toda: trabalhador sistemático, pai cuidadoso, marido zeloso, amante dedicado, avô brincalhão, com todos os vícios na medida correta da balança de Epicteto e uns bons dons de Epicuro que ninguém é de ferro. Aquele ser maravilhado com o mundo, o mesmo mundo que viu ruir numa só tarde em que teve sua casa invadida por ladrões, que buscavam o que não haviam perdido ali. De um infortúnio brotaram todos os outros. Era dia dos pais, a família reunida foi mantida refém durante o domingo inteiro e diante da impossibilidade de negociar, a polícia invadiu a casa. Matou bandidos e também reféns. Um desastre sólido o suficiente para que ele - sobrevivente - não mais tivesse prazer pela vida até esse azulado dia. Sua peregrinação terminou na escadaria da Igreja da cidade. Ali quedou-se, quieto e melancólico. Se deixou estar durante alguns bons instantes. Para alguns ele rezava, outros disseram que ele chorava. Se chorava ou rezava, o certo é que se consumia em dor e ausência; saudade e impaciência. Todos, em algum momento da vida choram suas lágrimas de sangue, em que temor e dor se misturam a uma vontade férrea de que tudo seja diferente. São as lágrimas da resignação. Secas as suas, a alma mais leve, o corpo fatigado, rumou para sua casa. Despediu-se ainda de alguns extraviados, acalentou uns seres noturnos. Distribuiu algumas notas que lhe restavam. Em casa, banhou-se, colocou o pijama cinzento, suas chinelas, sentou-se à mesa, ergueu um brinde à vida e bebeu seu borgonha em goles milimétricos. Sorveu sua sopa de legumes. Fumou um Porto Faria. Deitou-se, não sem antes apagar as luzes da casa. À luz do seu abajur releu "Camponeses" do Tchekov, deixando escorrer grossas lágrimas pelo destino de Sacha e Olga. Beijou um porta-retratos, bebeu um gole d'água, ajeitou-se na cama, cobrindo-se até a altura do peito. Cruzou as mãos em volta do diafragma. Não sonhou.




s.o.