terça-feira, 19 de abril de 2011

A arte do chá ou Rapsódia em abril



“Ainda ontem convidei um amigo para ficar em silêncio comigo”, ele veio. Durante o tempo em que permanecemos ali o som do nada preencheu nossos instantes. O nosso silêncio foi machucado duas vezes pelo silencioso combate de outros seres; num deles, uma aranha assanhada abandonou sua tessitura e espreitava um inseto próximo. A aranha é tão silenciosa que até sua sombra ela parece deixar em casa na hora do jantar. O inseto inocente palmilhava a parede com saltos milimétricos. A aranha também de maneira milimétrica fazia o cerco. A aranha o inseto e nós, todos num silêncio constrangedor. Não podíamos avisar ao inseto que a morte o rondava. Não tinha como pedir para a aranha uma complacência em nome do nosso compungido silêncio. A fome, que não é silenciosa, gritava na aranha. Não quis ver o desfecho da cena, mirei outro ponto. Nele, um pernilongo. “De que música gostam os pernilongos? De Schubert, de Wagner, de Debussy?” Aquele, especificamente, parecia que tocava na banda da escola, quiçá tocasse pratos. Era desafinado e fora do peso, pois carregava uma pesada bolsa de sangue. Movia sem nenhum carisma e com uma lerdeza engraçada. Como podia ser, que no dia em que tiramos para chá com silêncio, surgisse um pernilongo desengonçado e barulhento para furar com sua sirene a noite? Mas, assim como ficar em silêncio é uma arte, aplacar a fome para uma aranha também o é. Perdido o inseto anterior, ela, aproveitando-se da inércia e o excesso de barulho do pernilongo mudou de vítima e atacou com destreza e sem piedade o obeso invertebrado. O silêncio retornou à sala, fomos testemunhas de um assassinato, até me comprometi mentalmente em depor contra a astuta aranha, que não deu chances para a sua vítima. Lembrei-me que coisas piores acontecem todos os dias fora dali, bem mais perto de nós, silenciosos humanos. Me fechei em mim. O silêncio silencia as culpas que porventura sintamos. Fatos trágicos, não tão trágicos, ou pouco trágicos, acontecem o tempo inteiro e nos quedamos silenciosos. Perdemos o nosso poder de indignação. Perdemos a simplicidade das ações. Não se bebe chás. Não se olha a lua. Não se aprende nada vendo insetos na impetuosa luta do dia a dia. Ponho um pouco mais de açúcar na minha xícara. Bebo o silêncio das minhas faltas.


"inspiração" dois trechos de poemas de Paulo Leminski e Rapsódia em Agosto do Akira Kurosawa.


s.e.s


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