sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

“Os ausentes são sempre os culpados”


Não sei a razão, mas em diversos momentos do Recordações da Casa dos Mortos tive a nítida impressão de incômodo. Ler hoje um livro escrito em 1861 que fala de tempos em que o autor esteve na prisão, soa estranho e leva a vários questionamentos. Estranho, pois sabemos que essas mesmas prisões foram aprimoradas (?) ainda mais pelos comunistas, é para lá que iam todos os dissidentes do regime, sendo a Sibéria o túmulo de milhares de pessoas (quando vejo jovens portando garbosas camisetas com as inscrições CCCP, me pergunto se eles sabem das vidas perdidas) . E a questão que cala também é: existe histórias sem uma vida pessoal rica em acontecimentos? Ou quem escreve o livro é o eu literário e não a pessoa em si?

Se Dostoiévski não tivesse esses quatro anos na prisão ele seria o mesmo Dostoiévski que conhecemos hoje? Na carta desesperada enviada para seu irmão, que consta nessa excelente edição da Nova Alexandria, dá impressão que não. O tempo de cadeia o leva a um paroxismo, um vibrante desejo; livros, ele clamava por livros: “Tenho necessidade (preciso mesmo) de historiadores antigos (numa tradução francesa) e dos modernos (Vico, Guizat, Thierry, Thiers, Ranke, etc.), dos economistas e dos Pais da Igreja escolha as edições mais baratas e mais espessas. Remeta-me esses livros imediatamente.” Parece que não queria que se apagassem suas lembranças; se metamorfoseou nesses anos preso, e essas Recordações vão por toda a vida (per)segui-lo em suas obras.

Podemos dizer que nesse livro estão colocadas de maneira nada poética seu olhar agudo dos acontecimentos, suas dores escorrem, sua vida salta aos nossos olhos. O novo cenário que se descortina: a sopa com baratas, a sujeira generalizada, os vícios, as disputas sociais que ele enfrenta não sendo nunca aceito pela maioria dos condenados por ser nobre, o banho que mais parece uma visão do inferno de Dante, o hospital agoniante. No capítulo que narra os castigos físicos de presos eu vi Ecos de Montaigne...

Não sei se temos hoje em pleno século XXI, condições de compreender todas as angústias de uma pessoa como Dostoiévski e nem responder categoricamente sobre o autor e a obra, mas podemos pelo menos pensar sobre lampejos do pensamento dele, como sobre as pessoas “que serão eternamente miseráveis”, quantas nós não cruzamos nas nossas vidas.

Assim ler Recordações da Casa dos Mortos, é andar na contramão do que hoje se prega nas escolas, com leituras leves, croniquetas para consumo rápido. Dostoiévski sobreviveu a quatro anos na Sibéria e renasceu das cinzas, como uma Fênix, ou viveu como Argos vigiando a alma humana e nós hoje e sempre ficamos bestificados com sua prosa inteligente e sofrida, talvez por existirem tão poucos como ele hoje em dia é que a literatura vai se tornando uma herança maldita, a cada tempo menos bons leitores permanecem, cansados por não mais caminharem gigantes por aqui.




s.o.

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