sábado, 21 de fevereiro de 2009

Fingindo um conto: Mais um pierrô


O café da manhã já não tinha sido, como também não o seria o almoço, se até a hora em que as panelas de feijões são abertas e o cheiro de alho vai dominando a paisagem, ele não cuidasse do problema com seriedade. Mas era um dia diferente, sábado de carnaval, a alegria tantos dias enrodilhada como serpente, vai se abrindo em todos os rostos. Para quê pensar em problemas, perder-se em lembranças vagas e desinteressantes se para todo lugar em que olhava era só aquela irresistível energia no ar? Parecia que lhe ordenavam: "vá, se perder por aí", contrariando mutantes de honrosa glória. Conquistou (depois de flanelar uma manhã inteira) o direito de engolir, com uma felicidade inabalável, um sanduíche recheado com mortadela Sadilar (de horrível aspecto), bebericou um achocolatado e por tudo não gastou nem R$ 3,00. Andava assim a ermo, verificando que aqui não era a Bahia e muito menos o Rio de Janeiro, onde o carnaval parece fluir de cada olhar. As pessoas que não viajaram, seguem sua rotina de vendedores de Casas Bahia, de atendentes de Americanas, uniformizados e infelizes. Mas para ele, a televisão não mentia, viu, num ponto de mototaxistas, imagens do desfile das escolas de samba de São Paulo e achou muito lindo a desfile da X-9, mas ele torce mesmo é pela Gaviões da Fiel; nem sabe a razão de estender à escola de samba a paixão que sente pelo time, mas todo mundo faz assim, com ele não seria diferente. O que ele aguardava era a noite chegar, quando a festa enfim se estenderia pra todos, no gigantesco e gratuito baile popular. Ele gostava daquilo, o aperto, o empurra-empurra, a cachaça, as mulheres - tantas quanto ele pudesse ganhar. Deitou para descansar num prédio abandonado, sua casa era longe demais e não valia a pernada, nem o passe que ele ainda não ganhara. Antes do sono, fumou, lutando bravamente pra não pensar em nada. Quando despertou a noite já o havia abraçado, e no relógio da Calógeras viu que já era hora de cobrar a sua cota de felicidade. Se misturou ao povo, era um deles, na mão um copo de caipirinha amargosa e aguada, mas para ele forte o bastante pra deixá-lo levemente embriagado e ainda mais feliz. Evitando pular demais por conta da falta de comida, ficava rodeando grupos de mulheres, cobiçando aqui e ali. Quanto mais se perdia em meio à multidão, mais transpirava uma alegria intangível, mais bebia, mais se soltava e suas mãos eram abandonadas ao encontro dos corpos; não evitava mais as trombadas com os homens; e, enquanto aqui colhia uma passada de mão numa bunda de aparência duvidosa, ali olhava feio para um outro folião que lhe pisou no pé. A cachaça acabara e ele procurava em latas no chão um gole final de cerveja. A fome, a falsa alegria, o álcool turvaram seus olhos de vez, o cérebro como que se desligou, as luzes tremiam, o chão faltava ou sobrava, a multidão o espremia, o ar ficou rarefeito, flashs agrediam suas retinas, a força se esvaía. Caiu, levantou...tropeçou e ali mesmo ficou...a alegria o cercava por todos os lados...pensou na mãe...pensou que pensava; sonhou que ria, dançava e que era feliz...



"Um corpo foi encontrado no meio de um matagal no bairro Tijuca 2. Levou um tiro no rosto, estava sem documentos, a vítima aguarda no necrotério para uma possível identificação. Aparenta ter entre 30 e 35 anos, está vestido de bermuda preta, camiseta do Corinthians e descalço."
* Imagem: Pierrot - Toru Iwaya/1976




s.o.

Um comentário:

Unknown disse...

Ah! Finalmente resolveu soltar um conto da manga! Vejo que este folião possui uma falsa alegria e uma melancolia bastante honesta, vividas em ruas que conhecemos muito bem. Muito bom!