segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Diga sim ao preconceito!

Roberto DaMatta diz que “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito”. Isso é incontestável. Dificilmente, você vai encontrar alguém que diga com palavras claras que odeia e quer matar todos os negros e homossexuais. O preconceito está implícito. Ele aparecerá quando você cruzar com um negro mal vestido, em alguma rua deserta, ou quando um homossexual simpático vier puxar assunto com você, em algum ponto de ônibus.

Preconceitos assim são abomináveis e dignos de repúdio.

Mas nessa luta contra o preconceito, somos levados a identificar como preconceito aquilo que não é preconceito, e sim, apenas bom senso. Bom gosto. Cria-se a ilusão de que todos têm direito de se expressar. Não faltam caetanos para propagar essa falácia. Em nome de uma patética fraternidade intelectual, somos influenciados a aceitar de tudo, para que não sejamos tidos com preconceituosos. Temos a obrigação de ser tolos. Devemos aceitar como literatura o que não é literatura. Devemos aceitar como música o que não é música. Devemos aceitar como arte o que não é arte. Isso quando não somos importunados por um estúpido provincianismo. Gente que diz estar em busca de manter culturas regionais, e deturpa origens criando frankensteins artísticos. Diariamente, rádios repetem hipnoticamente deprimentes seqüências. Ouvidos desatentos as absorvem e línguas descansadas as repetem infindavelmente.

Vivemos tempos de perversão. Instrumentos musicais se pervertem. As palavras se pervertem na disposição do papel. Ouvidos e línguas se pervertem. Opiniões de pessoas dantes ditas como sérias idem.

Quem vai de encontro a esse processo melancólico não age de forma preconceituosa, e sim, sensata. Só existe preconceito quando conceituamos o que desconhecemos. Não é o caso. Só odiamos porque conhecemos demais. Vivemos num mundo que o que desgostamos é o que mais conhecemos. Sempre estamos vendo e ouvindo o que não queremos, sempre estão dissertando sobre o que odiamos e vemos com clareza os efeitos catastróficos disso tudo. Dessa forma, temos propriedade suficiente para opinar sobre tudo o que nos irrita. Não podemos negar isso a nós. Aos olhos alheios seremos sempre preconceituosos. Sejamos preconceituosos então! O que não podemos, em hipótese alguma, é ser coniventes com a obtusidade que impera em mentes cada dia mais maleáveis.

t.c.s.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

“A essência da arte é o inesperado” ou cinco contos de Babel


Volto a Isaac Babel, é como um retorno ao sagrado que existe na literatura. Os contos de A Cavalaria Vermelha sobrevivem em mim com uma insistência fascinante. Lionel Trilling pondera acerca da epifania a que autores como Babel incorrem, “percebemos a intenção do escritor de criar uma forma que seja em si mesma bem feita e autônoma e, ao mesmo tempo, extremamente compatível com a verdade externa, a verdade das coisas e dos acontecimentos”. Babel considerava-se “o mestre do gênero do silêncio”, e advogava “o direito de escrever mal”, em clara afronta às decisões do Partido e do Governo soviéticos; ‘obedientemente’ deram-lhe esse direito, pois Babel morreu num campo de concentração entre 1939 e 1940. Escolher cinco contos na profusão de excelência deles é tarefa inglória, mas a lista tem os que mais me encantaram, nesta ou na outra vez que li o livro:

Gedali: conto impregnado de uma “densa melancolia de recordações”, percebe-se isso, pois “nessas noites, meu coração infantil balouçava como um pequeno navio”. Vive-se o início da Revolução Socialista, todos acreditam que ela vai mudar a vida das pessoas – para melhor -, mas de repente o que se vê é destruição, acaba-se a “alma da abastança, da fartura”. O desespero desiludido que dá a tônica do ambiente é sentido nas “paredes amarelas e indiferentes”; nos “farrapos trágicos” e nos “cadeados mudos”; Essa evocação a um passado não tão longínquo é algo doloroso, ocorre uma parada do tempo, uma saudade inalcançável, e as pessoas que sobram ficam tirando “poeira de flores mortas”. A Revolução não havia acontecido para melhorar a vida de todo mundo? Essa perplexidade diante do estado de degeneração é contundente “a Revolução? Nós lhe dizemos ‘sim’, mas por isso temos de dizer não ao Sabá?”; e continua o velho judeu Gedali diante de tanta mudança “sim, clamo pela Revolução, sim, clamo por ela, porém a Revolução oculta seu rosto a Gedali e nada envia, senão tiros...”. Esse caminhar por entre a ambigüidade de situações é que faz de Babel o clássico que é, e se de repente ele clama: “onde estaria a tua bondosa sombra naquela noite, oh, Dickens?”, e pede um “copo de chá judeu, e um pouco desse Deus aposentado num copo de chá?”, somos nós, os leitores, que ficamos perplexos.

O Caminho de Brody: “tive pena das abelhas”, assim começa esse pequeno conto. Em meio à guerra que travavam os cossacos contra os poloneses, na qual Isaac Babel era do exército cossaco, as abelhas são um ponto de fuga ou a fé que subsiste. Gosto dessa narrativa pela sua simplicidade de intenções. Diante da violência das batalhas, pois “na véspera, fora o primeiro dia da carnificina de Brody”, é das abelhas que se sente dó. E quando relembra a história das abelhas na crucificação de Cristo, pode-se notar o universo estranho que se vivia à época, a Revolução pregava o ateísmo, mas como matar Deus no inconsciente coletivo? “Se houve gente que ofendeu Cristo ou não, chegaremos a saber, um dia. Porém as mulheres dos acampamentos contam que quando Cristo sofria na Cruz, mosquitos de toda espécie o rodeavam, atormentando-o. Então ele olhou os mosquitos e desanimou. Mas a multidão dos mosquitos não via os seus olhos. Uma abelha também voejava em torno de Cristo. “Pica-o”, gritavam os mosquitos para a abelha, “pica-o, e nós nos responsabilizaremos”. “Não posso”, diz a abelha, voando acima da cabeça de Cristo, “não posso. É um carpinteiro como nós”.

A Vingança de Prishchepa: nós que sabemos de guerras o que nos contam a televisão, ou manchetes de jornais, jamais saberemos da violência real que ela gera. Tudo bem, todo mundo viu as fotos dos judeus mortos, ou os vídeos inacreditáveis onde montes de seres humanos eram arrastados para valas comuns como lixo, mas mesmo assim essas imagens se misturam a outras e logo se perdem, ou quem sabe, escondê-las de nós mesmos seja um aprendizado para manter a sanidade. Assim quando lemos a narrativa de Prishchepa ficamos incomodados, após ter sua família assassinada e todas os bens divididos entre diversos habitantes da cidade onde morava, a vingança imaginada e efetivada por ele, ainda assim, consegue surpreender. “Nas palhoças onde encontrou utensílios que pertenceram a sua mãe, um cachimbo que fora de seu pai, esfaqueou impiedosamente mulheres velhas, pendurou cães sobre poços, conspurcou ícones, sujando-os de excrementos”. Por esse breve relato pode-se ter uma pálida idéia do que a guerra faz com a humanidade, em princípios, amedronta, para logo em seguido animalizar.

Sal: todo mundo sabe do tratamento dado a estupradores nas prisões, mas e os tratamentos dispensados às mulheres numa guerra, imaginam ao menos? Acredito que não. Em Sal pode-se até sorrir diante do bom tratamento dado a uma delas, uma mãe carregando um filho no colo, que pede para que a deixem viajar junto com eles “nessas estações temos passado por grandes dificuldades”; esta se livra do estupro, pois “lembrem-se de suas mães, e assim compreenderão que não devem falar desta maneira”. “A instalaram no carro, competindo uns com os outros nas atenções que lhe prestavam”. Essa bucólica cena colocando num mesmo compartimento lobos e o alimento deles logo desaba, pois “permita-me descrever-lhe aqui a inconsciência das mulheres, que não estão nos ajudando em nada”. Quando os cossacos descobrem-se traídos pela mulher, que carregava um saco de sal e não um bebê, “mas veja os cossacos, minha boa mulher, os rapazes que a puseram num pedestal, por ser uma mãe que trabalhou pela república. Veja essas duas moças que choram agora pelo que lhes fizemos esta noite. Pense nas esposas, que nos trigais de Kuban gastam suas forças sem seus maridos, e eles também sozinhos, vendo-se na dura necessidade de violar as jovens que encontram”. Veja vocês a dura realidade para a mulher. Lembram-se da guerra na antiga Iuguslávia? Milhares de mulheres muçulmanas foram estupradas pelos sérvios numa verdadeira faxina étnica? No conto a sorte da mulher foi outra: “assim, tirei o meu fiel rifle, preso à parede do carro, e lavei aquela mancha da face da terra dos trabalhadores e da república”.

Guy de Maupassant: nessa pequena obra-prima ainda não existe a Revolução, vive-se um 1916, a cidade é São Petersburgo. Acompanhamos nosso mestre de cerimônias, que mesmo sem dinheiro evita empregos “já naquela época, aos vinte anos disssera a mim mesmo: é preferível passar fome, ir para a prisão ou ser um vagabundo, a permanecer dez horas do dia a uma mesa de escritório”. Uma característica de Isaac Babel é não desperdiçar tempo descrevendo ambientes, seu texto prima por uma concisão tchekoviana, assim ele nos passa a contundente impressão que tem da empregada: “a empregada de seios empinados movia-se silenciosamente. Tinha uma bonita figura, era míope e de ar um tanto orgulhoso. Em seus olhos cinzentos, muito abertos, notava-se uma expressão de lascívia petrificada”. Traduzir contos de Maupassant é um dos caminhos desta narrativa, percebe-se toda a paixão de Babel pelo autor francês “vinte e nove livros, vinte e nove bombas repletas de sentimento, gênio e paixão”. Nota-se também uma intertextualidade com o fazer literário, “falei-lhe então de estilo, do exército de palavras, exército no qual toda espécie de arma pode ter atividade”; e segue dizendo que “nenhum aço pode penetrar no coração e apunhalá-lo com tanta força como um ponto final no lugar justo”. O ponto final que é o acompanhamento perfeito para contos curtos como os que produz Babel. Esta narrativa segue até o momento da tradução de A Confissão, com as belíssimas seqüências entre o texto do francês e o de Isaac Babel, e conclui-se com uma leitura sobre a vida do grande autor francês, com um fim melancólico e perfeito: “O nevoeiro aproximava-se da janela: o mundo ocultou-se aos meus olhos. Meu coração contraiu-se, pois o presságio de alguma verdade essencial tocara-me de leve os dedos”.



s.o.