quarta-feira, 24 de outubro de 2007

A Cavalaria Vermelha

Estou sempre procurando o livro do ano, e sempre encontrando e perdendo, isso é muito bom, essa semana achei mais um candidato, esse um sério candidato, Isaac Babel, escritor cossaco, soldado poeta ou só uma pessoa diferente num lugar estranho para se estar, mas onde definitivamente ele tinha que estar para que chegasse até nós esses relatos. Para mim eles soaram como uma nota agônica numa tarde de primavera chuvosa, uma revelação no véu que cobre meu dia a dia, o livro é A Cavalaria Vermelha ou em traduções mais novas Exército de Cavalaria.

Para que tanto barulho da minha parte? Só fazendo o que gosto muito, alardear aos quatros cantos quando descubro algo novo, ou saborosamente diferente, e esse é o caso, mas também só relembrando o que já falaram ilustres admiradores da obra como Rubem Fonseca, Carpeuax, Schnaiderman e nesse livro que estou lendo, da Civilização Brasileira, o Lionel Trilling, que se não fosse o livro em si o objeto desse texto, eu poderia me perder admirando as suas ótimas notas introdutórias à obra, onde o crítico dá a medida exata do tamanho do autor e nos faz antes de ler, ficar com a impressão de que mais importante é, estar preparado para algo novo e único na literatura mundial.

Mas onde reside a grandiosidade desse livro? No gigantismo do autor, na sua poética singular que dá conta de nos transportar para o olho do furacão das batalhas dos cossacos na Polônia, e o transbordamento da situação limite em que vivia a Rússia do czarismo recém deposto, que lutava para expandir o comunismo ainda em implantação. A violência surge a todo instante, nas mínimas frases, e independente de estar contando uma luta onde ele está de um lado, Babel acaba fazendo um acerto de contas com tudo o que o cercava então.

No primeiro parágrafo do primeiro “conto” ainda somos iludidos por frases simples, contundentes e aparentemente alinhadas com o regime de Lênin, “[...]seguindo a estrada de Brest a Varsóvia, construída por Nicolau I à custa dos ossos dos camponeses.”; “Um de nós caiu e blasfemou em voz alta contra a mãe de Deus.”; “Andavam sem fazer ruído, à maneira de macacos, ou de japoneses numa exibição.” Mas não se engane, a violência quando explode não se controla e ela, como uma bomba atômica, mata indiscriminadamente:

Meu bom senhor – disse a mulher, sacudindo o colchão – os poloneses cortaram-lhe o pescoço. E ele pedindo, implorando: “Matem-me no pátio para que minha filha não me veja morrer”. Mas não o atenderam, e ele morreu neste quarto, pensando em mim. Agora – prosseguiu, em súbita e terrível violência – eu queria saber onde encontrar outro pai igual ao meu!

Violências, acertos de contas, brigas banais, mortes cruéis, traições, desespero da luta, sangue jorrando, brotam em todos os momentos do livro, mas todos surgem emoldurados por imagens poéticas desse míope delicado, que não consegue matar um companheiro que evitaria um sofrimento maior, e mata um ganso friamente para angariar o respeito dos outros soldados. E é o mesmo que numa conversa com o rabino pede:

Gedali – disse eu – hoje é sexta-feira, e já é quase noite. Onde poderemos conseguir biscoitos judeus, um copo de chá judeu, e um pouco desse Deus aposentado num copo de chá?

O que me fez então ficar tão atabalhoadamente e, para variar, com atraso, ao lado desse autor, foi talvez, suas construções sinestésicas, os adjetivos incomuns que surgem em lugares estranhos e inesperados, a capacidade de dramatizar fatos banais, de elevar a simbologia maluca da guerra na cabeça da gente, de ser um fotógrafo dentro da luta que vaga por lugares destruídos, com pessoas ainda amarradas a fé, lutando contra pessoas sem nenhuma, que desnuda o horror a que pode chegar o ser humano na sua escalada por ideologias. São as doenças, a morte de pessoas e animais, animais e pessoas que se misturam indistintamente dentro de uma região devastada por tiros, é tanta dor que quando surge apenas uma enumeração de mortos judeus em um cemitério, aquilo é tocante. É a humanidade tendo que se destruir para se renovar, mas onde guardar a vida que existia antes?

O que ainda dá para pensar é como o socialismo, uma ideologia tão projetada, a talvez, futura salvadora da humanidade na visão de trabalhadores, filósofos, escritores - residia no imaginário das pessoas que viviam àquela época e ainda em algumas cabeças de hoje - se tornou o abismo das liberdades, o regime do culto à personalidade, levou à uma pátria costurada com sangue, mortes, dores, divisões. E lendo o livro conseguimos entender a facilidade como a 'nação soviética' se esfacelou quando Gorbatchev soltou as amarras de aço que prendiam todos sobre a mesma bandeira. Talvez esse seja o grande lance do livro, o autor é um cossaco, mas consegue descobrir ali, que lutar por sonhos alheios, e de maneira violenta, não torna a vida de ninguém melhor.

Neste trecho de Argamak um pouco mais da sua maestria: “Eu vacilava, balançando como um saco, no longo e magro dorso do garanhão. Fiz um verdadeiro estrago no seu espinhaço. Formaram-se nele chagas nas quais as moscas se nutriam, listas de sangue congelado rodeavam-lhe o ventre. E, em virtude das ferraduras defeituosas, Argamak começou a coxear e suas pernas traseiras inchavam nas juntas, atingindo proporções elefantíacas”.


Quadro: Malevitch: Cavalaria Vermelha


s.o.

2 comentários:

maria olimpia disse...

Também li A Cavalaria Vermelha e me apaixonei por ele. Se quiser ler, está em minha página em http://marilim.net. Adicionei sua página aos meus favoritos.

Anônimo disse...

Quero ler esse livro. Preciso pra escrever algo sobre esse quadro aí (A Cavalaria Vermelha - Kazimir Malevich), mas como eu sou um pobre pé rapado gostaria que me indicassem um site que tem ele pra fazer download.

Agradecido,

Wenis.