sexta-feira, 29 de abril de 2011

Mortes particulares...

Morro todo dia um pouco. São mortes tão imperceptíveis que tem dias nem eu sinto bem. Sãos os pedaços das unhas que se vão. As cutículas que teimam em se soltar e que eu arranco com a ponta dos dentes. Saem de mim líquidos e excrementos; sai saliva, suores, pele, alguns cabelos desabam, outros, assustados, embranquecem. Mato lentamente a suave estrutura do meu ouvido ouvindo música em volume pouco considerável, isso depois de enfiar um suave cotonete e esfregar até me cansar ou ele sair amarelado. Raspo meu pé com lixa e a delicadeza de uma girafa num quitinete, cai um fino pó, raspas de um morto-vivo. Cuspo. Escarro. Me ralo. Pedaços de mim vão ficando pelo mundo. Do meu nariz endurecidas secreções eu tiro, embolo e atiro longe. A vaidade me faz arrancar rebeldes pêlos brancos do peito, fingindo um tórax adolescente num corpo enruguecido. Aparo os pêlos das axilas, do púbis, dos dedos dos pés, das narinas. Os pêlos da costas, resignadamente, peço que tirem com uma pinça. Morro todo dia um pouco, lentamente. Chego a achar que estou menor, pois com o tempo, os pequenos bocados de mim que ficaram pelo caminho, somados, fazem falta. E no meu interior as mortes enlouqueceram, elas se sucedem e me sucedem. Uma angústia infinita toma conta de mim, os meus espaços interiores parecem ser pequenos para me caber dentro. Tem dias que não estou confortável em mim. É como se minha roupa tivesse ficado um número menor e os ossos tivessem inchado. Não é nada. São minhas mortes particulares. É o minguar dos afetos. É a falta de prumo ou rumo. Eu "me matei uma vez quando o tempo era escasso", não foi uma boa morte. De outra vez a morte melhorou uma dor que sentia no baço, ela desapareceu sem deixar lembrança, ou a morte matou a lembrança do que nem era dor? Não sei. Toda vez que volto de uma morte sofro de esquecimentos. Mas posso dizer de cadeira que a morte "melhora o ritmo do pulso e clareia a alma". De certo eu só tenho comigo que "morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma"... por isso sigo morrendo aos poucos, com a mesma vontade que como um doce de abóbora ou escuto uma música recém-descoberta: morro por gulodice e para ouvir a paz. Mantenho a mesma febre de leitura. Terminar um livro é morrer um pouco. Não terminar, também. É tão bom estar morto ás vezes, nem que seja para ouvir: é um bom morto agora, em vida, era ainda melhor... o elogio me recompõe. Um dia calmo também.







ps: o que segue em aspas é do Paulo Leminski... um grande poema...

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