sábado, 8 de setembro de 2007

Maus dias...

Bom dia, boa tarde, boa noite, tudo isso nos dias de hoje tornou-se sinal de mau agouro. O telefone toca estridente, repetidas vezes, estranhamente num momento em que ninguém em casa espera telefonemas. Noticia ruim? É, não deixa de ser. A contragosto alguém atende insuportável linha, do outro lado ouve-se nitidamente uma voz educada, quase melosa, para os mais sensíveis é impossível dizer não; agir com grosseria. Para os mais ríspidos é impossível dizer sim; manter a paciência, o máximo que se pode fazer é controlar a incontrolável vontade de socar o telefone no gancho.

Assim tem sido a rotina no sacrossanto lar de milhões de brasileiros. Inúmeras importunantes ligações durante todo o dia. Telefonistas com textos decorados na ponta da língua, a performance começa com o já falado bom dia, boa tarde ou boa noite, a denúncia já está feita, se trata de um atendente de tele marketing. (estrangeirismo muito bem aceito por aqui, usado para designar a nova classe profissional e uma das mais abrangentes chateações nacionais) Um amigo ou parente que se preze não usufrui de tanta formalidade em suas saudações, atacam logo um ‘Eae, belê? Como que cê tá?”, “Fala mano! Firmeza?” e por aí vai, portanto a entrega do conteúdo que vai se travar nos minutos seguintes, já pode ser previsto logo em suas primeiras palavras. Bom dia, boa tarde ou boa noite, deduz-se que só pode ser das três uma: atendente de tele marketing querendo cobrar, vender ou pedir. Verdadeiros hackers do mundo telefônico, saem à caça de todos os números possíveis, todos os clientes possíveis, impossível se livrar deles.


Passa a existir um verdadeiro festival de mentiras. O dono da casa transforma-se no jardineiro. A criança saltitante recomendada pela mãe, corre para a linha, para todos os efeitos só a pequenina está em casa. Para as cobranças são estabelecidas datas de pagamento que nunca serão compridas. As vendas poucas vezes são interessantes, consórcio de carro é oferecido para quem não tem nem o que comer, cartões de crédito para quem adora brincar de bola de neve. Nas doações para instituições de caridade (pelo menos é essa a promessa) bons corações se rendem ao discurso e, alguns outros que não se rendem, passam a sentir culpados por instantes. Os mais sarcásticos dizem não poder ajudar no momento, mas que podem ligar em outra ocasião. Mentira! Estes não vão ajudar nunca.

Mas quando a situação se inverte, o discurso se inverte. Quando quem está em casa resolve procurar os atendentes de outrora, o cenário se transforma. A voz acolhedora se torna áspera, oferece como ouvinte uma sucessão de músicas irritantes, conversas com gravações. “Aperte 1, aperte 2”. Até hoje nenhuma empresa disponibilizou a opção: “para mandar os nossos atendes tomarem no... aperte tal número”. Com tanto descaso, quem está em casa passa a ser também técnico do aparelho que está com defeito. Computador que não funciona, impressora que não imprime, celular que não recebe crédito mesmo depois do numerozinho do cartão já ter sido digitado, a resolução dessas e tantas outras pendências ficam indubitavelmente a cargo do sujeito que está prestes a sofrer uma LER nas orelhas, de tanto ouvir musiquinha e conversa fiada regada quase sempre com muito gerundismo, que no fim vai deixando claro que não vão estar resolvendo nada.

Contrapartida, não dá para gritar que se acabe com o tele marketing. Ele garante o ganha-pão de uma infinidade de pessoas, mesmo quando estas não estão nenhum pouco satisfeitas no emprego que lhe dá todos os direitos. Direito à LER, direito ao estresse, direito à visão deficiente, direito a não ter mais muitas noites e finais de semana livres, já que têm a missão de incomodar a população a qualquer hora do dia ou da noite. Uma gama de escolas de cursinhos prometem preparar uma porção de jovens para uma das funções que mais emprega no atual Mercado.

O jeito talvez seja pensar duas vezes antes de dar o número de telefone num preenchimento de cadastro, ou reservar um só para esse fim.

Bom, acho que já é o suficiente, vou parar por aqui. Já passa das duas da manhã e o meu telefone está tocando. O que será que é hein?



- Alô

- Boa noite

- Boa noite.



t.c.s.

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