sexta-feira, 6 de maio de 2011

Trilhas: Dois - Legião Urbana


Se teve um disco (aqui é disco mesmo) que eu ouvi milhares de vezes, esse foi o Dois da Legião. Singularmente ele fez parte da minha vida, e ainda, em alguns momentos - como agora, em que estou escrevendo - volto a ele e encontro coisas para me encantar. Hoje em dia conheço pessoas que nunca ouviram ou não se ligam no que Renato Russo fazia. Se estão certos não sei, eu mesmo os escuto pouco agora, mas eu ouvia e isso era tão importante pra mim, que não se pode deixar de falar nisso.


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Daniel na cova dos leões: uma rádio sendo sintonizado, metalinguagem? o que toca ao fundo é a própria banda. Biblicamente é dado partida na viagem. Dizem, os 'expertos', que a letra fala da homossexualidade latente do vocalista. Que a música é cheia de pistas como a tão citada parte: "teu corpo é o meu espelho e em ti navego" ou "aquele gosto amargo do teu corpo, ficou na minha boca por mais tempo". Nem é caso de discutir o indiscutível, pois Russo era mesmo gay (só assumiu muito tempo depois). Mas o que temos aqui, também, é uma pérola da insegurança adolescente. Nunca sabemos de verdade o que queremos, como faremos as coisas, e se o que pretendemos fazer é o certo ou errado. Ser gay era um princípio em forma de Esfinge para Renato, talvez por isso tanta ambiguidade.

Quase sem querer: violões, a bateria raquítica de Bonfá, o baixo mudo de Renato Rocha, nada disso atrapalha aqui. Uma das letras mais belas de Renato, e o universo se descortina. Solidão, indecisão, confusão, Renato, se tem a dúvida com a sua sexualidade, agora tem uma banda e ele sempre sonhou com isso. Sua força vem da alegria de ser como seus ídolos, Morrisey, Curtis etc. E ele pode se entregar a criar canções tão encantadoras. O que tem demais nessa música? Quase nada, vejo hoje, mas era melodiosa, fácil de cantarolar - até pra mim sujeito que não acerta uma letra. O rock descomplicado, simples e assobiável: "o infinito é realmente um dos deuses mais lindos"; e lá íamos nós, pra onde? Lugar nenhum, mas pelo menos tínhamos agora uma turma que gostava da mesma coisa, e tíhamas algumas canções para cantarmos perto do fogo, pois de tão indigentes qualquer um aprendia a tocar no violão; melhor que sertaneja.

Acrilic on canvas: eu acho essa a melhor do disco (é disco mesmo). Adoro pela excelente letra - quer dizer, eu acho excelente. Mas é um jogo virtual, e não existia nada virtual naqueles tempos. É uma música cubista, um universo se descortina lentamente, como num jogo de armar. Letra, música e a imaginação de cada ouvinte. Quantos quadros não pintei mentalmente, quantas pessoas diferentes não surgiram. Quantas camas não desmontei? E tantos pedaços de cabelos diferentes, lisos, crespos não usei? Tudo era tridimensional, talvez ninguém tenha entendido assim, mas era. Uma poesia em que podíamos ver surgir um quadro com diversas partes montadas, com inúmeros ângulos e possibilidades. A música quebrada, com um baixo passeando, uma guitarra deslizando, a bateria marcando uma cadência simples, o vocal despejando ações, fatos. Podemos ver Renato pintando, trocamos de lugar com ele, e logo estamos todos perdidamentes mesmerizados.

Eduardo e Mônica: nunca aprendi essa letra inteira, nunca. Eu acho isso o máximo, é inacreditável, pois minhas filhas não eram nem projetos, nasceram, cresceram e...aprenderam, eu não, quando a canto, até hoje erro. Não gosto dela, tocova demais, todos a amavam, alguns, estúpidos, trocavam os nomes. Seria hoje um bom post, num blog qualquer desses milhares que tem por aí. Mas é um dos mega-hits do disco, e fazer o quê né? Ouvia-se, cantarolava-se, balançava-se o dedinho no ar...etc.

Central do Brasil: gosto dela, instrumental que brota do nada, comprova toda a parquíssima 'catigoria' da banda em termos musicais, mas apresenta a sensibilidade da banda, e isso é tudo.

Tempo perdido: Legião Urbana no Globo de Ouro, era toda sexta feira, e eles passaram ums semanas indo lá. Era tosquíssimo, ridículo, mas mesmo assim ver Russo sacudindo os braços naquela dança esquisita e xamânica, era belíssimo. É, para mim, o grande hit do disco, letra e música dessa vez estão no mesmo nível. No show (yeah, eu fui num show deles) essa música era como chamar todos para um ritual de gritos e danças pessoais amalucadas (bom, na verdade, o público da legião era bem chatinho de tão fiel) e lá ficavam (alguns de olhos fechados até) "temos todo tempo do mundo" (não tínhamos). E, podemos perceber hoje, que sim, tudo foi um tempo perdido, e continuará sendo. Pelo menos naquela época, perdíamos tempo com Legião e não com um espúrio NX-0. Cada geração perde seu tempo com a banda que lhe apetece, ou que consegue entender.

Metrópole: "é sangue mesmo, não é mertiolate", sim, um punkinho para ouvidos desatentos. O que era legal na Legião passava por você não estar levando só uma banda pra casa, tinha todas aquelas entrevistas em que o Renato Russo despejava sobre seus fãs suas manias, seus gostos musicais, literários, cinematográficos. Quantos não gostam de The Cure, The Smiths, Joy Division e outras bandas mais, pois ouviram Renato falar o quanto gostava delas? Metrópole é isso, uma música urbana nº 1.

Plantas debaixo do aquário: todo disco tem que ter aquela música não tão tocável na rádio, nem apresentável em programas de televisão. A desse disco é essa, uma maluquice pós-moderna, de letra absurda e estúpida, até isso é 'legio omnia vincit', em alguns momentos era amar ou odiar. Aqui falava das paranóias da vida moderna, e a possibilidade de guerra atômica era uma delas, como era também a falta de confiança nas pessoas.

Música urbana 2: essa tem uma simplicidade total. Cássia Eller e a própria Legião gravaram outras versões melhores que essa, a da Legião está no "Músicas para acampamento", lá é mais bluesy, mais encorpada. A da Cássia está em um dos discos ao vivo dela, e é fodástica, como muitas das versões que ela fazia. Mas essa música vale aqui pra perceber mais uma das influências da banda: blues.

Andrea Doria: um barco italiano que naufragou com 1705 pessoas dentro, intertextualidade pra falar de fim de relacionamento. Renato era mesmo um excelente letrista, nunca criaria estupidez como essa que embala milhões de brasileiros hoje em dia: "Com esperança me sinto vivo/A bola é pra frente, o pensamento é positivo" (pausa para um vômito). El Russo falava de amor assim: "Às vezes parecia/Que era só improvisar/E o mundo então seria/Um livro aberto...", não dá pra comparar.

Fábrica: um panfleto do eterno punk Renato Russo. "Quem guarda os portões da fábrica"; "o céu já foi azul demais, agora é cinza, e o que era verde aqui, já não existe mais". Rimbaud e seu poema das cores chegam ao terceiro mundo (hoje só pode falar em países em desenvolvimento). Fala de um tempo em que se sofria muito por aqui; tempos em que “a esperança ainda não havia vencido o medo”; era uma terra inóspita, e sobreviver um 'pega pra capar'. Não mudou muito, troca-se uma peça aqui, outra ali, mas ainda e sempre, serão necessárias pessoas limpando o chão sujo da fábrica. Nunca teremos educação de verdade para todos, excelentes empregos pra todos, alguns sobrarão, naqueles ou nesse governo.

Índios: a letra dos nadadores ou atletas. Para acompanhar Renato era necessário fôlego. "Quem me dera ao menos uma vez ter de volta todo ouro que entreguei a quem...", e segue, num aranzel infinito. Letra feita no estúdio, antes da gravação do disco (assim reza a lenda), jogo rápido. Aqui um pianinho segue a letra, pontuando e animando para não acabar o ânimo. Mais um hit, agora as rádios e programas de televisão começavam a entender que as coisas tinham mudado definitivamente, ninguém iria mais cantar “sonhos de Ìcaros”, ou “whiskies a go-gos”, era o fim para todos. Depois que essa música se tornou a mais pedida, estava aberto o caminho para o triunfo do rock brazuca: “tentei chorar mas não consegui”.

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Hoje, vivemos num universo completamente diferente. As mídias estão por toda a parte, televisão, rádio, computadores, música sem invólucros, bandas que sobrevivem sem uma grande gravadora; a venda de cds quase no chão; a maior banda de rock'n'roll é formada por emos e agora por adolescentes coloridos que choram ao invés de cantarem. Tudo esboroou-se tiranicamente num muro de idéias rarefeitas. Titãs, Paralamas, Engenheiros sobrevivem e são nossos dinossauros; não foram destronados, apenas aposentados com elegância. Temos o triunfo do axé, Ivete Sangalo é "best of the best"; a música sertaneja continua firme e forte; nenhuma novidade no front musical, apenas Luan Santana, que é apenas uma reciclagem de idéias; um pensamento tipicamente anos 00. Amor, fraternidade, letras que falam de nada, que não reclamam de nada, que não querem nada, apenas chororos de pessoas que querem ser amadas, abraçadas e chega pois estou quase em vias de derramar um generoso vômito. Qual a importância da Legião Urbana nisso tudo? Com eles, nós éramos mais rebeldes. E viva Renato Russo, o nosso Simon Bolívar, o libertador que nos salvou das músicas bregas tocadas nas FMs e Cassinos e abriu a porta de uma nova dimensão, mesmo que hoje gostemos muito de música brega pois elas agora soam tão singulares aos nossos ouvidos. Coisas do tempo.







s.e.s.

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