quarta-feira, 16 de março de 2011

Apontamentos para uma leitura do filme Cheiro do Ralo


Vivemos numa época repleta de novidades. O mundo se recicla de maneira tão ágil que quando nos apercebemos das mudanças já estamos no olho de um novo furacão. Estamos sentindo na pele a tempestade da pós-modernidade. Que se apresenta como uma catarse de dados compilados lançados por uma hélice gigante, e isso nada mais é que o aprofundamento e, claro, agravamento dos ideais capitalistas. O capital triunfou sobre o social, e convivemos diariamente numa confusa sociedade de consumo, agressiva, totalitária, que se impregna em todos os níveis de nossas vidas, modificando o nosso relacionamento até com as coisas mais simples. Com a sensação de que estamos emparedados por um agressivo sistema de trocas, tentamos salvar o mínimo de dignidade, mantendo-nos numa linha tênue entre o certo e o errado, mas o correto de hoje pode não ser a realidade de amanhã, uma vez que não era a de ontem.

O modo como percebemos o mundo hoje se modificou para acompanhar a agilidade dos tempos. Vivemos em permanentes “estados de liquidez”, como diz Bauman, os relacionamentos escoam por entre os dedos, os medos apoderam-se de nós de maneira integral, o amor é volátil; pode-se afirmar que tudo se reduziu ao básico, mas um básico que vem embrulhado dentro de um coquetel molotov. Estamos numa verdadeira “Idade Média Pós-Moderna”. Obedecemos ao senhor maior do mundo: o sistema. Ente onipresente, reticente, assaz competitivo e mordaz, que orienta o rumo que vamos tomar, quase sempre nos tomando como um grande e tosco rebanho. Tudo se resume a um singular estado de possibilidades. Eis que a procura de um caminho para explicar um filme como “O cheiro do ralo”, de Heitor Dhália, tem, basicamente, que recorrer a um arsenal teórico que parte de Marx, atravessa o modernismo e chega aos dias atuais, pois o ser humano aprofundou em muito o sofrimento abandonando a própria sorte em mãos pouco consideráveis.

O filme trata, de uma maneira geral, sobre relacionamentos. E é através do discurso percebido sob a ótica das grandes trocas humanas, vista, ademais, sob um viés pós-moderno, que a película se mantém. A personagem Lourenço, não consegue ter um relacionamento normal com nenhuma pessoa. Seu jeito de perceber o mundo é sempre o de uma pessoa que está numa posição superior ao outro. Comprador de objetos, valiosos ou não, essas negociações ocorrem de uma maneira que não é tradicional, com o cliente oferecendo algo e ele - o comprador - tendo interesse e fazendo sua oferta pelo produto. No modus operandi de Lourenço há toda uma negociação individualizada em que as vendas se transformam numa grande sessão de aniquilamento do sujeito que está vendendo algo. A pessoa que leva um objeto é humilhada. Seja quando Lourenço paga muito por algo sem valor, o que só desvaloriza ainda mais a pessoa; seja quando Lourenço nega-se a comprar algo, mesmo de valor baixo, pelo simples prazer de aviltar o vendedor; ou quando regateia o preço, rebaixando-o às vezes, por desdém.

Na vida particular seus relacionamentos também não engatam, seja com a noiva, a empregada, a secretária, a moça (da bunda) da lanchonete, etc. Mas o que temos que analisar mesmo é que Lourenço é um sujeito pós-moderno, vivendo num mundo pós-moderno e logo, o modo como percebe esse mundo é o de uma pessoa permanentemente em crise: seja consigo próprio, seja com seus semelhantes, seja com os objetos desse mundo. Mas essa crise não é de identidade e sim a de sujeito deslocado mais por entender a ordem natural das coisas, que por contrariá-la. Para um sujeito pós-moderno o universo que o rodeia é percebido como que entre-névoas. Há um esgarçamento das relações, pela falta de diálogo, pela fragmentação do ser, diante do que Jameson chamou da lógica de um “sistema econômico do capitalismo tardio”. O ritmo frenético ditado pelas máquinas, as divisões sociais, o apagamento do sujeito, o excesso de informações, a vivência numa época superficial, uma nova emocionalidade sentida com mais intensidade, características da era pós-moderna, que a personagem sabe viver, mas os outros não. O filme pode ser visto também como um grande pastiche, como o enformou Jameson. E também a nostalgia de um tempo perdido com o grande apego ao que é velho, que são os objetos ofertados, comprados ou não.

O filme retrata algumas fixações de Lourenço, e por extensão, do ser humano em geral, que se agarra em algo como que para ter um porto seguro na grande areia movediça que é a vida. Em Lourenço essa fixação pode ser a do exercício do poder; a fixação por objetos; pela bunda; pelo cheiro que exala do ralo. O ralo é para Lourenço uma válvula de escape, uma maneira de se punir por sua conduta sempre egoísta. O prazer que sente ao cheirar o ralo fétido é o mesmo que sentiria se fosse colocado de castigo pelo pai. Na verdade essa ausência de familiares é o grande X da questão. Lourenço é desapegado de valores morais e apegado a objetos, coisas que não podem falhar para com ele. Assim Lourenço não consegue edificar relações, pois elas sempre estarão na base de uma possível perda. Os objetos são fiéis. Assim exerce seu poder comprando tudo, ou acha que pode comprar, pois exagera beirando o ditatorial. Distribui benesses quando quer, rebaixa o preço de um Stradivarus, compra caro um objeto sem valor, mas sempre foge do relacionamento duradouro.

O olho, comprado caro, representa para Lourenço a duplicação do olhar. É o seu lado voyer no limite máximo. Se suas relações nunca avançam, se estão quase sempre na base do valor intrínseco do que possa ser comprado, Lourenço compra uma companhia, uma amizade sincera para compactuar com seus interesses, suas fixações. O olho só vê o que Lourenço lhe mostra, e ele só mostra aquilo que lhe interessa. Como o mundo de Lourenço é algo para o qual ele não nutre sentimentos, ele recria esse mundo através dos objetos, logo o olho passa a ser do seu pai, que morreu na guerra e assim sucessivamente. Lourenço se comporta através dos seus objetos como uma criança mimada. Verdadeiramente não sente falta de ninguém, nem consegue gostar de ninguém, é um egocêntrico homem pós-moderno, vivendo sua vida vazia, sem valores, sem ética, de uma maneira repetitiva e monótona, mas consciente do que faz. Mesmo quando inventa sobre o pai, é mais estado de espírito que realmente sentimento.

E a maior fixação de Lourenço que é a bunda da garçonete, é uma ponte entre mundos. A bunda é vazia de significados. Oca de sensações. Mas a bunda é uma verdade que o oprime, pelo tanto de realidade que ela aparenta. Lourenço não quer conquistar uma pessoa, quer sempre mais um objeto para agradar seu fetiche por coisas e a bunda é “o objeto”. A bunda aos olhos das pessoas normais continua a ser uma grande obsessão, um grande paraíso ao lado do que também é o ralo do corpo; a bunda, aos olhos pós-modernos de Lourenço, reveste-se de uma materialidade não-carnal e tem a mesma valoração que a cabeça de um animal empalhada – fetiches modernos.

Esse lado fetichista, aliado ao lado voyer dão a tônica dos seus relacionamentos, e a bunda é o elo entre o seu universo pós-moderno e o universo em que vive a maioria. Pensar em ter é uma obsessão. Ver é outra, e elas se complementam no não-ter. A tentativa de apreensão do outro sempre terá dinheiro envolvido, pois Lourenço é um típico representante do capitalismo tardio, em que impera a desvalorização das relações, um sujeito em crise, mas plenamente dentro do sistema, do qual nunca reclama, a não ser quando diz que “a vida é dura”, mais para fazer com que o outro se resigne e entenda que não há saídas desse sistema pós-moderno.

Não há uma conquista real, pois não quer ou por que nunca consegue alcançar o lado autêntico do objeto desejado. A bunda retrata uma obsessão pelo nada, que é o tudo, que pode até ser entendida também como a de um ser pornográfico, vivendo num mundo pornográfico com um excesso de sensações e de informações, excesso-oco, sempre vazio de significados. A verdadeira pornografia que vemos é a vida odiosa que a grande maioria vive, em que nem os objetos mais próximos têm uma exata medida, ao contrário, se volatizam em contato com a realidade do mundo de Lourenço.

Se tudo é o nada, se se vive numa época enevoada, em que os relacionamentos estão sempre interditados, a única pessoa real que convive com Lourenço é a drogada. Ela sabe que o mundo fede mais que o ralo do escritório, mais que uma penitência. Ela já viu de tudo e ainda assim se submete aos caprichos de Lourenço, não por amor ao dinheiro, mas por amor à fuga de sua vida oca. Quando transborda nela, seus caprichos de criança, seu fetichismo, seu voyerismo, Lourenço encontra sua perdição. Ela que tudo já perdeu, carrega no corpo vazio de significados o nada impresso, a vingança nada mais é que o desespero de um confronto de pessoas que sabem a grande verdade: a vida é um lixo, e fede, como um grande ralo; não há escapatória para ninguém. E a voluptuosa bunda nada mais é que uma perfeição vazia, uma miragem, que se esfuma no contraditório que é a esquálida bunda da drogada. O “mundo é muito perigoso” já dizia Guimarães, mas a verdade de um mundo pós-moderno é mais.
 
 
s.e.s.

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