segunda-feira, 9 de junho de 2008

Kawabata e as prisões do ser humano


Yasunari Kawabata fez muito mais que livros, sua concepção de como contar uma história ia sempre além de incluir significados na espuma leve do texto; a busca dessas vivências para o leitor deveria ocorrer no corpo cavernoso dos detalhes. A Casa das Belas Adormecidas é assim, muito mais que só um texto sobre ninfetas dormindo para o deleite de "velhos decrépitos", e sim um mergulho na grande luta do ser humano, tentando conviver e sobreviver às prisões que a vida lhe impõe.

Toda a delicadeza com que conseguia forjar "insólitas associações e metáforas táteis, visuais e auditivas que surpreendem por revelar os processos de fragilização do ser humano diante do cotidiano", ainda não diz tudo sobre essa intensa luta que o velho Eguchi trava nas noites mal (mesmo que bem acompanhado) dormidas, com esses entraves quase invisíveis da nossa vida.
O nosso dia a dia é um dos vilões, cheio de nuances, possibilidades, ambigüidades. Em vigília criamos barreiras para não deixar transparecer os nossos pequenos infernos pessoais, o corpo é um exemplo disso, sendo um invólucro que envelhece e se enfraquece e lidamos com essa e outras complicações da nossa vida muito mal; as recordações movidas pelas livres associações, onde como dizia Freud "o inconsciente é o próprio psíquico e a sua realidade essencial" é outra dificuldade; a atmosfera de sonhos onde "há um conteúdo manifesto que recordamos e contamos quando acordamos, que nada mais é do que pura fachada, máscara" também. São nesses universos que circulamos, num misto de concretudes e abstrações. São essas as pontes que Kawabata levanta ou demole na passagem do seu texto.

O livro conta a história de um velho que descobre, através de outro idoso, um local onde ele poderia passar a noite ao lado de uma jovem virgem, nua, adormecida quimicamente, fato que acende na nossa personagem um último resquício de desejo e talvez os últimos de moralidade, mas uma vez instalado na cama o que vemos é ele ser remetido ao reino das lembranças e também do onírico. Uma vez dentro desse quarto, ao lado de sua "bela adormecida", transborda o duelo entre o real e o irreal, ou como dizia Breton: "tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde", talvez seja para não perder essa crença na vida real que o velho Eguchi procure o local; uma vez nele, é como se penetrássemos numa via de várias possibilidades.

O que existe de concreto e pode ser tocado, a "chave comum", o cigarro, as cortinas que "pendiam nos quatro lados do aposento", a porta, a garota com a "mão direita até o punho para fora da coberta", se mistura à atmosfera de irrealidade que se instala diante da "surpresa de ser conduzido de repente para fora do real de sua vida cotidiana". Pronto a cena, o que vamos assistir então é essa mistura de sensações, de mundos. O corpo nu, morno ao seu lado, é a porta de entrada para recordações pungentes, logo Eguchi se perde entre o presente, tão irreal quanto os agora fatos passados, "bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu", já falava Breton no Manifesto Surrealista. "Nos seus 67 anos de vida, o velho Eguchi com certeza conhecera noites deploráveis. E essas noites lhe deixaram marcas das mais inesquecíveis. O deplorável não provinha da falta de beleza física das mulheres, mas de suas tragédias, suas vidas infelizes", o caminho para dentro de si, pode ser a salvação, e logo "recordações secretas" o alcançam.

Essa metáfora do quarto como sendo a nossa memória é comum na literatura, Kawabata não foge dela mas a amplia no limite pois as ações são mescladas e quase podemos vê-las ocorrendo ao mesmo tempo, embevecido com um seio jovem (que tem para ele um “formato tão belo”), deitado numa cama aconchegante, tendo, entrado numa viagem de reminiscências, quem sabe a sua última viagem e quem sabe “a última mulher da minha vida?”. Surgem cidades, Kyoto, com a “ferrovia de Hokuriku”, as “camélias despetaladas em plena floração”, um hotel em Kobe com uma amante.

São nesses momentos que podemos entender o que separa um grande autor dos outros reles mortais ou aprendizes de feiticeiros, um bom livro fica tanto quanto melhor, conforme a quantidade de caminhos que temos que trilhar para entendê-lo. A decrepitude do corpo, onde “já que a menina não acordava, o cliente idoso não precisa envergonhar-se do complexo de senilidade, e ganhava permissão de perseguir livremente suas fantasias a respeito das mulheres e mergulhar em recordações”, é onde nasce o reino das lembranças, amargas para quem não pode fazer mais do que ver e sentir “um êxtase inconsciente”; sendo o próximo passo o sonho “e o velho Eguchi sonhou”. Reinos misturados onde conforme Breton “alucinações, ilusões etc são fonte de gozo nada desprezível”.

Aparentemente a pequena história, com um quê de romântico pervertido; um velhinho nos últimos dias da vida, uma jovem adormecida que não sabe o que acontece enquanto dorme; logo tudo transcende, a velhice não é o melhor dos mundos, e é no mundo da imaginação, das memórias que todos nós nos refugiamos durante a vida toda, mas o fazemos pelo puro prazer de sonhar coisas belas, momentos de preparação para alcançar o sublime, concretizar planos. Só que é para esse reino que nos mudamos na terceira idade, agora presos ao invólucro do corpo, as lembranças não são mais só uma fuga prazerosa e sim um calabouço onde sonhos e pesadelos se misturam ao concreto e ao impossível da vida; vida essa, que nessa etapa, não tem nada de “melhor idade”, e quase sempre é de faltas e não de sobras, onde podemos vislumbrar só “uma luz misteriosa na profundidade das trevas”. E quais são as prisões do homem? O corpo e a mente...o concreto e o abstrato, vivemos entre esses universos diariamente mas na velhice ele não é mais uma janela prazenteira e sim com grades e alarmes nos lembrando que o tempo passou e nos enroscamos desastradamente nos fios da vida.

s.o.

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