segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Santa Joana


O Nobel de Literatura de 1925 quase não foi entregue a Bernard Shaw, ele estava tentado a não aceitar a honraria. A solução para que o fizesse veio depois de muitos acordos, que culminaram com o eleito recusando-se a aceitar a generosa quantia que cada ganhador tem direito – hoje algo um pouco maior que um milhão de dólares. Resolveram criar uma Fundação que se dedicaria a traduzir livros de autores suecos para o inglês, o que agradou a ambos os lados.

De obra extensa, e que, possivelmente, nunca leremos tudo, mas que vale cada minuto empregado nesta empreitada. A literatura atual, de maneira geral e global, perde seu status de um novo Gênesis, e vai-se abrindo a meras obras passíveis de uma venda fácil, uma possível adaptação cinematográfica – movimentando uma lucrativa indústria de venda dos direitos autorais. Não temos mais os clássicos, da maneira que definia Borges: “Clássico é aquele livro que uma nação, ou um grupo de nações, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passível de interpretações sem fim”.

Os livros pulam das páginas para a tela, e ficamos desorientados com tamanha falta de pudor. Quando vi o “Animal Agonizante” do Philip Roth transformado em “Fatal”, com generosos closes dos seios de Penélope Cruz; e com os precisos músculos do Ben Kingsley, me tornei o próprio ser que agoniza. Para Mallarmé “o mundo existe para chegar a um livro”; existia, hoje se não se transformar em um bom roteiro, ocorrerá com ele um abandono cruel. Não existem mais autores e sim roteiristas travestidos de escritores.

Voltemos ao Sir Bernard – lá, não como cá, ocorre uma preservação das grandes personalidades, Machado que o diga, que até hoje tem sua obra devassada por críticos marxistas e defensores dos direitos raciais. Se em “A Profissão da Senhora Warren”, temos um embate de gerações, quase impensável hoje, com uma mãe, dona de prostíbulos pela Europa, patrocinando os estudos e a boa vida da filha, até que a verdade fosse posta na mesa, e a guerra declarada. Em “Pigmalião” temos uma comédia generosa sobre costumes e... fonética. O livro que me encantou mesmo foi “Santa Joana”, com seu prefácio caudaloso, e a impensável defesa de um inglês da santa francesa. Ler este prefácio nos conduz à peça, ler a peça faz com que pensemos no prefácio, e um não sobreviveria sem o outro - e ambos o conduziram ao Nobel.

“A verdade” dizia Shaw “está atravessada em nossas gargantas por causa do molho com que é servida; jamais descerá enquanto não a tomarmos sem molho algum”; qual é essa verdade? A de que é possível escrever grandes livros, uma peça gigantesca com três horas de duração, carregada de verdades profundamente verificadas, pois para ele a época estava cheia de pessoas que só iam assistir a peças para ter algo como uma diversão frugal, sem contudo as mesmas poderem tratar de assuntos de relevância, algo parecido ocorre com o cinema de Ingmar Bergman e Woody Allen que se contrapunham à frugalidade de Hollywood e foram taxados de elitistas e chatos.

Nota-se isso até com o filme sobre Joana D’Arc do francês Luc Bresson, trazido à vida por uma modelo de olhos azuis. O ufanismo não teve a contundência da Santa de Bernard Shaw – o que por si só é uma glória sem fim, para um socialista de língua ferina como ele. No prefácio sobram umas ríspidas palavras até pra alguém do quilate de Shakespeare – que para Bernard não criaria pessoas e sim simulacros impossíveis de serem reais. Assim temos uma santa de feições rudes, mas ou menos como os cientistas informam que seria Jesus (com cara de pastor e barba de um palestino comum). A história tem a mania de atribuir a atos bondosos, feições bondosas, como se uma pessoa feia de rosto tivesse que ser necessariamente horrenda de atitudes – um Corcunda de Notre Dame sem Victor Hugo.

Mas se Shaw defende a santa, também defende quem a julgou, se as visões de Joana eram heresias a de Lutero, que atirou um tinteiro no diabo, também seria. E nessa gangorra ele ainda ensina os procedimentos de uma boa pesquisa, mergulhar na época em questão, buscando imparcialidade pra que o texto seja o mais verídico possível. Esse era Bernard Shaw, alguém para quem: “Milagres são belos e grandes coisas. Há porém uma dificuldade. Nos tempos atuais eles não acontecem”. Assim como bons livros, grandes autores e nenhuma pretensão além da criação literária. “A obra de Shaw, ao contrário, deixa um sabor de libertação. O sabor das doutrinas do Pórtico e o sabor das sagas”, assim o disse Borges.



s.o.

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