sexta-feira, 29 de abril de 2011

09:32


Tanta coisa para se pensar. Tantos problemas por resolver. Outros para criar. Mesmo estando o país numa época iluminada (como dizem os iluminados), tanta gente vagando por aí. Bêbados, mendigos, malabaristas e mágicos de sinal. O mundo à beira de um colapso por falta de mão-de-obra qualificada. O horror! O horror! O horror! As escolas ensinam a resignação. As Igrejas doutrinam a paz e o amor. A família grita: estude para ser alguém na vida. Todos têm uma opinião para melhor fazer as pessoas serem ordeiras, pacíficas, porcos à beira do precipício. Enquanto o mundo gira. Enquanto todos acham que o silêncio é a melhor arma. Enquanto os sindicatos beiram o ridículo em pelegar o governo, a vida segue impávida. Os rebeldes são abortados nas manjedouras. Essa pausterização do todo, apaga as luzes do futuro. Nunca, de maneira nenhuma, conquistou-se algo sem luta, e é isso que prega esse governo atual. Justo eles que clamavam no deserto contra tudo e todos, agora pregam a paz e o amor. Pregam o não à greve. Ao direito mesmo de se pensar em greve como instrumento de luta. Desestabilizaram todas as lutas sociais, cooptando todos os lutadores. Simplesmente paga pelo silêncio, ofertando migalhas de pão velho. É o fantasma da velha inflação que ronda. É a companheirização que grassa a torto e a direito. Mesmo assim, com tantas coisas por fazer e lutar, mesmo que o mundo não esteja girando corretamente no seu eixo. Mesmo que o trem esteja mais pra lá que pra cá, hoje todos pararam pra ver o beijo real - exatamente às 09:32.


 
w.a.

Mortes particulares...

Morro todo dia um pouco. São mortes tão imperceptíveis que tem dias nem eu sinto bem. Sãos os pedaços das unhas que se vão. As cutículas que teimam em se soltar e que eu arranco com a ponta dos dentes. Saem de mim líquidos e excrementos; sai saliva, suores, pele, alguns cabelos desabam, outros, assustados, embranquecem. Mato lentamente a suave estrutura do meu ouvido ouvindo música em volume pouco considerável, isso depois de enfiar um suave cotonete e esfregar até me cansar ou ele sair amarelado. Raspo meu pé com lixa e a delicadeza de uma girafa num quitinete, cai um fino pó, raspas de um morto-vivo. Cuspo. Escarro. Me ralo. Pedaços de mim vão ficando pelo mundo. Do meu nariz endurecidas secreções eu tiro, embolo e atiro longe. A vaidade me faz arrancar rebeldes pêlos brancos do peito, fingindo um tórax adolescente num corpo enruguecido. Aparo os pêlos das axilas, do púbis, dos dedos dos pés, das narinas. Os pêlos da costas, resignadamente, peço que tirem com uma pinça. Morro todo dia um pouco, lentamente. Chego a achar que estou menor, pois com o tempo, os pequenos bocados de mim que ficaram pelo caminho, somados, fazem falta. E no meu interior as mortes enlouqueceram, elas se sucedem e me sucedem. Uma angústia infinita toma conta de mim, os meus espaços interiores parecem ser pequenos para me caber dentro. Tem dias que não estou confortável em mim. É como se minha roupa tivesse ficado um número menor e os ossos tivessem inchado. Não é nada. São minhas mortes particulares. É o minguar dos afetos. É a falta de prumo ou rumo. Eu "me matei uma vez quando o tempo era escasso", não foi uma boa morte. De outra vez a morte melhorou uma dor que sentia no baço, ela desapareceu sem deixar lembrança, ou a morte matou a lembrança do que nem era dor? Não sei. Toda vez que volto de uma morte sofro de esquecimentos. Mas posso dizer de cadeira que a morte "melhora o ritmo do pulso e clareia a alma". De certo eu só tenho comigo que "morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma"... por isso sigo morrendo aos poucos, com a mesma vontade que como um doce de abóbora ou escuto uma música recém-descoberta: morro por gulodice e para ouvir a paz. Mantenho a mesma febre de leitura. Terminar um livro é morrer um pouco. Não terminar, também. É tão bom estar morto ás vezes, nem que seja para ouvir: é um bom morto agora, em vida, era ainda melhor... o elogio me recompõe. Um dia calmo também.







ps: o que segue em aspas é do Paulo Leminski... um grande poema...

terça-feira, 19 de abril de 2011

A arte do chá ou Rapsódia em abril



“Ainda ontem convidei um amigo para ficar em silêncio comigo”, ele veio. Durante o tempo em que permanecemos ali o som do nada preencheu nossos instantes. O nosso silêncio foi machucado duas vezes pelo silencioso combate de outros seres; num deles, uma aranha assanhada abandonou sua tessitura e espreitava um inseto próximo. A aranha é tão silenciosa que até sua sombra ela parece deixar em casa na hora do jantar. O inseto inocente palmilhava a parede com saltos milimétricos. A aranha também de maneira milimétrica fazia o cerco. A aranha o inseto e nós, todos num silêncio constrangedor. Não podíamos avisar ao inseto que a morte o rondava. Não tinha como pedir para a aranha uma complacência em nome do nosso compungido silêncio. A fome, que não é silenciosa, gritava na aranha. Não quis ver o desfecho da cena, mirei outro ponto. Nele, um pernilongo. “De que música gostam os pernilongos? De Schubert, de Wagner, de Debussy?” Aquele, especificamente, parecia que tocava na banda da escola, quiçá tocasse pratos. Era desafinado e fora do peso, pois carregava uma pesada bolsa de sangue. Movia sem nenhum carisma e com uma lerdeza engraçada. Como podia ser, que no dia em que tiramos para chá com silêncio, surgisse um pernilongo desengonçado e barulhento para furar com sua sirene a noite? Mas, assim como ficar em silêncio é uma arte, aplacar a fome para uma aranha também o é. Perdido o inseto anterior, ela, aproveitando-se da inércia e o excesso de barulho do pernilongo mudou de vítima e atacou com destreza e sem piedade o obeso invertebrado. O silêncio retornou à sala, fomos testemunhas de um assassinato, até me comprometi mentalmente em depor contra a astuta aranha, que não deu chances para a sua vítima. Lembrei-me que coisas piores acontecem todos os dias fora dali, bem mais perto de nós, silenciosos humanos. Me fechei em mim. O silêncio silencia as culpas que porventura sintamos. Fatos trágicos, não tão trágicos, ou pouco trágicos, acontecem o tempo inteiro e nos quedamos silenciosos. Perdemos o nosso poder de indignação. Perdemos a simplicidade das ações. Não se bebe chás. Não se olha a lua. Não se aprende nada vendo insetos na impetuosa luta do dia a dia. Ponho um pouco mais de açúcar na minha xícara. Bebo o silêncio das minhas faltas.


"inspiração" dois trechos de poemas de Paulo Leminski e Rapsódia em Agosto do Akira Kurosawa.


s.e.s


segunda-feira, 18 de abril de 2011

Pequena tragédia caseira



Passei uma tarde entre flores comestíveis, sorvi do néctar que me foi oferecido. Refestelei-me, sorri, demonstrei muita virtude em não ter pudor. A sorte me sorriu algumas vezes e eu corrompido pela desmedida acreditei-me infalível. Sorrateiramente, o cansaço chegou só para mim. Evadi-me para um lugar seguro. Até pensei, no silêncio da minha fuga, em voltar e resistir bravamente à onda que tudo carregava. Mas meu erro fatal já havia sido cometido e a punição estava a caminho. Voava ligeiro nas asas da companheira, que furiosa não aceitou a interrupção do bailado da abelha em volta da flor. Taças quebradas, pratos quebrados, sussurros nervosos, uma energia que emergia incontrolável. Uma dor de séculos renascia. A da fêmea desprezada, antes da sua satisfação se completar. Eis o meu destino cego, sempre recomeçar até a certeza de que a catarse se instalou e o êxtase quebrou o inquebrantável (des)equilíbrio dela.




s.e.s.

Trivias políticas

MacDonald's e maconha


"O líder do PT na câmara, Paulo Teixeira (SP), disse que, se comer sanduíches do McDonald’s, “talvez o maior crime”, não é proibido, o governo não poderia impedir também o plantio de maconha. “Cabe ao Estado dizer que faz mal à saúde. Não existe crime de autolesão. Se eu quero, eu posso usar, tenho direitos como usuário. E isso o Estado não pode te negar".

Infelicidade não escolhe a hora para sair da boca de estúpidos. Como pode comparar cannabis com big mac? Não dá, assim não é possível. Mas para todos os efeitos, como ambos são um lixo, o pensamento menos ruim seria esse: se um é proibido o outro deveria ser também, não esse pensamento tortuoso de iluminista em festa funk.

Campanha nacional de desarmamento

O novíssimo ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, saiu-se com essa: “Não [se] entra na casa das pessoas para ver se tem dengue? Tem que ter uma maneira de entrar na casa das pessoas para desarmar a população”.

A bondade é algo belo de se perceber nas pessoas. Entrar na casa do cidadão para salvar o cidadão do risco maior que o cidadão pode impingir a si próprio. O cidadão, este ser é ingênuo, necessita de um Estado generoso que por excesso de zelo e bondade entraria porta adentro na casa das pessoas, revirando tudo atrás de armas; belo, perfeito, inimaginável. Cabeça de cocô. Estudou tanto pra isso? E a Constituição? Ah, essa não pode nada contra a bondade.

Lei seca mineirinha

"O senador Aécio Neves (PSDB-MG) deu dois maus exemplos na madrugada de sábado, no Rio: dirigia com a habilitação vencida e se negou a passar pelo teste do bafômetro. Sua Land Rover foi parada numa blitz na avenida Bartolomeu Mitre, no Leblon, às 3h, a poucas quadras de seu apartamento. Foi multado em R$ 957,70 por recusar o bafômetro e em R$ 191,54 pela habilitação vencida".

Parar um cara numa Land Rover já é uma ousadia, chega a ser um displante. Parar o Aécio Neves, neto de Tancredo Neves, pegar ele com a carteira de habilitação vencida e ainda meio encachaçado, de tal maneira que ele se recusa a bafometrar, hum... Tem horas que eu acho que esse país tá no caminho certo. Mas só dele estar numa Land Rover, madrugadão, com uma bela mulher do lado, isso merecia não uma multa mas uma salva de palmas, um (em voz alta) vai tranquilo senhor e um (em voz baixa) achava que esse cara era gay: velhão, solteirão, esquisitão, sei não, ufa!. O cara é másculo mesmo, dirige bêbado, não faz o testo do bafômetro, com uma gata do lado e ainda com a carteira vencida, putz, mó punk de terno.

FHC e o povão

Vai chegar uma hora que o FHC vai embora daqui. A capacidade de estupidezes construídas envolvendo seu nome o condena a um ostracismo involuntário. Tudo o que ele fala, não presta, pela ótica de alguns ilustres jornalistas comprados pelo poder. Tudo é passível de ser distorcido até se transformar em outra coisa. Sei não, como as pessoas não debatem ideias mais tudo é pré-texto para denegrir a pessoa. Tratam FHC como um câncer maligno desse país, singular, muito singular. Povo de mente curta.




w.a.

terça-feira, 12 de abril de 2011

O pesadelo de Machado ou "esta a gloria que fica, eleva, honra e consola"



ANTES:


Discurso de Machado de Assis, proferido na sessão de abertura, em 20 de julho de 1897.

"Senhores,

Investindo-me no cargo de presidente, quisestes começar a Academia Brasileira de Letras pela consagração da idade. Se não sou o mais velho dos nossos colegas, estou entre os mais velhos. É simbólico da parte de uma instituição que conta viver, confiar da idade funções que mais de um espírito eminente exerceria melhor. Agora que vos agradeço a escolha, digo-vos que buscarei na medida do possível corresponder à vossa confiança.

Não é preciso definir esta instituição. Iniciada por um moço, e aceita e completada por moços, a Academia nasce com a alma nova, naturalmente ambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige, não só a compreensão publica, mas ainda e principalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso. Já o batismo das suas cadeiras com os nomes preclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica e da eloqüência nacionais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles os transmitam também aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira. Está aberta a sessão".


DEPOIS, MUITO DEPOIS...




"ABL concede sua honraria máxima para Ronaldinho"

Não tenho", declarou Ronaldinho ao ser questionado sobre seu livro predileto.

Para encontrar os "imortais", ele fez uma pequena mudança no visual. Deixou as camisetas estampadas de lado e usou camisa social preta e calça jeans. Além disso, escondeu suas correntes de ouro dentro da camisa.

"Pretendo trazer a minha família aqui. É sempre bom ter contato com a cultura. Vou aproveitar a visita para pedir umas dicas de livro para os acadêmicos", afirmou.


Machado deve estar revirando no túmulo!!!



w.a.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Os alquimistas estão chegando


Dentro de mim uma algaravia de sons e palavras. Textos e mais textos misturam-se aos meus pensamentos. Trechos de músicas chocam-se com pedaços de palavras. Estalidos de baterias roçam parágrafos aleatórios. Fragmentos de guitarras abraçam-se com pedaços de poemas; o grave sonido do contra-baixo corta frases inteiras. Da minha barriga sons emergem como uma sinfonia. Consigo pressentir as vogais deslizando por sobre a pele. As consoantes, essas não, aparecem dos lugares mais estranhos. Parece que elas se agarram e não querem subir para cumprir suas obrigações de formar palavras. Uma sinfonia de palavras, eis como me sinto. Cada passo que penso em dar corresponde a um som. Cada pensamento surge em meio a um vendaval de palavras embaladas por músicas alheias. Cada som que ouvi, cada palavra que li agora parecem ter se rebelado dentro de mim. Transpiro pontuações. Cuspo notas musicais. Vomito uma sopa de letras. Estou em meio a uma grande alucinação. Desespero-me. Tapo os ouvidos com protetores; vendo meus olhos; intento não pensar em nada. Uma palavra sobrevoa o cérebro. Disparo contra ela a ordem de que se cale, essa ordem ecoa e liga uma nota musical, de repente escuto uma breve e pontual música pop. Pop songs grudam como chicletes, sacudo a cabeça, percebo que algumas letras desabam sobre mim. Retiro a máscara, olho em volta, estou numa poça de letras mortas, restos de sons, interrogações mil. Busco uma calma que não tenho. Volto a ouvir, respiro profundamente e sinto mexer dentro de mim poemas antigos. Trechos de contos, partes de livros. Um piano insurge-se contra minha tentativa de silêncio. Fica martelando um Beach Boys, uma, duas, três vezes. Sinto um leve roçar de Sylvia Plath, meu dedo dói. "Cem anos de solidão" estraçalham minha mente. Sou um dos Buendía mas a trilha sonora é uma música do Teenage Fanclub. Não quero mais brincar. Cansei. Resolvo sair de casa. Visto-me, procuro a chave para sair desse apocalipse; nos bolsos da calça salta um aforismo de Nietzsche que jogo pela janela. No meu corpo há uma proliferação de palavras alheias. Parece que estou com uma doença de pele, olhando de perto percebo, com assombro, que tenho hematomas, as letras têm cores, como previu Rimbaud. O A é negro, o E é branco, o I vermelho, o O é amarelo-ouro , o U de um verde-árvore-nova que me assusta. Algumas consoantes rompem a pele para se mostrarem no seu esplendor, Kas agressivos, pelo pouco uso, ardem-me; repito mentalmente kriptonina, kriptonita, tentando acalmar sua fúria. Os arroxeados da minha pele são de um negro espartilho peludo de moscas em tumultos. Exala de mim um fedor cruel. Não sorrio, meus dentes perderam o branco leitoso e agora surgem como sangue cuspidos. Essa alquimia infernal só cede quando mudo de ideia e me decido por um banho gelado. As palavras e os sons vão me deixando. Olho fixamente para o chão, piso letras e notas. Afasto do meu cérebro os últimos resquícios de pensamentos confusos, vou ficando limpo. Volto a pensar em coisas simples, tenho fome, sinto a pele ardendo, acho que respirei indevidamente uma frase do capítulo sete do "Jogo da Amarelinha" do Cortázar. Cuspo um poema inteiro do Borges, minhas últimas leituras vão em abandonando, textos de Carpentier, Todorov, Lessing, Campos, um horrível da Cevasco, outro do Hall, e ainda um Bordini. Sinto-me como num conto do Poe, explicado pela modernidade de um Rosenfeld. As músicas perdem-se ralo adentro... lá se vão os novíssimos acordes do Midlake. vejo com alegria quando percebo que Bakthin e Cândido saem de mim misturados com letras de música do Luan Santana que eu não ouvi propositadamente. Estou purificado. Abro uma cerveja, como azeitonas, evito músicas e livros, resolvo dar banho no cachorro, retiro dela carrapatos e mais carrapatos, sinto que ela também está impregnada de males, sento-me no chão e vou meticulosamente limpando-a, meu cérebro está apaziguado, por hora.



s.e.s

sexta-feira, 8 de abril de 2011

"Poemas concebidos sem pecados"


Durante muito tempo concebiam a poesia olhando para fora de sua janela. Admiravam todos aqueles mágicos da palavra que contavam histórias, fabulavam, inventavam e os encantavam. Rosa, Ramos, Drummond, Bandeira, os Andrades, entre tantos outros. Morar na periferia do Brasil era complicado, mesmo assim tentava-se manter as virtudes, fugindo ao sofrimento do dia a dia, lendo. Ler sempre é um bom lenitivo para as doses diárias de complicações que por ventura possa-se ter. Mas nunca eles se encontravam naquela poesia. Essa visão de alteridade produzia neles uma falsa impressão de presença, na verdade não eram. Ainda não haviam conduzido as sensações para o reino de papel. Ficava apenas no quase. Queriam mais e o mais se fez. Foram apresentados ao "Cabeludinho" (primeiro poema do primeiro livro de Manoel de Barros) e um novo mundo se criou. Por mundo leia-se um horizonte olhado de dentro de casa.

O ser Manoel de Barros têm raízes pantaneiras, a pessoa Manoel de Barros viajou o mundo, o futuro poeta misturou quereres num tempo repleto de transformações, o poeta Manoel de Barros condensou suas influências e da sua pena brotaram singularidades. Nascido na periferia de um país gigante, foi como um estrangeiro dentro do seu próprio país que ele morou no Rio de Janeiro. Esse estrangeiro só estava em casa no seu chão e o seu habitat natural era puro e virginal. Como um ser mutante se enuncia depois de perceber as dores do mundo e não reconhecer no outro as características mais simples? Ser multicultural antes que ser multicultural se tornasse quase um palavrão ou uma obrigação politicamente correta. Por sermos periféricos todos somos multiculturais na nossa essência mesma. Nossa visão de mundo nunca será a mesma das pessoas que vivem nas grandes metrópoles. Os grandes vazios populacionais, os grandes silêncios dos lugares que vivemos contradizem frontalmente os das pólis que acabamos conhecendo pela televisão, por fotos de revistas. Um caboclo, mesmo sendo da elite dos caboclinhos, Manoel foi transformado pelas suas andanças.

O mundo fez o poeta? O poeta fez um mundo para si? Ou mundo e poeta se misturaram numa algaravia incontrolável? Quem poderia explicar? Sabe-se que Manoel bebeu na fonte modernista, sugou do tormento das vanguardas, liquidificou tudo e o que surge sempre é uma palavra renovada que cheira leite morno. Esse passo à frente que Manoel propiciou para a poesia teve um nascedouro e ele chama-se "Poemas concebidos sem pecados", e nele ainda percebe-se um tímido e vacilante eu-lírico quase auto-biográfico. "Poemas" é um livro mínimo quando comparado a tudo o que se produzia no país à época. Mas para esta região abandonada do país é como se um Homero tivesse brotado do chão. Compulsando a vida interiorana, retratando um povo sofrido, que luta, como "Maria-pelego-preto", seu "Zezinho-margens-plácidas", a "Negra Margarida e claro "Cabeludinho"; eis que surge uma quantidade impressionante de pessoas que vivem e sobrevivem às margens da grande sociedade.

Tornar a esse Manoel de Barros, agora com esse olhar de quem pode perceber a diferença é encher os olhos numa vasta fonte de informações culturais. Como fazer para compreender Manoel então? Utilizando-se das armas dos formalistas que diz que a resposta está no texto, nada pode estar fora dele? Fazer como os estudos culturais que dizem: olhem, busquem a diferença, o periférico, a informações extras? Fazer como os acadêmicos com suas monografias que se atracam às suas páginas e tiram de lá eros, tanatos, realismo mágico, pós-modernismo, niilismo, tudo de maneira tão correta quando confusa? Não sei. Não existe uma resposta para isso, ler, se as pessoas somente lessem os livros, isso já seria um grande avanço. E esse livro, que completará 75 anos no ano que vem, ainda é tão abandonado e desmerecido que qualquer que seja a leitura crítica que façam dele, já terá sido um avanço no reino das letras.



s.e.s.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

"O mundo das palavras encolheu"


Havia um tempo em que a palavra comandava todas as ações. Vivia-se a palavra com muito mais ênfase do que se vive hoje. Na Bíblia está: "E Deus disse: faça-se a luz e a luz se fez"; desse princípio simbólico para a palavra até os dias atuais essa mesma palavra alcançou os píncaros da glória e hoje definha a olhos e ouvidos vistos. A palavra tinha tanto poder que nenhuma grande proposição daquelas que mudaram o mundo surgiram ser estar ancoradas nela. No tempo em que não existiam telescópios poderosos pretender informar que a Terra girava em torno do Sol só era possível através de textos, muito bem escritos. Darwin só revolucionou o mundo com o seu "Origem das espécies" pois suas palavras fizeram sentidos para a multidão de leitores e detratores dele. Freud criou a psiquiatria porque as suas explicações eram muito convincentes para quem o lia. Deus só existe como construção quase real, pois a sua "palavra" existe, e é palpável, podendo ser lida, relida e interpretada através da Bíblia, do Corão, etc. Shakespeare sozinho é responsável pela criação de mais palavras que algumas pessoas nunca falarão. De lá pra cá fomos desaprendendo, ou quem sabe fomos terceirizando a palavra separando tudo em mínimas partes. Um matemático russo consegue se entender com um matemático islandês somente através das fórmulas matemáticas, eis o silêncio da palavra. Com o passar do tempo, com a fraqueza das escolas, das famílias, dos alunos, é muito mais cômodo e prático reduzir o número de palavras empregadas, chegando assim a quase existir um linguajar de encomenda. Assista-se a televisão e ver-se-á que nos jornais não existe lugar para repórteres rebuscados, com linguajar escorreito e perfeito, pois os mesmos perdem a razão de ser quando se sabe que fala para milhões de ouvintes que esqueceram há tempos o significado de uma quantidade enorme de palavras. Ocorreu uma doutrinação pelo menos, a quantidade de palavras utilizadas beira ao semi-analfabetismo. As palavras, com a comunicação de massa, perderam o poder de conotação. As figuras de linguagem e de pensamento foram abolidas, escanteadas. Na literatura de hoje em dia o escritor precisa dizer muito mais com menos recursos, não pode se debruçar sobre o vasto repertório existente sob pena de ser considerado pedante, arrogante. Os leitores na maioria das vezes não conseguem ir além das proposições mais simples. Hoje quem comanda o mundo é a linguagem da informática, nós, pobres seres humanos, capengamos nesse mar de novidades, teclando cada vez menos palavras, para darmos conta de tanta informação que nos circunda e que nos atravessa. Somos trespassados pelas palavras, mas as palavras já não significam tanto. A palavra de hoje em dia está gasta, como propôs Steiner. A utilizamos até o limite, e compreendemos, enfim, que para sermos atendidos em nossos desejos temos a necessidade mais da potência, brevidade e repetição do grito que da força de uma grande exposição. Em tudo isso se vê a mão obtusa do mercado. Uma propaganda não necessita de grande quantidade de palavras para ser entendida, logo, como se consegue vender produtos com jingles e não mais com músicas, com bordões breves e obtusos até, por extensão vamos desnecessitando de uma grande quantidade de palavras para nos comunicarmos e elas vão sendo abandonadas aos dicionários.




s.e.s