quinta-feira, 31 de março de 2011

Rainha de copas


O deputado Bolsonaro se encrencou de novo. Falastrão, boquirroto, foi ao CQC e num 'se levanta que eu chuto', chutou o pau da barraca. Defendo ele naquele caso, não que ele mereça isso, apenas dá pra perceber que a resposta, horrível e que seria horrível também se fosse a resposta para a qual ele pensava estar dando a resposta, ainda assim dá pra ver que ele trocou as bolas e mandou ver um monte de impropérios em cima da Preta Gil. Não contente depois do primeiro burburinho criado, no outro dia, agora no velório do Zé de Alencar aprontou outra e mandou ver que não liga a mínima para os gays. Até aqui são fatos públicos e notórios, daqui por diante ninguém sabe onde isso vai parar.

Ninguém paga nada por falar de menos, não? Quando você confunde seus credos, suas ideologias, seu modo de perceber o mundo achando-os únicos e acima de qualquer suspeita, você está a meio caminho da desgraça. Bolsonaro faz isso, parece que é um marketing com método. Ele não fala as barbaridades que diz em público sem saber que o faz para "o seu público". Ele é um deputado, necessita de votos para se reeleger e se reelege eleição após eleição, logo ele tem eleitores fiéis. De tempos em tempos jornalistas espertinhos, que precisam de uma manchete, o entrevistam, e ele não se faz de rogado e manda falatório nos assuntos que acredita estar com a verdade. A verdade quase nunca está com ele. Pessoa que parece parado no tempo, estagnado numa concepção de um mundo ilídico, perfeito; um universo ariano permeia a cabeça do deputado, mas quanto a isso ele não está sozinho e muitos adoram seu estilo pois têm também um universo parecido em suas cabeças, apenas sabem que não sãos deputados e nem contam com foro privilegiado para discutir qualquer encrenca.

O deputado acabou dando de bandeja sua própria cabeça. É que o mundo mudou. Aquele tempo preconceituoso, elitista, (em tese) acabou, ficou para trás. O mundo está sendo reordenado e as minorias agora podem clamar por igualdade e fraternidade do alto das suas trincheiras de batalha, e, como ninguém é bobo e os tempos mudam, o mais certo para que um passado não tão remoto volte a assombrar é ter uma lei para chamar de sua, se não tiver uma lei particular não serve. E eis que o deputado se presta a esse serviço. Seu destempero verbal, permeado de um pensamento fascista serve à causa justamente que mais odeia. Seu ódio, ao meu ver é injustificável, mas ele será imolado vivo, as minorias precisam de um copo de sangue fresco para comprovarem suas teses.

Nesse diálogo de surdos em que estar ao lado das minorias parece mais ser uma obrigação moral, tal e qual as bolsas governamentais (quem está contra é contra o povo), o discurso errático do Bolsonaro serviu sob medida e as ditas minorias ficaram com o queijo e a faca nas mãos. Todo mundo precisa ter como se defender de pessoas como Bolsonaro, ainda bem que por terem sido minorias durante tanto tempo agora mostrarão que são pessoas centradas, equilibradas, o perdão pende diante da cabeça do detrator. Os jacobinos só gritarão: "cortem-lhe a cabeça", e todos ficarão satisfeitos por verem cair uma cabeça que não a sua. Só uma pergunta, quem nos defende dos radicais contrários a Bolsonaro?

O silêncio é a chave, e da arquibancada assistiremos as próximas rodadas. Será isso que Martin Luther King chamava de o silêncio dos bons? Eu sou bom? E o que manda a Constituição? Dane-se a constituição se for para o bem da cidadania? Deixa ver... claro que não!!! Errou que pague, mas que não precisemos tirar as crianças da sala por conta disso, como um grande espetáculo pedagógico do tipo "tá vendo? Não mexe com a gente!". E a moderação morreu de overdose.



w.a.

O céu pode esperar


José de Alencar morreu. Foi um grande homem em vida. Merece todas lágrimas, todos os rostos compungidos. Foi um lutador, sempre. De infância pobre alcançou os píncaros da glória sendo empresário bem sucedido e ainda, glória das glórias terrenas, vice-presidente e por extensão diversas vezes presidente em exercício do Brasil. Agora terminado esse ciclo já vi muitas charges mostrando um Zé Alencar todo vestido de branco, subindo as escadarias do céu. Senhores, tenho uma triste notícia para lhes dar: acabou. José de Alencar que intentou viver mais e mais, num apego maravilhoso pela vida, no íntimo sabia, só se vive uma vez, e Deus, que Nietzsche já matou há tempos, continua morto e enterrado. É chato acabar com uma festa tão bonita, para uma pessoa que valorizou a vida mais que muitos. Para quem não compreende isso, e vive esperando o maná tornar a cair, não cairá. Que vive esperando a arca perdida, a arca era uma metáfora. Agora, enxugado as lágrimas, a nossa vida continua, bola pra frente que atrás vem gente, pois o paraíso e o inferno se realiza todo dia dentro e ao redor da gente e a morte é o sentimento de perda que sente quem fica não quem vai. O céu não passa de mais uma figura/imagem/símbolo, acho que vocês conseguem lidar com isso...




a.p.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Borges extraterritorial


Hoje em dia Jorge Luis Borges, o escritor argentino, é uma sumidade. Nem sempre foi assim. Sua repentina fama data do ano de 1961 quando ganhou juntamente com Samuel Becket o prêmio Formentor. Depois disso o mundo repentinamente sentiu-se atraído por quase tudo que ele escreveu, e passou-se a consumir avidamente suas estranhas iguarias. Ironia das ironias para quem vendeu apenas 37 exemplares do primeiro livro. Hoje em dia Borges é uma marca, sozinho é uma empresa lucrativa que vende muito a cada reedição. Suas monomanias agora tornaram-se a dos leitores: livros, bibliotecas, a cegueira, espelhos, labirintos, tigres, um outro eu, o tempo. Pensar que talvez por não ser tão conhecido Borges pudesse ter abandonado tudo, começado a escrever sobre outros assuntos, mas não, ele sempre permaneceu fiel a si mesmo.

Borges depois de conhecido mundialmente passou a ser copiado ostensivamente. Suas características podiam ser simuladas por escritores atentos, e foi o que fizeram, criaram do universo borgiano uma alegoria kafkiana, um mundo inundado de alephs, suspenses, intrigas. Mesmo assim, impressiona como um mundo particular ultrapassa o espelho e atinge todas as realidades possíveis. É que por trás das peculiaridades borgianas tinha um gênio de extremo e apurado rigor linguístico. Tudo é linguagem e a linguagem que salta da erudição de Borges é quem mantem de pé, por tanto tempo, o edíficio de suas obras. Suas particularidades escondem-se sobre o manto da universalidade, Borges está em casa em casa falando o inglês, francês, alemão, italiano, português, anglo-saxão e nórdico antigo, e é óbvio o espanhol, sendo que ainda tentou aprender japonês quando era bem velho. Borges é extraterritorial, escarafunchando o mundo que o rodeia, sendo guiado pelo seu "báculo indeciso", penetrando em diversas culturas.

Como explicar sua intrincada trama de alusões bibliográficas, reais ou inventadas; as citações são ás vezes tão eruditas que deixam o leitor perdido; suas referências cabalísticas, filosóficas, fazem, nesse tempo em a sabedoria parece ter fugido da face da terra, perceber que seu conhecimento beira a uma construção surrealista. É surreal o modo como Borges inventa e se reinventa o tempo inteiro sem sair do mesmo lugar. Repete, repete mas nunca se repete. Borges faz um inventário da civilização, salvando pequenos fatos do ostracismo, dando-lhe uma nova concepção, tornando desnecessidades em fatos quase reais e profundos, a golpes de muita imaginação. Toda sua estratégia baseia-se em reagrupar "peças da realidade sob a forma de outros mundo possíveis".

Sua concisão é o lugar de onde se enuncia. Do formato de contos, que teve por mestres Tchekov, Maupassant, Borges ergue um mundo extremamente fechado. Se hoje podemos dizer que temos uma vasta memória, Borges está na origem dela. Sua brevidade, aliada a sua erudição, somado a uma imaginação prodigiosa ainda assim não conseguem explicar de todo o fenômeno Borges. Ele mesmo explica que sua visão, a princípio fraca, depois nenhuma, o obrigam a compor mentalmente e que assim erguer um romance seria uma prova de força, uma complicação desnecessária, logo, acabou criando no formato de contos obras-primas justamente por conseguir de um só folêgo contar uma história que necessariamente não precisava de um fecho, ou até mesmo podia ficar sem aprofundar muitos fatos.

Borges insere-se nessa categoria dos escritores que partindo do seu idioma pátrio, conseguiram através da apreensão de novos idiomas, uma complexidade no modo de pensar; um, talvez, olhar oblíquo diante de um mundo estranho. Como Becket, Nabokov, Wilde, Pound, Conrad, Borges ultrapassa a barreira da linguagem, expressando-se ou compreendendo outras línguas. Esse acesso a uma infinidade de possibilidades textuais ampliaram seu universo pessoal e ao misturar nesse caldo extraterritorial suas teimosias ou credos, surgiu esse Borges colossal que temos hoje. Uma soma misteriosa de partes localizadas em bibliotecas esquecidas. "O grande escritor é tanto anarquista quanto arquiteto, seus sonhos solapam e reconstroem a remendada e provisória paisagem da realidade".


Fonte: "Tigres no espelho". In: STEINER, George. Extraterritorial - a literatura e a revolução da linguagem.



s.e.s.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Bullying piauiense


Não é de hoje que na grande escola que é o Brasil o Piauí vem sofrendo bullying. Sempre aparece um grandão e dá uma chapoletada na orelha do estado. Parece que é engraçado fazer isso. O Piauí, coitado, sofre; sofre, mas não sofre calado. Quanto mais apanha, quanto mais sofre bullying, mais ele se agiganta. O Piauí está de cabeça quente, chateado mesmo.

Da outra vez foi o presidente da Philips que disse a singela frase: “se o Piauí deixasse de existir, ninguém ficaria chateado por isso”. Foi transformado em persona non grata no estado. Mesmo pedindo desculpas uma onda de protestos grassou o tortuoso estado. Agora um ator de teatro – Marauê Carneiro, na véspera de apresentar uma peça, disparou sua sentença de morte numa postagem no Facebook: “estamos em Teresina, do Piauí, se o mundo tem cu, o cu é aqui”. Que beleza. Levou outra saraivada de tapas na orelha (metafóricos, é claro). Saiu ameaçado de fazerem omelete na sua cabeça.

Tem algo de errado com o Piauí que eu não saiba? Todo mundo quer tirar uma onda com o estado? Se fosse pelo tamanho tinha que sacanear Sergipe, o Distrito Federal, Alagoas quem sabe, ou o Acre, esse sim um bom lugar para ser o cu do mundo, não? Longe pacas e ainda lembra uma boca aberta de um desenho animado. Mas não, vira e mexe eis que alguém apronta com eles, os piauienses.

Todo mundo sabe que o bullying é pernicioso para quem o sofre. Pode aquele que passa por isso desenvolver problemas psicológicos, ter sua alto-estima rebaixada pelas sacanagens sofridas. Podemos estar criando um estado que desenvolva tiques nervosos, que passe a demonstrar um ódio excessivo para qualquer pessoa que não seja nativo da região. Por isso proponho que, em retaliação aos sacanas que praticam o bullying contra o estado do Piauí, seja promovido o Dia do Piauí.

Todos terão que prestar sua homenagem ao Piauí, comendo suas comidas típicas, ouvindo suas músicas típicas, e tudo o mais que for típico da região. Nas escolas do Brasil inteiro as aulas serão sobre o Piauí. Em Geografia estudarão, ou melhor, apresentarão trabalhos sobre o relevo do estado, explicação para o estado ser torto parecendo um biscoito caseiro feito por uma criança ou um ectoplasma saído do filme Caça-fantasmas; falarão sobre os rios que cortam o estado. Na aula de História, é óbvio, contar-se-á a formosa história do estado, aproveitando para ver se encontram uma explicação para tanto bullying; será que o estado sofreu bullying quando era criancinha e não aprendeu a enfrentar seus problemas, e agora todo mundo aproveita para tirar uma casquinha? Na aula de Português os alunos aprenderão o piauiês, a variante lingüística do português na região, que como todos sabemos, não está certo nem errado, pois isso não existe mais, o importante é que o falante se comunique. Na aula de Literatura estudaremos Mário Faustino, Assis Brasil, Torquato Neto, Abdias Neves, Alvina Gameiro, Ovídio Saraiva, Licurgo Paiva, Hermínio Castelo Branco, Francisco Gil Castelo Branco, Da Costa e Silva, Abdias Neves, entre outros.

Quem sabe depois desse castigo severo, o Brasil não se emende e compreenda de uma vez por todas que bullying é crime. Deixem o Piauí em paz, senão o próximo passo é dar a independência para o estado, que passará a se chamar Oeiras, para poder esquecer seu passado de sofrimento com o bullying, e isso poderá ser o fim do Brasil como o conhecemos, logo depois teremos o país dos Farroupilhas, o país dos Barrigas Verdes, o dos Loiros de Olhos Azuis e em sendo assim, é óbvio que clamarei pela independência da Nhecolândia que foi onde nasci.



s.e.s

Yes, nós temos Bananas!


Na Europa a banana é, hoje, o símbolo máximo do racismo. Coitada da fruta. Decadência total. Já foi chapéu e não saía da cabeça da Carmem Miranda; era comida preferida do Guga entre um set e outro, quando ele dominava o circuito mundial, agora é uma forma metafórica de dizer: macaco e por extensão negro ou gringo. Países que produzem bananas deviam se juntar e exigir reparação urgente, estão denegrindo a banana, essa fruta saborosa e cuja antiguidade merecia um respeito maior.

A banana já foi chamada pelo romano Plínio de "a fruta dos sábios". Dizem até que a fruta que desgraçou Adão e Eva foi a banana e não a maçã, mas por ela ter esse sentido fálico optou-se pela maçã, vermelha, despudorada, para assim criar uma métafora consistente de pecado. Também contribuiu para o erro as traduções erradas para o latim do hebreu, na vulgata de São Jerônimo ele optou pela palavra "malum", que quereria dizer "malicioso", mas "malum" siginificava maçã em latim, assim adeus banana da Bíblia. Outro erro crasso de tradução seria a já famosa roupa do casal depois de expulsos do paraíso, segundo consta eles vestiriam folhas de figueira para cobrirem seus corpos nus, mas todos sabemos que folha de figueira não cobre nada, e isso seria outro erro de tradução, pois banana durante um bom período era chamado de figo. Logo Adão e Eva vestiam isso sim vastas folhas de bananeiras, ou então teriam criado os primeiros biquinis que setem notícia com as minúsculas folhas de parreiras.

O tempo e a história têm sidos péssimos amigos da banana. Desde Pápua-Nova Guiné, 5000 a.C., passando pela África, Oriente Médio, Europa, até chegar às Américas a banana teve uma vida muito atribulada. O nome banana foi dado pelos negociantes árabes, pois eles a chamavam de banan, que quer dizer dedo em árabe. A fruta uma vez aqui nas Américas sentiu-se em casa e proliferou à vontade. Mas uma vez na América nunca antes uma fruta havia mexido tanto com os poderosos. O homem já havia feito loucuras por ouro, prata, seda, temperos, açúcar, café e então passa a ser a banana a bola da vez. A Unidet Fruit em 1920 é uma megacorporação e manda e desmanda nos países em que tem terras e bananas. É uma época negra em que as empresas com todo o apoio da Casa Branca transformam seus territórios em verdadeiros países e criam o que se chamou de "Repúblicas das Bananas" para nações cujos governantes construíram-se e mantiveram-se orbitando entre as companhias e o governo americano.

Ora, se a banana não teve uma vida muito virtuosa não é por culpa dela. Fruta facilmente cultivável, aqui no Brasil vários quintais tem seus próprios bananais para consumo. Nos mercados uma vastidão de tipos para todos os gostos: nanica, prata, ouro, da terra, d'água. É preciso que se diga ao mundo que nós, brasileiros e porque não latino-americanos em geral não admitimos que uma fruta como a banana tenha seu nome atado a casos de racismo. Precisamos limpar o nome da banana, quem sabe agora os jogadores entrem em campo com cachos de bananas que seriam doados para instituições de caridade depois do jogo. Ou então no lugar das estrelas que indicam quantos títulos mundiais temos, colocarmos singelas bananas, numa edição limitada que tenho certeza venderá muito.

Quanto ao racismo não há muito o que fazer, descobrir quem são esses dementes, banir dos estádios isso já basta, pois um racista dificilmente deixará de ser racista por alguma didática qualquer, isso é questão de educação. Jogadores de futebol podem e devem se defender continuando seu trabalho dentro de campo, marcando gols, jogando bonito, já a coitada da banana essa precisa que a defendamos. A banana exige uma reparação.


w.a.

Diálogos sobre diálogos

Sabe como enfrentar o medo? Tendo medo de ter medo. Montaigne dizia isso: "a coisa que mais tenho medo é de ter medo", concordo. Mesmo que em momentos extremos eu não saiba como evitar que minhas pernas tremam, que minha voz não saia, que meus gestos percam-se na tentativa e no não acontecer.

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"Eu que tantos fui", Borges começa assim um dos seus inumeráveis poemas. Sempre me pego perguntando se essa monomania borgiana, essa obsessão pela repetição temática não está na raiz do seu sucesso. Repetir, repetir, repetir, até isso se tornar um estilo, foi Manoel de Barros quem escreveu isso ou algo parecido; Borges escrevia diversas vezes o mesmo conto, o mesmo poema, olhando para eles por um ângulo diferente e o resultado é que sempre parecia que estava falando algo novo, mas nada mais era que repetição.

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Pergunta ingênua: qual a razão das televisões brasileiras nunca passarem na sessão da tarde um filme argentino? Um filme chileno, uruguaio, mexicano, paraguaio (no Paraguai fazem filmes?); pois é, vou dar um chute, filmes latinos trazem uma realidade próxima a da brasileira, pobreza, lugares ermos e feios, corrupção, pessoas que fogem ao estereótipo dos filmecos americanos, logo, não existe o menor interesse de ninguém para que esses filmes sejam vistos. Por uma sessão da tarde menos idiota poderíamos criar uma campanha assim. Será que rolaria? Nunca vi ninguém defender nem o cinema brasileiro, quanto mais os dos hermanos de desgraça.

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O Brasil vive um momento de ufanismo total. Ser brasileiro está na moda, estamos surfando na crista da onda. Aqueles que ousam apontar defeitos, qualquer defeito que seja, são apedrejados até a morte da voz, como foi Madalena em alguma realidade alternativa. Mesmo assim, em meio a tanta coisa superlativa acontecendo, não consigo entender a razão da educação continuar um lixo. Sendo tratada com pão-de-ló estragado da publicidade, com professores desanimados e loucos para abandonar o barco antes que a insanidade os alcance, ou que algum aluno aponte para eles dedos de Judas ou pais os ameacem de morte por não passarem o filhinho querido do coração, mesmo que esse filhinho seja o pior aluno da sala, quiçá do mundo.

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O silêncio pudoroso de Dilma vem sendo confundido com talento. Os jornalistas - esses seres emblemáticos - vivem a tecer loas ao "estilo" criado por ela. Toda uma estratégia de marketing pra colar nela a imagem de uma pessoa que fala pouco e faz muito, justamente para ser uma oposição ao estilo Lula que falava demais e segundo a lenda fazia demais também. O importante é que acreditem que ela seja diferente onde tem que ser diferente e igual onde deve ser igual, afinal ambos são grãos de soja colhidos no mesmo campo, o do populismo. Em sendo assim ela só fala de vez em quando, em conversas e discursos escolhidos a dedo, mesmo assim, nesses momentos, transparece aquela mulher de pensamento e fala tortuosos e complicados de se entender; algo de bom nisso, está para ser criado uma profissão do futuro: tradutor e intérprete do dilmês que ela fala. Professores de Letras à postos, vamos mergulhar nesse lodaçal - ops - nesse mar de informações e colocar mãos à obra:

“Aqui, senhor presidente Obama, sucedo a um homem do povo, meu querido companheiro Luiz Inácio Lula da Silva, com quem tive a honra de trabalhar. Seu legado mais nobre, Presidente, foi trazer à cena política e social milhões de homens e mulheres que viviam à margem dos mais alimentares (sic) direitos de cidadania”. (Dilma discursando na visita do Obamis)


“Na minha humildade, né, no meu chinelo da minha humildade, eu gostaria muito de ver o Neymar e o Ganso. Porque eu acho que 11 entre 10 brasileiros gostariam. Porque deu alegria ao futebol. Porque, a gente… Eu vi. Cê veja, eu já vi. Parei de vê, voltei a vê. E acho que o Neymar e o Ganso têm essa capacidade. Fazê a gente olhá.. Porque é uma coisa que, né, mexe com a gente. Tem esse lado brincalhão e alegre”. (Dilma batendo uma bolinha com a língua mátria)





s.e.s.

Manual do crente: a guerra entre-mundos


O maior desejo dos crentes é o de se separarem do mundo dos não-crentes. E as estratégias são variadas e metódicas. Há uma obrigação na interação, crentes precisam trabalhar, assim como os não-crentes. Crentes precisam de todas as coisas que os não-crentes. É uma concessão apenas. Conviver no mundano universo dos não-crentes é para eles pesaroso e complicado, para descomplicar eles erguem catedrais babélicas, organizam festas gospel, montam bandas gospel, adoram até o heavy metal dos não-crentes, mas o chamam de white metal. Em suma, como diz Borges criam uma cópia do espelho que chamam mundo e nele se regozijam. Há justiça aí? É óbvio que para todos cabe a possibilidade de escolher entre um dos mundos e nele tentar da melhor maneira se sentir bem. Mas existirá um tempo em que os mercados, os açougues, as padarias, o tio do churros, todos serão crentes e nesse dia espero que pelo menos as lojas de conveniências escapem desse surto, senão compraremos cerveja sem álcool e o troco será cartela de adesivo do smilingüido.


O grande problema é que se contrapor ao mundo não evita que tenham que viver no mundo. Não há concessão possível que evite o mundo. Crentes e não-crentes precisam do maior dos pesadelos do mundo: o dinheiro. Crentes e não-crentes são moídos pela grande máquina do mundo indistintamente. As empresas não perguntam sua religião, pelo contrário, para que os funcionários sintam-se bem dentro da empresa, toleram as grandes reuniões em que não se discute trabalho, os famigerados grupos de oração ecumênicos, enquanto isso acendem, os proprietários, vela para qualquer deus que faça que ao fim do dia, do mês e do ano, com que os cofres da empresa estejam mais abarrotados.

Nada melhor para exemplificar esse embate sangrento entre crentes e não-crentes do que o universo da música religiosa. Padres, pastores, ex-drogados, ex-atrizes, ex-sambista do diabo, ex-cantor de axé do capeta, 'ex-tudos' se misturam nessa algaravia chamada música gospel. Erguem as mãos, dão glória a Deus, fazem o mais refinado pagode do senhor, fazem o mais dramático rock n'roll, fazem até o bonde do senhor ou o 'gospelnejo' universitário. Segregam-se para melhor poderem viver a sua fé, sem que os outros, os não-crentes venham se misturar ao bando, não que não possam, mas para isso é necessário a conversão. Vivem no fim, num mundo de mentira em que imitam todos os conceitos criados pelos não-crentes e ainda acham que são melhores, pois, aparentemente, não bebem, não fumam, não fazem sexo indiscriminadamente, como se no mundo dos não-crentes fosse feito só isso, o tempo inteiro.

Os crentes se subdividem em crentes moderninhos e crentes arcaicos. Os moderninhos estão à frente ou misturado a toda gama de novidades implantadas nas igrejas, templos e outros. Deles emana os padres pop-stars; os bispos que pregam através de curas milagrosas, os exorcismos ao vivo. Esses são minorias dentro do seu próprio universo, essa vontade de ser moderno, atual, faz com que transformem e ampliem o sentido de crença, angariando novos crentes, tão crentes quanto os crentes arcaicos, que são aqueles tradicionais. Por eles missa voltaria a ser em latim, padre seria só padre e em cultos não haveria tantos gritos catárticos. Uma verdadeira babel entre os crentes, que mesmo que não se entendam entre si mesmo, preferem olhar para o outro lado e apontar o dedo para os não-crentes e dizer apontando esse mesmo dedo para o céu que “Ele vai voltar”. Os não-crentes, independente da volta D'ele, seguem sua rotina de beber, fumar, fazer sexo, e pactos com o capeta, que é o que os crentes acham que os não-crentes fazem o tempo inteiro, enquanto o mundo segue moendo os dois, separados, grupos.



a.p.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Manual do crente: o nosso mundo e o mundo deles


A maior divisão entre pessoas na face da terra é a separação entre os crentes e os não-crentes. Existe uma cratera separando esses mundos e a comunicação entre eles se dá mais por espiões que transitam entre essas duas construções, ou arrependidos de um ou de outro lado que migram para a fronteira inimiga e assim passam a conhecer ambos os mundos. Para os crentes existe um mundo espiritual, que seria a verdadeira realidade da vida. Aqui, passamos por uma fase, a vida mesmo acontece depois; quem não tem fé está fadado ao ostracismo do inferno. Logo, não crer é não ser deste mundo.


A diferença é que produz a beleza deste mundo. Se todos fossem iguais, viveríamos num “Admirável Mundo Novo” e aquela visão excruciante de um mundo de castas e cores pré-definidas dói só de ser pensada. Mesmo assim o mundo é apolíneo por definição. A religiosidade é vivida num universo impregnado de falsas ideias. Construir uma nova divisão, num mundo que já é completamente dividido em várias outras áreas do viver, é ponderar com o impossível. Para o crente o mundo deles é o melhor dos mundos, e o que subsiste nesse hipotético mundo, são questões sobre como podem os outros não fazerem parte dele.

Os crentes creem habitar um universo diferente dos não-crentes; mesmo inexistindo uma certeza racional para a existência desse mundo encantado, esse reino metafísico que enche a cabeça e esvazia o corpo. Qual seria a localização exata desse mundo? Como encontrá-lo? Quem sabe alguém possa, como Galileu que fez os cálculos exatos da localização do Inferno, indicar esse reino espiritual; se olhamos para o céu vemos nuvens, e não um soberano de barbas brancas sentado nele com uma imensidão de almas boas vagando felizes e prazenteiros.

A grande realidade é que se você é daqueles que responde questionários dizendo-se sem religião, você, aos olhos dos crentes, torna-se um pária. Para eles não é possível que você não queira ter essa dupla cidadania: a terra e o reino dos céus. Invariavelmente o tratamento dispensado para você, um não-crente, será o mesmo dispensado para o lixeiro, para o pedinte, você ou se tornará um ser invisível ou será agraciado com toda a atenção do mundo, por se transformará numa obsessão do outro; o crente ou te abandona às traças ou quer ter converter à força se der, pois acham que é só sair repetindo trechos e trechos da Bíblia que você se comoverá.

Mas é claro que existem amizades entre crentes e não-crentes, mas será sempre uma amizade receosa. Essa barreira existencial advém da dificuldade de compreensão, mais dos crentes do que dos não-crentes, pois para o crente qualquer brincadeira envolvendo, mesmo que de maneira distante, religião, logo termina em calorosas discussões. Para os crentes se você não crê, logo não pode, em hipótese nenhuma, emitir pareceres sobre o mundo livre de amarras como você quer. Isso pode ser ouvido e futuros crentes podem ser tocados em sua incipiente fé e abandonarem o futuro barco.

O problema maior é como conseguir penetrar no mundo do crente, geralmente isso se dá de uma maneira bem simples, o não-crente abandona o seu mundo e passa a professar alguma fé, de maneira nenhuma são admitidos turistas naquele mundo. Ou se entra inteiro ou fica de fora dessa grande festa possível. Agora se você não quer se converter resta a você visitas extemporâneas. Como para o não-crente tanto faz como tanto fez o modo que o crente leva sua vida, desde que ele não tente de maneira ostensiva furar essa fronteira entre-mundos, com pregações vãs, logo é possível a convivência pacífica. O mesmo não pode ser dito dos crentes que acreditam piamente ser impossível que alguém não creia em céu, Deus, Pai, Filho, Espírito Santo e santos, e andam sempre a apontar o dedo para os problemas terrenos dos não-crentes e dizendo: “viu, fulano morreu de tal doença pois não acreditava em Deus”. Pode? Não pode.



a.p.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Serviço de (in)utilidade pública


1. A multinacional do comércio de bananas Chiquita Brands está sendo processada pela morte de 931 pessoas numa zona bananeira na Colômbia. Foi só eu ou mais alguém pensou: "a vida imita a arte?", pois quem leu "Cem Anos de Solidão" recorda-se da sequência em que os trabalhadores de uma multinacional em Macondo são mortos e os corpos jogados no mar, para desespero de um dos Buendía que sobrevive, mas acaba passando é por louco...

2. "Eu sempre digo, e ouço, que não seria estranho se tivesse existido uma civilização em Marte, mas talvez o capitalismo tenha chegado lá, o imperialismo chegou e acabou com o planeta" (Hugo Chávez) (???), pois é, em alguns países, que antes eram chamados de subdesenvolvidos, e agora chamam de em-desenvolvimento, parece que a única coisa que não se desenvolve é o cérebro dos que comandam os países. É uma aptidão para a estupidez que seria engraçada se não fosse trágica...

3. No meio da confusão com o blog da Bethânia quem ficou quietinho foi o Nando Reis, ele emplacou lá o seu "Bailão do Ruivão", vai levantar a grana e sair fazendo seus shows; ah tá, então tá. Mas se me perguntassem se eu queria que meu dinheiro fosse usado pelo ruivão, eu diria, "never, never, never", pelo amor de God. Ninguém merece.

4. Elizabeth Taylor morreu. Quem? Liz Taylor. Quem? Pois é, como atriz só os cinéfilos lembram-se dela. O resto vai lembrar dela pelos 'enes' casamentos; por ela ser a melhor amiga de Michael, mas alguma coisa? Jóias? Pela tragédia que foi o filme Cleópatra. Aqui no Brasil morre atriz muito melhor todo anos às pencas; morre pessoas muito melhores e ninguém fala nada, mas como durante a nossa vida inteira sempre topamos com o glamour de Hollywood nas nossas vidas, quando morre alguém de lá, algumas pessoas daqui sentem como se tivessem perdido um irmão. Não era, vai ser mais uma que será imortalizada em fotos geniais em preto e branco, nada mais. Pra grande maioria ela era mais um inacreditável nada.

5. O Sarney lançou uma biografia autorizada. Deve se inscrever naquela categoria de livros que compram por obrigação e logo lotam as prateleiras dos sebos desse meu Brasil varonil. É um bom livro pra se fazer tiro ao alvo, sabe com aquelas espingardas de chumbinho, com que se matam passarinhos por aí? O quê? Ficaram horrorizados em saber que se matam passarinhos aos montes por aí com espingarda de chumbinho? Então comprem o livro do Sarney e aí vão ver "o horror, o horror".

6. O bullying foi um dos temas da semana. A cena do gordinho levantando o magrinho chato e jogando ele com força no chão foi hilária, e logo ele tinha uma legião de fãs. Os frascos e comprimidos sempre se unem na dor e desgraça alheia. Mas quem nunca sofreu bullying na vida aperta aqui. O bullying tinha que ser institucionalizado isso sim, tirar um dia só para bullingzar o outro, tal qual a ideia de legalizar as drogas para diminuir o consumo, se com droga pode, porque não com o bullying? Seria uma beleza, eu poderia me vingar daqueles que me enchiam o saco todo santo dia, seria o dia da forra.

7. Bruna Surfistinha o filme chegou aos dois milhões de espectadores. Eu tenho umas teorias. a) as pessoas adoram ver como as outras pessoas lidam com o sexo. b) a prostituição de luxo é um fetiche entre homens e mulheres, todo mundo queria fazer sexo e ainda ganhar a vida. c) as pessoas queriam ver a Débora Seco nua. d) foi no cinema quem comprou o livro da Raquel ou leu emprestado por vergonha de comprar. e) todas as respostas anteriores e também que é só olhar para os ridículos filmes americanos que estão passando nos cinemões, só merda, merda por merda, melhor uma merda nacional, ainda mais se rolar sacanagem.


w.a.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Roleta russa


Respiro. Minha vez. Pego a gélida arma, giro o tambor, encosto na têmpora...


Contemplo o espasmo das minhas poucas ideias. O vazio sorri de mim? Não há mais tempo a ganhar. Não há mais chance. Ao menor ruído minha coragem treme-se toda: basta de esperas. Quando descobrimos que existimos, experimentamos a sensação de um louco maravilhado que surpreende sua própria demência e procura no oco do cérebro um nome em meio ao vazio. Só a rotina nos salva da derrocada que é existir, nos habituamos a viver e vivemos sem questionar nada nem ninguém, o garfo, a faca, a caneta, o copo e todos os outros objetos nos salvam do buraco negro (e por que não buraco branco?) dos nossos dias. Os objetos existem para que possamos ser.

Conformado, finjo viver, imito bem a maioria, respeito as regras do jogo, tenho horror a tudo que é original. Resignado como um robô: simulo fervor e dou risada de tudo secretamente; submeto-me às convenções e odeio às escondidas; estou em todos os registros, mas não tenho casa no tempo; salvar o corpo, o único e verdadeiro lado da moeda, quando todos juram que perdê-lo é abrir um caminho para o paraíso. Desprezar tudo é assumir um ar de dignidade perfeita, ser aquele que leva as ovelhas para o precipício e se joga também, cumprindo sua tarefa de falso vivente. Camuflar a ruína fingindo prosperidade? O inferno não tem boas maneiras, o inferno vive-se diariamente, sem elegância, e isso quem disse foi Camus.

Aceito a vida por cortesia, no bolso sempre uma revolta perpétua, sublime fonte de ilusão. As fases da nossa ruína ao sistema: aos vinte anos somos todo revolta; depois isso cansa: "a pose trágica só corresponde à puberdade prolongada e ridícula". Logo descobrimos o falso bem-estar da conquista. Nos preparamos para que no espaço que brilha num átimo de tempo explodirmos num não-ser. Não-somos e achamos que temos todo o mundo. Desse poder às avessas prendemos correntes em nossos tornozelos e precisamos acatar às ordens de cima, pronto, somos agora um arquétipo do infortúnio; felizes desgraçados. Todo o tempo que nos resta depois passamos tentando corrigir nosso pecado original, o de deixarmos de acreditar no poder da diferença. A igualdade nos joga no fosso úmido da ordem. Unidos seguimos para o grande moedor de corpos, crendo piamente que fazendo assim salvamos a alma (a metafísica é o maior vilão do nosso tempo).

Para tolerar o falso da vida, necessitamos de uma dose gigantesca de mistificação. Somos todos impostores e nos suportamos, estoicamente, uns aos outros. Quem não aceita mentir vê a terra fugir sob seus pés, e por isso mentimos com método; nossa genética obriga a falsidade, pois a verdade se oculta na negação, na graça da veneração pública e da difamação camuflada. Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas verdadeiras opiniões sobre eles, todas as grandes falsidades do mundo seriam riscados para sempre dos dicionários; e se tivéssemos a coragem de olhar cara a cara as dúvidas que concebemos silenciosamente sobre nós mesmos, a vergonha tomaria conta de nós. O dissimular arrasta tudo o que vive. Só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres. Não há como precisar o real das coisas, o real arde no cérebro, por isso o conforto que traz um nada agradável: nossa constituição só tolera uma certa dose de verdade…

Respiro, minha vez outra vez, giro o tambor, tremo, cerro os olhos...



# releitura de: e. m. cioran


a.p.

segunda-feira, 21 de março de 2011

A grande festa multicultural ou o complexo de puxa-saco


Sorrisos e mais sorrisos. Muitas lágrimas. O povo emocionado. Ele estava entre nós. Séculos de história nos contemplaram pelos olhos dele. Em todos os lugares que o homem mais poderoso do mundo passou a comoção caminhou junto. Um frisson generalizado. O primeiro presidente negro da nação mais poderosa da face da terra. No cardápio nossas riquezas e belezas: picanha, capoeira, favela e taís araújo. Ninguém cabia em si. Ao invés de um homem negro, às lágrimas, abraçando o homem mais poderoso do mundo; toda uma nação, emocionada, abraçando o negro mais poderoso do mundo. Os tempos mudaram e, segundo consta, nós não estamos mais no mesmo lugar. Relativismo histórico. Eu queria saber em que lugar se enfiou aquela quantidade impressionante de anti-imperialistas que esse governo abriga. Tá, tudo bem, eu sei. Levaram um pito que os obrigou a ficarem quietos nos seus cantinhos, e ainda ganharam de brinde além de uma diversidade impressionante de sorrisos fáceis do visitante e do vestido verde e amarelo da primeira-dama, a autorização para que se atacasse a Líbia dada daqui mesmo, para tristeza do amigo-irmão do homem de pernambuco. Ver as costas dos quatro visitantes olhando impressionados para o nosso Cristo nos encheu de orgulho, nacionalismo bocó, mas ainda assim nacionalismo. Eis outro grande homem. Estamos nos acostumando a caminhar lado a lado com gigantes, pessoas que fazem a história ao vivo, que alegrarão nossas velhices, pois poderemos falar saudosos: "houve um tempo...". Bunga! Bunga!


Sorrir ou aplaudir eis a questão. Na dúvida aplaudia-se com os olhos até, sorriam com as mãos. Nunca se viu capoeira pior, mas ainda assim palmas. Ministros seriam revistados sem piedade se deixassem, mais palmas. Caos e transtorno para o Luciano Huck fazer o beija mão, quem gostou caldeirão pode bater palma. Filho do prefeito tira foto e sai comemorando, vergonha alheia e muito mais palmas. Presidente fala que a mãe dele adorou o filme Orfeu, filme esse que aqui ninguém lembra de ter sequer imaginado que existiu, mais mais palmas. E o Jorge Ben Jor? Palmas. E o Paul Coelo? "Com a força do nosso amor e da nossa vontade, nós podemos mudar o nosso destino e o destino de muita gente". Chega dessa porra de palma que aí já deu também, né? Mas os vencedores (i)morais da visita foram sem dúvida o prefeito e o governador do Rio de Janeiro. O prefeito que elevou a tietagem ao extremo da educação moral e cívica. Não contente em ser subserviente, ainda ensinou ao filho as artes e mumunhas do negócio. Uma pergunta tostines: um puxa-saco nasce puxa-saco ou precisa de bons professores puxa-sacos? E o governador então, esse que sempre foi hors concours em puxa-saquismo do Lula, agora está exportando sua expertise e agora é um puxa-saco internacional. Aí já deu, não? Qual a razão de terem aceitado esse circo todo? Parar o país para vermos o que mesmo? Ah é, a história se fazendo. Ainda mais agora que descobrimos que a arte de puxar o saco é universal. O que foi o discurso do Obama? Uma bem atada e bem organizada versão de afagar o ego (ou saco) alheio. Perfeito em diversos instantes, não esqueceu ninguém, agradou gregos e baianos; pernambucanos e vascaínos.

Sinceramente, os EUA continuam e continuarão EUA, com Obama ou não, Não vai ser a fala mansa e 'esperrta' de Obama que irá mudar a história (os jornalistas pretendem que sim, mas uma grande maioria são rematados puxa-sacos). Quem sabe ele consiga ressuscitar o ensino da retórica, que aqui é terra tombada de advogados do diabo e nada mais, pois o Paulo Coelho não precisava daquela mãozinha, já que, sozinho, deseducou pelo menos uns três presidentes americanos, e depois ainda procuram a razão da crise econômica, quem mandou eleger presidentes que leem Paulo Coelho? Nem os nossos leem (FHC não, e Lula não consegue ler nem Chico Buarque). O que é preciso entender dessa visita-show é que nada fará com que o império que está acuado depois da crise, seja menos império. As maiores contribuições de Obama, até agora, se resumem a ser o primeiro negro a se tornar presidente americano; na sua frase de campanha, "sim, nós podemos"; na sua mulher que desfila graça e vestidos lindos; e, o principal, é que ele consegue discursar em qualquer lugar que estiver e agradar a todos falando platitudes em textos bem construídos. Hoje, que venha o melhor da festa, falar mal da visita, voltar aos velhos brios de anti-imperialista, queimar umas bandeiras ianques, que ontem na rua não podia, não devia, não era de bom tom. Goodbye gringo. Era necessário sua visita para comprovarmos que sim, o complexo de vira-latas acabou, agora, somos rematados puxa-sacos, uma grande evolução.


s.e.s.

domingo, 20 de março de 2011

O final de Ti-Ti-Ti ou entretidos até a morte


Durante muito tempo pensei que a vida fosse só complicada, mesmo que ao extremo. Um turbilhão de atos falhos e um mundo para carregar nas costas. O descanso de um homem cansando de correr na direção contrária quase sempre é só um: televisão. Deixar-se entreter pelo fim da novela Ti Ti Ti. Novelas terminam mesmo? Sempre achei que a televisão passasse uma grande e eterna novela, só trocando os integrantes, para que alguns pudessem descansar enquanto outros assumiam seus lugares na grande máquina de cuspir porcarias, alterando um pouco o roteiro de tempos em tempos, coisa tão imperceptível que ninguém se dá conta que o vilão de outrora agora é um bondoso galã, que a mocinha de sorriso branco total radiante que agora pode escolher entre dois formosos moços era aquela que fugiu para a Índia naquela outra vez pra se casar com o Ravi (era Ravi?).


Lixo cultural eis o que a televisão nos proporciona hoje. Todos os canais abertos abrem-se ao grande público, ou seria grande povo, e mostram o que ele quer ver, ou não sabia que queria ver. “A verdade de que nada são além de negócios lhes serve de ideologia. Esta deverá legitimar o lixo que produzem de propósito”. Grandes tecnologias desperdiçadas para criar entretenimento massivo e pouco reflexivo, para isso servem as novelas, além de vender, como ninguém, produtos e mais produtos que nem pensávamos em querer. Mas como viver agora sem o chapéu da Camila Pitanga? Como não implorar para o cabeleireiro que faça na minha cabeça uma chapinha urgente para que meu cabelo fique macio e sedoso como a maioria dos mocinhos e mocinhas das novelas? A lógica que triunfou na televisão é a do quanto pior melhor e quem viu o último capítulo de Ti Ti Ti sabe o que foi aquilo. Eu, estoicamente, agüentei até a hora que todos dançaram como numa Bollywood televisa ao Ilariê da Xuxa, nesse momento eu corri para o banheiro e vomitei mentalmente meus anos de profunda ojeriza contra as novelas brasileiras.

Será ainda possível nesse mar de lama encontrar uma saída? Se as novelas, conforme disse a Superinteressante foram responsáveis por manter a unidade do país, por favor, que preço se pagou não? Em qualquer cidade que se esteja emulando uma novela, interior, capital sobra para o grande público o clichê do clichê. Repisado ao extremo e regurgitado nas, agora, telas de LCD, última geração, com som e imagens perfeitos. A perfeição é uma ironia nesse caso. Torna os belos atores, mais belos mais atraentes, mais perfeitamente imitáveis. Todos os canais repisam a mesma fórmula, trocam know-how entre si, pagando altíssimos valores para contar com um ou outro desses canastrões, que se deixam passar em cores, por falsos vilões, boas moças, que tentam nos ludibriar e fazem com que milhões de pessoas sintam-se inseridos numa grande rede quando na verdade são enganados paulatinamente, pois as novelas brasileiras roubam do povo seu maior bem, o tempo. Tempo que talvez fosse mais útil para conversar com os filhos, praticar um esporte, ler um livro, desligar a televisão e se sentar na sala para pensar na vida.

A grandiosa assistência das novelas não percebe que foram abduzidas pela grandiosa consistência dos mecanismos de produção em massa, para alienar as massas. Como podem comer de um veneno feito conscientemente para intoxicar? Tudo é tão caricatural, o vexame temporário da mocinha e do bom-moço, as brigas, a rudeza do vilão, pormenores salpicados aqui e ali de uma falsa alegria, um grande esquema, seguido à risca e regurgitado. Tudo passando uma pretensa ideologia judaico-cristã repisada anos e anos. O bem o mal, o bem triunfa o mal sempre perde. É impressão minha ou o mal nem sempre perde na realidade?

“A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condições de enfrentá‐lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização adquiriu tanto poder sobre o homem em seu tempo de lazer e sobre sua felicidade, determinada integralmente pela fabricação dos produtos de divertimento, que ele apenas pode captar as cópias e as reproduções do próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo é só uma pálida fachada; aquilo que se imprime é a sucessão automática de operações reguladas. Do processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode fugir adequando‐se a ele mesmo no ócio. Disso sofre incuravelmente toda diversão. O prazer congela-se no enfado, pois que, para permanecer prazer, não deve exigir esforço algum, daí que deva caminhar estreitamente no âmbito das associações habituais. O espectador não deve trabalhar com a própria cabeça; o produto prescreve toda e qualquer reação: não pelo seu contexto objetivo — que desaparece tão logo se dirige à faculdade pensante — mas por meio de sinais. Toda conexão lógica que exija alento intelectual é escrupulosamente evitada. Os desenvolvimentos devem irromper em qualquer parte possível da situação precedente, e não da idéia do todo. Não há enredo que resista ao zelo dos colaboradores em retirar de cada cena tudo aquilo que ela pode dar”. (ADORNO & HORKHEIMER)




s.e.s.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O mundo precisa de poesia?


Na Folha Online: Minc justifica aprovação de projeto de 1.3 milhão para Maria Bethânia


Queria poder dizer que o mundo precisa de poesia. Seria tão simples mentir e dizer: o mundo precisa de poesia, e voilá, a poesia se fizesse e salvasse o mundo. Mas pensei em mim primeiro, antes de pensar se o mundo precisa, indaguei-me se eu preciso de poesia, uma vez que faço parte do mundo, ou pelo menos acho que sim. Antes de poesia eu necessito de tantas coisas. Eu, que sou um leitor até razoável para os padrões brasileiros, que é pífio em relação a vários outros países do mundo, até leio muita poesia. Mas a poesia que a Maria Bethânia pretende fazer, declamada, com vídeo bem feito, essa eu nunca tive a menor paciência para ver e ouvir, mesmo sabendo que a poesia, nos seus primórdios, fosse feita exclusivamente para a leitura em voz alta e em púlbico, mas os tempos mudaram.

Seria incrível que as pessoas pudessem levar uma vida mais poética. Escapando da sordidez diária, para um universo cheio de alegorias, enfeites, encantamentos. No projeto consta que a idéia é: "abrir possibilidades a acessibilidade irrestrita à cultura a todos que tão pouco acesso têm?", e por isso a pergunta que não pode calar: será que as pessoas que tem tão pouco acesso, quando o tiverem não irão fazer como a maioria e se perder nos orkuts-facebooks da vida? Sim, a periferia (os que não tem acesso) talvez precise de mais poesia. É que nós, seres periféricos acabamos inventando poesia de nossas complicadas relações com o mundo. Ah, esse mundo tão avesso ao bom senso. Tão incompetente para apreender nossas vontades, para nos oferecer belezas diárias. O mundo, esse não precisa de poesia, precisa ser domesticado. O mundo é complicado e temos muito mais a perder do que a ganhar nessas trocas que fazemos diariamente. A poesia como evasão do mundo era algo que os românticos faziam muito bem, mas aquele romantismo que está em tudo e não está em lugar nenhum, está morto e sepultado.

Como ver beleza em gôndolas de supermercado? No motoqueiro esticado na esquina? Nos coletivos cheios? Nas escolas em que diariamente muita criança vai atrás do pão e não do aprendizado? Nas pessoas ainda abduzidas pelas novelas, pelo futebol nosso de cada dia? Como suprir esse mundo indolente com algo tão bom que faça as pessoas esquecerem suas dificuldades diárias? Por que Maria Bethânia seria capaz de fazer-nos esquecer das dores da vida, com pílulas tão amenas que produzisse em nós um sorriso? Sei não. Grandes ideias são às vezes simples que sem querer até nos assustam. Coisas grandiosas, com intenções grandiosas, são, no mais das vezes, megamolanias vazias.

Se o intuito é gravar uma poesia por dia, para tornar nossa vida melhor, qual a razão de não utilizar todas as mídias gratuitas que tantos se utilizam por aí? Quantos vídeos que conhecemos não foram gravados em modestos celulares e de lá ganharam o mundo? Se a ideia é dar pílulas de beleza diárias, que nem as "folhinhas de calendários" antigos (como está no projeto), qual a razão de não fazer disso, no início de maneira artesanal, contando com o apoio de amigos, e depois, conforme forem aparecendo patrocinadores ir inclementando aos poucos o blog até alcançar o objetivo final? Penso que a Maria Bethânia ou alguém da sua futura equipe deva ter em casa um computador potente, uma câmara legal, máquinas digitais, e isso tudo basta para vídeos quase profissionais hoje em dia.

Não pode a poesia ser utilizada como um mote, como um subterfúgio. Quem ama a poesia como eu, sabe que ela é tão individual é tão mais valiosa justamente por ser na individualidade de cada leitura que ela chega a fazer sentido. Transformar a poesia num produto, com preço na capa (sim, preço, nós, o povo, pagaremos a empreitada), com invólucro chique, é deixá-la menor e mais elitizada. Quantas pessoas estariam preparadas para assistir uma cantora declamando poesias diariamente, ao seu bel-prazer? Eu, talvez, de vez em quando daria uma olhada, como são as coisas na internet que hoje é um grande hit e de repente perdemos o link, esquecemos até sobre o que falava.

A pergunta no fim é, "o mundo precisa de poesia?". Pode até ser que sim. Mas eu continuo acreditando que o mundo precise mais de tantas outras coisas e que poesia é algo tão pessoal, tão intransferível, que mesmo que nesse repertório todo ela declame todos os clássicos da poesia antiga, moderna, pós-moderna, ainda assim serão os clássicos dela e sempre ficará de fora um outro tanto, que não pode ser aquinhoada com a benção da nossa declamadora oficial. Se ela quisesse fazer isso sem um centavo de dinheiro público, isso já seria outra coisa, e nem estaríamos perdendo tempo com essa discussão besta. Sim, o mundo precisa de poesia, mas eu não queria gastar nenhum centavo por isso. Por isso eu vou a bibliotecas públicas, baixo livros em pdf, por isso eu só compro o que realmente quero e vá ler, empresto de amigos, por isso eu sou favorável que nenhum centavo de dinheiro público participe deste projeto. Simples assim.


s.e.s.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Um silêncio provisório 2


Invariavelmente eles adotavam o silêncio. Em nenhum momento debatiam se, o silêncio, seria a solução dos seus, não poucos, problemas. Era um acordo de olhares preguiçosos. De backspace apagando frases inteiras. Talvez achassem que para não discutirem o melhor a fazer era pensar em coisas amenas, talvez nem pensar. Melhor o 'tergiversatio'. Acreditar que o desconhecido é um companheiro tão fiel quanto um cão. E eles se esmeravam em imaginar-se longe das crises por eles mesmos inventadas. Até faziam planos. Pensavam o futuro como se o passado não tivesse existido. Como se fosse possível que feridas tão recentes, milagrosamente, desaparecessem. Ah, os milagres, esses feitos gloriosos que sumiram da face da terra. Ninguém mais escapou vivo das covas dos leões, esquecemos o idioma deles e eles o nosso. Eles até conseguiam conviver com o preconceito, tentavam desesperadamente seguir a vida com a indiferença de quem se acha com razão, e sim, eles tinha razão. Andavam sempre juntos, roçavam-se num carinho camuflado. Iam a bares lúgubres, onde nas sombras podiam sucumbir ao desejo que brotava da verdadeira face de ambos. E os dias corriam por vielas até alegres, ás vezes. Passavam por alguns momentos que eles mesmos não acreditavam ser mais possíveis. Em alguns instantes até acreditavam que eles, enfim, os aceitavam como eram. Portas novas se abrindo. E as outras, as portas de antigas dores, será que podiam ser trancadas à sete, extraviadas, chaves? Mas todos sabemos como são essas coisas, quando tudo parece ir bem, quando baixamos a guarda, é que as coisas acontecem. Fica sempre um rancor armado no espírito... facas sendo afiadas... armas de destruição em massa compradas no mercado paralelo... a próxima batalha sempre vinha mais forte e eles não suportavam mais tantos olhares quando andavam abraçados dentro do ônibus. Alguns fingiam não vê-los. Outros disfarçavam o pavor da cena simples. Mas em todos uma mal disfarçada vontade de desfazer o enlace, de estapear as faces jovens, de separar o inseparável. Eles tentavam com todas as forças sobreviver ao tempo, à falta de dinheiro que a tudo perdoa e faz aceitar. Ser gay e pobre ainda é sofrimento dobrado. Aos gays endinheirados, o mundo abre as portas, o mercado tem a oferecer produtos especiais, e o preconceito é mais mental. Aos gays pobres, resta esconder-se em si, negar-se a si, fingir para si. Eles não queriam mais isso e aquele abraço cerrado dentro do coletivo era mais que um vontade de ser, era uma necessidade de que todos vissem e comprovassem que eles assumindo-se como eram, não eram em nada diferentes de todos os outros, casais ditos normais. Quando desciam de mais uma curta viagem dentro de sua própria cidade, saltavam aliviados por sobreviverem, enquanto dentro do ônibus, muitos suspiravam também aliviados pela ausência deles. O preconceito é o pior dos males, por ser o mais fingido e omitido de todos.


 
s.e.s.

Dickens - o primeiro astro pop



Charles John Huffan Dickens nasceu em Portsmouth, Inglaterra, a 7 de fevereiro de 1812, era filho de Mr. John Dickens, modesto empregado da Tesouraria da Frota. Seu pai era a um tempo encantador e temível; encantador porque era alegre, porque contava bem histórias, porque recebia amavelmente aos seus amigos; temível porque gastava sempre mais do que ganhava e submergia com uma curiosa mescla de indiferença, desespero e leviandade, em um oceano de dívidas. A mãe (Elizabeth Barrow) parece que foi um ser medíocre, uma dessas mulheres cujos pensamentos ruidosos e vãos, voam em todas as direções, como zangões aloucados. O filho não tardou a julgá-la severamente. O casal Dickens tinha oito filhos, sua vida não era fácil. Sem embargo, as pequenas impressões do menino Charles foram deliciosas. As histórias contadas por um pai tão divertido, gravaram-se na cera assombrosamente maleável desse espírito. Era uma bela criança de cabelos ondulados, olhos azuis e, além disso, um comediante nato. Possuía um talento extraordinário para cantar e recitar. O pai sabia transformar o menor acontecimento familiar em uma festa, para a qual preparava, assobiando, um ponche admirável à base de casca de limão. Com frequência levava o filho em excursões pelo campo; contava-lhe lendas, as quais entusiasmavam o menino.


Charles nasceu em 1812, e tinha nove anos quando o confiaram a um professor, a quem logo encantaram os progressos de seu aluno. Mas os verdadeiros mestres estavam noutra parte. Na água-furtada da casa de John Dickens, havia um montão de livros que ninguém lia. Charles deslizava sobre os telhados e devorava "Robinson Crusoé", Gil Blas, Fielding, "As Mil e uma Noites", coleções inteiras de periódicos e, sobretudo, "Dom Quixote", que lhe agradava de um modo particular. Desgraçadamente, as dívidas do pai iam subindo. Foi preciso deixar Chathan, e transladar-se para Londres. Mas Londres não foi favorável aos Dickens. Faltou o pão. As crianças choravam. Na casa não se viam mais que credores, carregando os últimos móveis. Por fim, Mr. Dickens foi detido e levado, por dívidas, para a prisão de Marshalsea. Charles sente-se a um tempo assustado, comovido e envergonhado, terrivelmente envergonhado. Só em casa, com uma mãe incapaz de ajudá-lo, deve fazer tudo; engraxa os sapatos de toda a família, cuida de seus irmãos e irmãs, faz as compras da casa, trata de vender os poucos objetos que restam e, quando tem um momento livre, vai à prisão ver o pai. Agora é o dono da casa, deve procurar ganhar a vida e, aos onze anos, entra de aprendiz na loja de uns parentes afastados, os Lamert, fabricantes de betume. Seu trabalho consiste em cobrir os postes de betume com papel parafinado, logo com papel azul, atá-los e pregar etiquetas em cada um deles. Trabalha em um sótão, com rapazes ignorantes, vulgares, e ganha seis shillings semanais. Depois de algum tempo, muito hábil no trabalho, seus patrões julgam oportuno exibi-lo aos transeuntes. Põem-no em uma vitrine, e as meninas e os rapazotes do bairro, comendo fatias de pão com geléia, acodem a colar seus narizes contra o vidro, para verem-no trabalhar.

Foram estes, tempos de humilhação; as feridas que lhe causaram jamais cicatrizaram. Mas logo faltou com que pagar o senhorio, e então, toda a família – mãe e filhos – foi viver na prisão por dívidas, pois nessa extraordinária prisão podia-se alugar quartos para neles alojar a família. Charles foi o único que não viveu nela, a fim de obter alguns recursos para os seus. Morava num minúsculo quarto, trabalha na fábrica de betume; no domingo, ia passar o dia com sua família na prisão. John Dickens recebe uma pequena herança que lhe permitiu sair da prisão, e o menino Charles explicou para o pai como lhe era penoso passar a infância num trabalho estúpido, com companheiros grosseiros, e o quanto ele gostaria de se instruir. Mr. Dickens mandou o filho à casa de Mr. Jones, diretor da Wellington House Academy. Mas Mr. Jones era, por sua vez, ignorante e bruto; durante todo o dia batia violentamente em seus alunos com uma grande bengala. Aí Dickens conheceu outro aspecto da miséria em que estava submersa a infância inglesa, as horríveis escolas. Ficou pouco tempo na escola, pois o dinheiro faltava de novo em casa e foi necessário tornar a empregar-se. Tinha, agora, uma letra excelente e boa ortografia; fizeram-no entrar de aprendiz na casa de um procurador judicial. Ali viu mil facetas da vida; um desfile contínuo de litigantes, e por ser mensageiro, isso o obrigava a andar por todas as ruas de Londres. Em dois anos, adquiriu dessas ruas, de sua miséria e de sua beleza, um prodigioso conhecimento.

John Dickens, vendo a herança esgotar, encontrou trabalho de repórter na Câmara dos Comuns, o que muito agradou Charles, e por 10 shillings e 6 pennies - todas suas economias – comprou um velho tratado de taquigrafia Como Charles era um rapaz de vontade firme e que julgava que “tudo que merece ser feito merece ser bem feito”, logo chegou a excelente taquígrafo. O periódico The True Sun, o contratou como redator parlamentar, função pela qual, recebia cinco guinéus. Para completar sua formação com a qual estaria apto para escrever faltava apenas um amor, e ele veio na forma de Mary Beadnell, filha de um dos banqueiros de Lombard Street, burgueses mais ricos e, provavelmente, mais distintos que os Dickens. Mary era uma coquete, jamais havia pensado em casamento, assim como sua família, mas permitiu-lhe flertar com ela. Os pais confiavam na filha e sabiam que ela era bastante razoável para suspender o jogo a tempo. Não se enganavam. Dickens sofreu muito quando suas visitas à casa dela já não era mais desejadas, ficou infeliz, humilhou-se, mas não pode evitar a ruptura. Mary casou-se e durante vinte anos desapareceu da vida de Dickens. Agora sua grande ambição era escrever, e é esse Charles Dickens, de olhos de aço, que a vida, aos vinte anos entrega às letras.

Aos vinte e dois anos, Dickens escreveu uma breve narrativa, e a depositou na caixa de uma revista. Na semana seguinte, ao comprar o número, teve a satisfação de encontrar nele seu ensaio. Logo publicava uma série em um jornal, o Evening Chronicle, mediante uma retribuição de sete guinéus semanais. São os “sketches”, quadros da vida provinciana e de Londres, que obteve êxito imediato (lançado depois como "Esboços feitos por Boz"). Com o sucesso dos sketches, decidiu escrever livros e abandonar a taquigrafia. Começa a escrever "As aventuras de Mr. Pickwick", em episódios, pois suas novelas publicam-se em capítulos que devem aparecer regularmente cada mês. Nenhum novelista havia trabalhado jamais em tal condição. Quando começou Pickwick, não tinha a menor idéia de como prosseguiria essa obra, e ainda menos, como concluiria. Não havia traçado planos; criava personagens, lançava-os ao mundo e caminhava atrás deles. O primeiro episódio não alcançou grande êxito, o desenhista suicidou-se e, como a venda não fosse muita, pensaram em suspender a publicação. Logo contrataram outro desenhista e decidiram continuá-la. Um reduzido público começou a se dar conta de como eram divertidos Mr. Pickwick e seus amigos, até que no sexto número, Dickens criou um Sancho Pança para Mr. Pickwick, o criado Sam Weller. O êxito foi instantâneo, fulminante. Do primeiro número vendeu-se 400 exemplares; no número 15 e já dele solicitavam 40.000 exemplares. Era um êxito nacional.

Um êxito tão rápido, tão extenso, tem, para um escritor, vantagens e inconvenientes. Uma vantagem é que o homem assim formado evita o humor atroz, o artista irritado; outra vantagem é que, adquirindo confiança em si mesmo, escreve com encantadora liberdade, que, talvez, seja um dos segredos de sua beleza. O inconveniente é que a popularidade proporciona gozos tão deliciosos, que logo o escritor não sacrifica sem dificuldades. Agradar a uma massa de leitores exige uma simplificação tanto mais elementar, quanto mais essa massa cresce. O autor excessivamente lido, pode sentir a tentação de escrever para os piores leitores.

Dickens casou-se durante a publicação de Pickwick. Ele foi convidado para ir na casa de um dos redatores do Morning Chlonicle, Hogarth, que tinha três filhas: a primogênita, Catherine, 20 anos; a segunda, Mary, 16; a terceira, Georgina, era uma menina. Dickens achava-se à vontade nessa família, onde era admirado. Casa-se com Catherine, mas muito se tem dito que Dickens, amava mesmo era Mary, que morre jovem, desgraça ocorrida meses depois do casamento. Morta foi mais perigosa para o lar dos Dickens, do que o fora viva. Dickens serviu-se dela para descrever suas personagens mais comovedoras. Os Dickens reorganizaram a vida, outra irmã de Catherine, Georgina foi viver com eles. Escreve "Oliver Twist" (1836), história de um pequeno órfão, educado primeiramente nessa horrível “work house”, esta Bastilha de indigentes que a nova lei dos pobres havia instituído. As classes populares odiavam as “work house”, e Oliver Twist fez muito para atrair a atenção para os defeitos dessa instituição. Este segundo livro instalou definitivamente Dickens na glória, tinha então 26 anos.

Dickens tinha, então, necessidade de estar continuamente em movimento. Sempre perseguido de perto por um impressor que aguardava seu original, trabalhava pela manhã, do café ao almoço. Pela tarde, eram-lhe necessários prolongados passeios, a pé ou a cavalo, para aliviar a fadiga intelectual e para tornar a tomar contato com esta realidade inglesa que era sua substância. Mas acima de tudo Dickens tinha necessidade de seus passeios noturnos pelas ruas de Londres; era um hábito que conservava desde a infância e que parecia necessário para a continuidade de sua inspiração. Pouco importava o tempo que fizesse, perambulava pelos bairros mais estranhos, captando à passagem uma frase, que anotava, escutava à porta de uma loja, lançando seu olhar sobre o estranho mobiliário de outra, seguindo um par de moleques. Fazendo isso à noite, pela manhã, seu trabalho, era fácil.

Em 1842, com trinta anos, é um dos homens mais célebres do seu tempo, é lido na América tanto quanto na Inglaterra, mas nessa época não havia nenhum tratado para salvaguarda dos direitos autorais, decide assim tentar resolver essa situação. Sua recepção foi entusiástica, aclamaram-no no cais; recebeu tão grande quantidade de cartas que se viu obrigado a contratar um secretário, e os convites foram tão numerosos que foi forçado a anunciar que não aceitaria nenhum. Os admiradores o perseguiam até no quarto e nem na cama podia livrar-se deles. Acabaram por aborrecê-los. Chocavam-no os costumes americanos. Ali, como na Inglaterra, havia observado abusos; a escravidão o indignara; acreditou ser seu dever protestar; Se na conservadora Inglaterra podia-se falar livremente em reformas, na América, país democrático, a liberdade de opinião não existia. Quanto às negociações para a defesa dos direitos autorais, não iam adiante. Respondiam-lhe que era absolutamente impossível para uma editora americana tratar com um autor inglês, pois se o fizesse, já não poderia adaptar as novelas inglesas ao gosto do público americano. Dois meses depois, Dickens volta para a Inglaterra, e publica "Notas Americanas", livro que os americanos acolheram muito mal.

Segue publicando livros, e decide escrever todo ano um conto de Natal. O livro "Martin Chuzzlewit" (1843/44) é um relativo fracasso de vendagem, o que leva Dickens a se mudar da Inglaterra, vai para a Itália e logo depois à França, país de vida barata. Dessa longa permanência no estrangeiro, Dickens trará vários livros, mas livros sobre a Inglaterra. O êxito de "Dombey e Filho" (1847) determinou o regresso de Dickens a Londres. Logo estava comprometido com numerosas ocupações, como sempre lhe atraíra o teatro, começa a fazer representações beneficentes, fazendo tudo, e como obteve grande sucesso, outras sociedades beneficentes solicitaram que ele repetisse a obra em benefício delas. Essa febril agitação quebrantou a sua saúde, sofreu violentas enxaquecas, adoeceu da vista. Mas mesmo assim fundou um jornal o Daily News, que ao fim de três meses abandonou para publicar apenas num suplemento semanal chamado "As Palavras do Lar". Por essa época escreve o primeiro livro em 1ª pessoa, "David Copperfield" (1849), uma clara biografia sua. Esse é o livro mais vendido por Dickens, depois desse livro Dickens é mais que um grande escritor, e ele se entrega às apresentações e a escrever ininterruptamente, "A Casa Soturna" (1852), "A Pequena Dorrit", "Tempos Difíceis". Esse excesso de trabalho malbarata sua força, Dickens agora escreve com menos facilidade, sua impaciência que nunca foi grande, torna-se terrível; não pode estar quieto. Para escrever agora toma notas, faz fichas, coisa que nunca suportou. E o casamento vai de mal a pior, sua mulher não o compreendia, não fora feita para ele; ela por sua vez não era mais feliz que ele. Tiveram dez filhos e viveram 22 anos juntos, e Dickens com belas qualidades e uma grande bondade, era egoísta e nervoso. O artista é um ser o qual é difícil de conviver. Separaram-se em 1858, e enfim, e Dickens sentiu sua vida renascer então e teve um período de paz.

Mas o espírito da agitação não o abandonou, e recomeçaram os pedidos por leituras públicas, em prol de um hospital aqui, de uma sociedade ali, lia sempre muito bem, o que atraiu empresários de espetáculos que lhe falaram dos lucros e lhe propuseram viagens pela Inglaterra. Seus amigos avisaram-lhe que isso não seria bom para sua saúde, tudo em vão. Preparava suas leituras em períodos de calma, decorava seus textos, e ia acrescentando, corrigindo, tornando-os mais teatrais, a fadiga era tanto maior pois punha nessas leituras todo o seu ser. Mesmo assim escreve nesse período "Conto de Duas Cidades" (1859), "Grandes Esperanças" (1861) e "Nosso Amigo Comum" (1864). Ao concluir esse último, fechou contrato pra mais trinta leituras, não dormia, tomava cada noite um soporífero; submerso pelo abuso de drogas em uma espécie de sonolência, devia, na hora da leitura, tomar um estimulante. A América, esquecida dos seus rancores, exigiu novas leituras, Dickens embarcou para a América. Leu em Boston, Filadélfia, Nova York e Washington. Tamanho esforço o extenuou, no navio de regresso, quando o reconheceram, pediram-lhe uma leitura, Dickens respondeu que se fosse obrigado, agrediria o capitão para ser preso.

Na volta para a Inglaterra, preparou uma leitura de despedida, uma seleção de episódios de Oliver Twist, depois começou a escrever o Mistério de Edwin Drood (livro que fica sem concluir), morre aos 58 anos, indiscutivelmente, por excesso de trabalho e desmedida atividade. Imagem perfeita de sua época, Dickens deixou-se dominar pelo mecanismo da vida, como a humanidade inteira, no século XIX. Assim, sem cessar deixado para trás por seus anseios, vive e morre sufocado pelo trabalho, sempre encantado de suas imaginações e contrariado por suas obras; mas é uma vida bela e uma bela morte.



MAUROIS, André. Dickens. Tradução: Rubens Mário Jobim. São Paulo: Dominus, 1963.

WILSON, Edmund. Raízes da Crítica Literária. Tradução de Edílson Alkmim Cunha. Rio de Janeiro: Lidador, 1965.

 
s.e.s.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Apontamentos para uma leitura do filme Cheiro do Ralo


Vivemos numa época repleta de novidades. O mundo se recicla de maneira tão ágil que quando nos apercebemos das mudanças já estamos no olho de um novo furacão. Estamos sentindo na pele a tempestade da pós-modernidade. Que se apresenta como uma catarse de dados compilados lançados por uma hélice gigante, e isso nada mais é que o aprofundamento e, claro, agravamento dos ideais capitalistas. O capital triunfou sobre o social, e convivemos diariamente numa confusa sociedade de consumo, agressiva, totalitária, que se impregna em todos os níveis de nossas vidas, modificando o nosso relacionamento até com as coisas mais simples. Com a sensação de que estamos emparedados por um agressivo sistema de trocas, tentamos salvar o mínimo de dignidade, mantendo-nos numa linha tênue entre o certo e o errado, mas o correto de hoje pode não ser a realidade de amanhã, uma vez que não era a de ontem.

O modo como percebemos o mundo hoje se modificou para acompanhar a agilidade dos tempos. Vivemos em permanentes “estados de liquidez”, como diz Bauman, os relacionamentos escoam por entre os dedos, os medos apoderam-se de nós de maneira integral, o amor é volátil; pode-se afirmar que tudo se reduziu ao básico, mas um básico que vem embrulhado dentro de um coquetel molotov. Estamos numa verdadeira “Idade Média Pós-Moderna”. Obedecemos ao senhor maior do mundo: o sistema. Ente onipresente, reticente, assaz competitivo e mordaz, que orienta o rumo que vamos tomar, quase sempre nos tomando como um grande e tosco rebanho. Tudo se resume a um singular estado de possibilidades. Eis que a procura de um caminho para explicar um filme como “O cheiro do ralo”, de Heitor Dhália, tem, basicamente, que recorrer a um arsenal teórico que parte de Marx, atravessa o modernismo e chega aos dias atuais, pois o ser humano aprofundou em muito o sofrimento abandonando a própria sorte em mãos pouco consideráveis.

O filme trata, de uma maneira geral, sobre relacionamentos. E é através do discurso percebido sob a ótica das grandes trocas humanas, vista, ademais, sob um viés pós-moderno, que a película se mantém. A personagem Lourenço, não consegue ter um relacionamento normal com nenhuma pessoa. Seu jeito de perceber o mundo é sempre o de uma pessoa que está numa posição superior ao outro. Comprador de objetos, valiosos ou não, essas negociações ocorrem de uma maneira que não é tradicional, com o cliente oferecendo algo e ele - o comprador - tendo interesse e fazendo sua oferta pelo produto. No modus operandi de Lourenço há toda uma negociação individualizada em que as vendas se transformam numa grande sessão de aniquilamento do sujeito que está vendendo algo. A pessoa que leva um objeto é humilhada. Seja quando Lourenço paga muito por algo sem valor, o que só desvaloriza ainda mais a pessoa; seja quando Lourenço nega-se a comprar algo, mesmo de valor baixo, pelo simples prazer de aviltar o vendedor; ou quando regateia o preço, rebaixando-o às vezes, por desdém.

Na vida particular seus relacionamentos também não engatam, seja com a noiva, a empregada, a secretária, a moça (da bunda) da lanchonete, etc. Mas o que temos que analisar mesmo é que Lourenço é um sujeito pós-moderno, vivendo num mundo pós-moderno e logo, o modo como percebe esse mundo é o de uma pessoa permanentemente em crise: seja consigo próprio, seja com seus semelhantes, seja com os objetos desse mundo. Mas essa crise não é de identidade e sim a de sujeito deslocado mais por entender a ordem natural das coisas, que por contrariá-la. Para um sujeito pós-moderno o universo que o rodeia é percebido como que entre-névoas. Há um esgarçamento das relações, pela falta de diálogo, pela fragmentação do ser, diante do que Jameson chamou da lógica de um “sistema econômico do capitalismo tardio”. O ritmo frenético ditado pelas máquinas, as divisões sociais, o apagamento do sujeito, o excesso de informações, a vivência numa época superficial, uma nova emocionalidade sentida com mais intensidade, características da era pós-moderna, que a personagem sabe viver, mas os outros não. O filme pode ser visto também como um grande pastiche, como o enformou Jameson. E também a nostalgia de um tempo perdido com o grande apego ao que é velho, que são os objetos ofertados, comprados ou não.

O filme retrata algumas fixações de Lourenço, e por extensão, do ser humano em geral, que se agarra em algo como que para ter um porto seguro na grande areia movediça que é a vida. Em Lourenço essa fixação pode ser a do exercício do poder; a fixação por objetos; pela bunda; pelo cheiro que exala do ralo. O ralo é para Lourenço uma válvula de escape, uma maneira de se punir por sua conduta sempre egoísta. O prazer que sente ao cheirar o ralo fétido é o mesmo que sentiria se fosse colocado de castigo pelo pai. Na verdade essa ausência de familiares é o grande X da questão. Lourenço é desapegado de valores morais e apegado a objetos, coisas que não podem falhar para com ele. Assim Lourenço não consegue edificar relações, pois elas sempre estarão na base de uma possível perda. Os objetos são fiéis. Assim exerce seu poder comprando tudo, ou acha que pode comprar, pois exagera beirando o ditatorial. Distribui benesses quando quer, rebaixa o preço de um Stradivarus, compra caro um objeto sem valor, mas sempre foge do relacionamento duradouro.

O olho, comprado caro, representa para Lourenço a duplicação do olhar. É o seu lado voyer no limite máximo. Se suas relações nunca avançam, se estão quase sempre na base do valor intrínseco do que possa ser comprado, Lourenço compra uma companhia, uma amizade sincera para compactuar com seus interesses, suas fixações. O olho só vê o que Lourenço lhe mostra, e ele só mostra aquilo que lhe interessa. Como o mundo de Lourenço é algo para o qual ele não nutre sentimentos, ele recria esse mundo através dos objetos, logo o olho passa a ser do seu pai, que morreu na guerra e assim sucessivamente. Lourenço se comporta através dos seus objetos como uma criança mimada. Verdadeiramente não sente falta de ninguém, nem consegue gostar de ninguém, é um egocêntrico homem pós-moderno, vivendo sua vida vazia, sem valores, sem ética, de uma maneira repetitiva e monótona, mas consciente do que faz. Mesmo quando inventa sobre o pai, é mais estado de espírito que realmente sentimento.

E a maior fixação de Lourenço que é a bunda da garçonete, é uma ponte entre mundos. A bunda é vazia de significados. Oca de sensações. Mas a bunda é uma verdade que o oprime, pelo tanto de realidade que ela aparenta. Lourenço não quer conquistar uma pessoa, quer sempre mais um objeto para agradar seu fetiche por coisas e a bunda é “o objeto”. A bunda aos olhos das pessoas normais continua a ser uma grande obsessão, um grande paraíso ao lado do que também é o ralo do corpo; a bunda, aos olhos pós-modernos de Lourenço, reveste-se de uma materialidade não-carnal e tem a mesma valoração que a cabeça de um animal empalhada – fetiches modernos.

Esse lado fetichista, aliado ao lado voyer dão a tônica dos seus relacionamentos, e a bunda é o elo entre o seu universo pós-moderno e o universo em que vive a maioria. Pensar em ter é uma obsessão. Ver é outra, e elas se complementam no não-ter. A tentativa de apreensão do outro sempre terá dinheiro envolvido, pois Lourenço é um típico representante do capitalismo tardio, em que impera a desvalorização das relações, um sujeito em crise, mas plenamente dentro do sistema, do qual nunca reclama, a não ser quando diz que “a vida é dura”, mais para fazer com que o outro se resigne e entenda que não há saídas desse sistema pós-moderno.

Não há uma conquista real, pois não quer ou por que nunca consegue alcançar o lado autêntico do objeto desejado. A bunda retrata uma obsessão pelo nada, que é o tudo, que pode até ser entendida também como a de um ser pornográfico, vivendo num mundo pornográfico com um excesso de sensações e de informações, excesso-oco, sempre vazio de significados. A verdadeira pornografia que vemos é a vida odiosa que a grande maioria vive, em que nem os objetos mais próximos têm uma exata medida, ao contrário, se volatizam em contato com a realidade do mundo de Lourenço.

Se tudo é o nada, se se vive numa época enevoada, em que os relacionamentos estão sempre interditados, a única pessoa real que convive com Lourenço é a drogada. Ela sabe que o mundo fede mais que o ralo do escritório, mais que uma penitência. Ela já viu de tudo e ainda assim se submete aos caprichos de Lourenço, não por amor ao dinheiro, mas por amor à fuga de sua vida oca. Quando transborda nela, seus caprichos de criança, seu fetichismo, seu voyerismo, Lourenço encontra sua perdição. Ela que tudo já perdeu, carrega no corpo vazio de significados o nada impresso, a vingança nada mais é que o desespero de um confronto de pessoas que sabem a grande verdade: a vida é um lixo, e fede, como um grande ralo; não há escapatória para ninguém. E a voluptuosa bunda nada mais é que uma perfeição vazia, uma miragem, que se esfuma no contraditório que é a esquálida bunda da drogada. O “mundo é muito perigoso” já dizia Guimarães, mas a verdade de um mundo pós-moderno é mais.
 
 
s.e.s.