sábado, 9 de fevereiro de 2008

Duas vidas, dois destinos


Para Ana Clara...

O nosso país é um gigante, mesmo usando só um pouco da sua força já impressiona bem, mas têm problemas indissolúveis que finge não ver e assim segue numa roda viva; o brasileiro não lê pois é caro? Ou é caro pois o brasileiro não lê? No fim só o vazio do não, um não repleto de significados dramáticos, empurra-se com a barriga, orienta-se a que todos vejam filmes: "você vai ler esse livro tão grosso? Pega o filme!".

A produção literária é parca, assim temos que buscar em outras praias histórias que poderiam ser nossas. Duas vidas, dois destinos, da americana Katherine Paterson com uma tradução maravilhosa de Ana Maria Machado é isso, na falta de algo genuinamente verde-amarelo, saboreamos o alheio, que por ser grande literatura se transforma em algo universal.

A história de uma menina que mora na ilha de Rass em Cheasepeake, nos Estados Unidos, e trabalha catando ou capturando caranguejos, siris, podia ser a de qualquer brasileiro que more nas extensas áreas de mangues por aqui, mas é com essa pequena linha de Ariadne que a autora se embrenha no labirinto das diferenças sociais, das dificuldades que surgem em relacionamentos familiares. Gêmeas que nascem de maneira diferente, uma tranqüilamente e saudável a outra complicadamente e frágil, têm seus destinos traçados na maternidade, como diria Cazuza, a vida se encaminha de levá-las à direções opostas. A força de uma a leva ao trabalho, alguns dólares diários que reforçam a "lata" da mãe. A outra recebe todos os carinhos e atenções, necessários diga-se de passagem para que todos sobrevivamos, mas que nesse caso é devotado a ela por conta da sua fragilidade.

No seriado Malcom que passava na Record, a mãe de quatro meninos atentados diz à certa altura que se fosse necessário, num momento de extremo perigo, e ela dá o exemplo de um avião caindo, acho, ela diz que jogaria alguns filhos pela janela, pois esses conseguiriam se virar sozinhos, mas ela não mandaria um deles, não me lembro qual agora, pois ela dizia que aquele não era tão capaz quanto os outros, assim é neste livro. A natureza tão livre de Sarah Louise a leva atrás de seus sonhos, em cima de sua canoa com seu melhor amigo, mas em casa todas as atenções se voltam para sua irmã. Nessa tênue linha percebemos o quanto é difícil criar filhos quando a mesa não é farta, quandos sonhos são impossíveis e quando a balança da igualdade parece, aos olhos do filho, pender para um lado só.

A religião perpassa toda a história, a ilha toda é metodista, mas ao mesmo tempo vemos como a pequena Wheeze (apelido da nossa heroína) vai crescendo e se afastando de Deus, a quem ela acusa de não gostar dela, como os pais, pois aparentemente tudo que ela faz não tem a menor importância. Os pontos altos do livro, vários e saborosos, vão nos angustiando, como quando ela se apaixona pelo capitão Hiram Wallace, numa cena belíssima de desejo imberbe, dentro um abraço de roupas rudes; a avó quase vencida pela velhice que dispara versículos da Bíblia à esmo, como se fossem facas, tentando agredir seus próprios únicos parentes, mesmo que sem eles ela não sobreviveria (aqui uma parada, como é difícil lidar com pessoas idosas, uma realidade crua que todos em algum momento das nossas vidas vivemos); a seqüência em que a irmã é mandada para uma escola de música em Baltimore, enquanto a mãe, desesperadamente, tenta oferecer para a Wheeze um prêmio de consolação, que aliás é recusado por ela; e alguns momentos de belíssima poesia quando ela abandona tudo para se dedicar à pesca em alto-mar com o pai, a quem ela começa enfim conhecer melhor.

Pergunto: O que separa essa história de algo genuinamente brasileiro? Nada, acho. Isso é que faz a literatura, os fatos narrados acontecem o tempo inteiro em todos os lares, em menor ou maior grau, é claro que uma grande maioria não se transforma em livro. Uma cena inesquecível desse livro é quando nossa pequena Wheeze pergunta qual a razão de ninguém às ajudá-las, elas queriam estudar numa escola boa, e bastaria uma mão estendida na hora certa, no momento certo e tudo poderia ser diferente. Questionamento esse muito atual, logo penso nas ações afirmativas do nosso governo e é óbvio sei que não era isso que ela esperava, mas sim elas tem sua razão de ser.

Fecha o livro a grande mudança na vida, proporcionada (rufem os tambores) por ela mesma. Quem ainda acredita em mudar a vida com sorte, esperança, amor, coração, esqueça, a força como diria o Yoda está dentro de cada um nós, e se somos forte podemos resolver todos os problemas do mundo, começando é claro pelos nossos, como dizia aquele provérbio chinês.




s.o.

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