sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Memórias Inventadas de Manoel de Barros



1. MANOEL EM DETALHES


Manoel de Barros nasceu em Cuiabá - mas precisamente no Beco da Marinha - em 19 de dezembro de 1916. Quando tinha 2 meses de vida, seu pai foi convidado por um irmão, para vir povoar o Pantanal. O convite partiu do Barão de Vila Maria - Nheco Gomes da Silva -, e que segundo consta, é dele que vem o nome da região Nhecolândia, uma homenagem a quem primeiro veio fazer o povoamento da região. Esse tio de Manoel de Barros veio para trabalhar com esse Barão, medindo suas terras, uma vasta extensão, e o pagamento que ele recebeu foi em terras. Como não entendia nada de fazendas, chamou o pai de Manoel para abrir, cercar e formar a fazenda. Dessa maneira Manoel de Barros vem para Corumbá, e passa a morar no Pantanal mato-grossense.

Aprendeu a ler com seis anos pelo método da soletração e a contar e decorar a taboada cantando com uma tia. Os pais o mandam para Campo Grande para o colégio interno - o Colégio Municipal de Campo Grande, a primeira professora de Manoel de Barros foi Oliva Enciso. É mandado para o Rio de Janeiro para o Colégio Lafayette. Reprovou no terceiro ano colegial e mudou-se de escola por isso. Em 1934 presta vestibular para Direito, uma vez formado, viaja pela América do Sul: Bolívia, Peru, volta e trabalha com negócios de incorporação de apartamentos, ganha um dinheiro e viaja novamente: interior da Bolívia, do Peru, Equador; viaja até Miami, Nova Iorque, depois disso vai para a Europa: Portugal, Espanha, França e Itália. Quando o pai morre, herda a fazenda, pensa em vendê-la, mas acaba indo morar nela - fazenda Santa Cruz.

Seu primeiro livro é de 1937 - Poemas Concebidos sem Pecados, impresso artesanalmente na gráfica de um amigo. Face Imóvel, pela Editora Século XX, é de 1942 e Poesias de 1956, é da editora Pongetti, mas sua obra só passa a ser reconhecida pela crítica em 1960 quando ganha o prêmio Orlando Dantas. E de lá pra cá, publicou inúmeros livros, e teve toda sua obra re-editada diversas vezes, e continua produzindo ainda hoje: Memórias Inventadas: a terceira infância é de 2008. Manoel de Barros é considerado um poeta modernista, influenciado pelas várias estéticas que dominaram as artes no começo do século XX.

"Minha poesia é uma reflexão permanente. A palavra me atinge de tal modo, que a língua passa a inventar coisas. Nunca escrevi uma palavra que não tenha roçado no meu corpo. Minha poesia é marcada por um constante morrer e renascer. Essa permanente metamorfose está presente em toda a minha obra. Acho que é importante para o poeta reviçar as coisas" (In: SÁ, 1992, p. 59)

2. ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA e PROSA POÉTICA

Memória Inventadas, o livro, trabalha elementos preponderantes na poética barreana, os a escrita autobiográfica e a prosa poética, que são uma tentativa de providenciar uma mudança formal entre as escritas que relatem o percurso de uma vida contada pelo protagonista dos fatos, sem contudo, confiná-las ao gueto da sub-literatura. Seria uma narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando atribui importância a sua vida individual, em particular sobre a história de sua personalidade.

Memórias Inventadas é prosa poética, pois assim “confirma a inclinação de Barros para a poesia, como se, através da obliquidade desta, fosse possível alargar as possibilidades do que é narrado, em detrimento da mera linearidade da prosa. Assim, da união das duas formas surge a expressividade máxima: a união do lírico com o narrativo, abrindo uma via mais larga para a expressividade se desenvolver” (LINHARES, 2006, p. 20). Para que ocorra é necessário um pacto autobiográfico, que se estabelece através do texto e do para-texto que o circunda. Percebe-se a confirmação da identidade real do autor, e o seu desdobramento em narrador e protagonista da narração:

AUTOR - NARRADOR - PERSONAGEM

Neste livro o pacto está à princípio no nome “Memórias Inventadas”.

Memória é a faculdade individual que, na sua essência, não pode ser compartilhada com mais ninguém. São contadas sob o único foco possível, o daquele que lembra.

Na rememoração re-encontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante os muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos. Encontramos os anos que se perderam no tempo, as brincadeiras de rapaz, os vultos, as vozes, os gestos dos companheiros de escola, os lugares, sobretudo aqueles da infância, os mais distantes no tempo e, no entanto, os mais nítidos na memória (BOBBIO, 1997, p. 31).

Torna-se impossível ao autobiógrafo a fiel reconstituição dos fatos, pois um discurso calcado na memória, na lembrança, reveste-se de valores que presidem a vida do sujeito no momento da escritura, não necessariamente correspondendo aos que o guiavam no momento do fato lembrado são lembranças pertencentes ao tempo em que se conta, sendo, por isso, passíveis de constantes atualizações.

Reside nesse ponto a grande dubiedade da memória, pois ao mesmo tempo em que é contaminada pelo momento atual do sujeito, ela surge também como um mecanismo repetitivo que possibilita ao autobiógrafo recompor quadros que lhes são significativos, expurgando acontecimentos que lhe possam relembrar maus momentos, fatos constrangedores, etc.

Esse expurgo é propiciado pela perspectiva temporal, pois a passagem do tempo e o distanciamento narrativo convertem o 'eu' que conta em outro diferente do que é contado. Se há a identidade entre as instâncias, selada pelo já mencionado pacto, há também um desdobramento que permite ao autobiógrafo se ver como um outro que não ele mesmo, refazendo o percurso de forma indolor.

3. LINGUAGEM INFANTIL

A reconstrução via discurso do universo infantil é então uma tarefa que não pode excluir o imaginário, e, em se tratando de um discurso que reverbera poeticidade, tal mescla não pode ser entendida como fuga ao conceito de autobiografia, pois a poética também se alimenta com a essência do imaginário. As lembranças continuam sendo o mote inicial para o desenvolvimento da escrita, contudo, para trazer à tona aquele 'eu' que se encontra apenas no passado, é necessário que se evoque também o poder do devaneio, pois através dele se pode abrir o núcleo de infância que habita em cada um.

Gaston Bachelard afirma que “quando esse devaneio da lembrança se torna o germe de uma obra poética, o complexo de memória e imaginação se adensa, há ações múltiplas e recíprocas que enganam a sinceridade do poeta. Mais exatamente, as lembranças da infância feliz são ditas com uma sinceridade de poeta. Ininterruptamente a imaginação reanima a memória, ilustra a memória”.

Isso ocorre pelo fato de o poeta-escritor não submeter os conceitos de imaginação e memória aos critérios da percepção, pois a lembrança só pode revelar imagens, e essas imagens revelam muito além dos fatos, elas desvelam valores. Nesse forjar de valores, são ressaltadas as imagens que se deseja ver, ficando opacas as demais por sua pouca importância para aquele que conta. Enquanto foco da narrativa, a infância possui múltiplas interpretações e significados que interpelam o imaginário, tanto de quem conta como de quem lê.

Como escrita autobiográfica que é, em Memórias Inventadas, é clara essa cisão de um 'eu' que, ao se contar, converte-se em outro, como se ao mesmo tempo em que a narrativa aproximasse o 'eu-presente' do 'eu-passado', também descortinasse a impossibilidade desse 'eu' continuar sendo o mesmo do início; essa divisão está explicitada, inclusive, pelo distanciamento dado pelo uso – em alguns textos - da terceira pessoa.

Veja-se o que ocorre no texto “Desobjeto”, nele, o narrador se converte num outro, designado genericamente apenas como o menino que descreve as etapas necessárias para a metamorfose de um pente em um desobjeto. O prefixo de negação acrescentado ao radical retira do pente sua função objetiva, reincorporando-o à natureza, numa apologia indireta à liberdade.

O menino que era esquerdo viu no quintal um pente.

O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto

de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incluído

no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa

nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes.

Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente

tem organismo.

O fato é que o pente estava sem costelas. Não se poderia mais dizer se

aquela coisa fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora

feito o pente deram lugar a um esverdeado musgo. Acho que os bichos

do lugar mijavam muito naquele desobjeto.

Heráclito parece gritar aqui sua teoria do movimento contínuo.

O fato é que o pente perdera a sua personalidade.

Estava encostado às raízes de uma árvore e

não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era esquerdo

e tinha um cacoete pra poeta, justamente ele enxergava o pente, naquele

estado terminal. E o menino deu para imaginar que o pente, naquele

estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um

lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente.

(Desobjeto, III)

Nesse entrecho, é somente no final que o narrador auto-representado entra em cena, fundindo-se com o antes representado, numa consubstanciação que reforça a tese de que o 'eu' que conta se reconhece naquele do passado, mas, ao refazer seu próprio percurso, não é aquele primeiro – o contado - que tem a voz, mas sim o 'eu-atual'.

A criança surge como voz apenas fabulada, na medida em que a narração é construída do presente do adulto, ela continua um “sem voz” que tem sua vocalização possibilitada por um adulto que a conta, no desejo de revivê-la. Ainda que o desejo desse 'eu-atual' seja voltar àquele momento passado distante, ele só pode fazê-lo através da fabulação do que já foi, mas não é mais, pois como escreve Barros no posfácio de Memórias Inventadas, “se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore”.

Ele busca fazer a comunhão entre a criança que foi com o adulto que é, mas sem conseguir desvencilhar-se da visão que nesse um conjugam-se dois. Essa simbiose, de um 'eu eventual' e um 'eu-do-passado' como um diverso que se deseja mesmo, irmana-se com a que foi sofrida pelo pente e a natureza, na qual há a fusão de elementos dispersos, mas não totalmente heterogêneos.

4. REARRANJO SEMÂNTICO – ILOGISMO

Na poesia de Manoel de Barros, o enfoque não está na palavra, ou melhor dizendo, na significação. Existe maior preocupação com a construção, o visual obtido com o arranjo inusitado de palavras. A preciosidade de seus poemas reside na improvisação de formas ou combinações de uma maneira insólita, pela qual se descobrem mundos desconhecidos ou se exploram zonas ignoradas no conhecido. Ao enveredarmos na literatura barreana temos a impressão de que, por um instante, o mundo tal como o percebemos deixa de existir.

Ocorre na sua poética uma quebra do paralelismo sintático e semântico causando a agramaticalidade da frase. O esfacelamento da gramática apaga as marcações e referencialidades que asseguravam uma leitura objetiva e inteligível. Esse tipo de construção ensaia o descompasso entre as palavras e fluxo do pensamento, devolvendo ao pensamento a liberdade vertiginosa com que nos surpreende.

O desenvolvimento de sua obra simula uma escrita labiríntica: não há como seguir reto por ausência da linearidade; há uma sucessão de fragmentos que se inter-cortam e improvisam diferentes aberturas, por onde se inicia o movimento paradoxal de perder-se para melhor conhecer, sair do curso e experienciar.

Ler deixou de ser visto como simples tarefa de passar os olhos para reconhecer alguns símbolos gráficos. Ultrapassando essa primeira etapa a qual poderíamos chamar de mecânica ou superficial, o exercício da leitura constitui uma seleção e reunião de impressões que nos inquietaram, a fim de serem conjugadas com os conhecimentos previamente adquiridos. Logo as construções não se regulam pelas normas gramaticais, uma vez que sobressai o trabalho do poeta para encontrar outras maneiras de combinar de palavras, diferente do convencional. Cabe ao poeta explorar as possibilidades dispostas no código linguístico; perceber todas as possibilidades que a língua oferece.

O que para muitos é visto como absurdo e despropósito, no modo “torto” pelo qual o poeta pantaneiro concebe as coisas, aparece como exercício de linguagem, para explorar a língua nos níveis fônico, sintático e semântico. Dessa experimentação, surgem imagens como: “carregar água na peneira”, “guardador de águas”, “catar espinhos n’água”, entre outras. Classificar de absurdo tais composições assinala os limites do mundo delineado pela razão. Por que a poesia não pode ser alegre, provocar o riso?

Nos habituamos a olhar imagens prontas e, consequentemente, perdemos a desenvoltura do olhar curioso que percorre as superfícies para descobrir novidades. Temos constantemente o olho desviado para letreiros luminosos, símbolos chamativos, cartazes de cores-vivas, todos esses artifícios empregados ao mesmo tempo numa confecção para persuadir o espectador.

5. METAPOESIA

A pergunta que a poesia faz sobre si mesma, revelando as suas formas, caracteriza-a como metapoesia, marca específica de um dos impulsos da literatura da modernidade. Toda poesia sobre poesia é uma tentativa de conhecimento do ser que ela é. Há um redimensionamento da arte na realização de tal processo, porque a concepção metalinguística de construção e consciência existe para marcar oposição à concepção de arte como sentimento e expressão.

A função metalinguística na arte literária indica a dessacralização do mito da criação, ao expor o processo de criação artística ao leitor que, hoje, não mais a contempla como “algo inatingível”, algo insondável e inspirado pelo poeta, porta-voz de um objeto de privilegiados. Nesse sentido a poesia torna-se crítica da linguagem e, no nível da recepção, condiciona o leitor ao engajamento dando-lhe a condição de co-autor. A poesia não é mais um produto final; é articulação de um processo.

Outra essencial marca da poética de Manoel de Barros é a defesa da necessidade de abandonar a inteligência para o entendimento através do ser as coisas a fim de torná-las matéria de poesia. Assim é a poesia para o eu-lírico: ela tem a capacidade de atrair e encantar os homens, de fazê-los maravilharem-se com o mundo e com o que nele há, de instigar a imaginação e a criatividade, de lhes ensinar a procurar o lado não visto das coisas, de nunca se contentar com o pronto e acabado. O poema trabalha com todas as coisas de formas infinitas, nunca esgotando a capacidade de inovação da linguagem. Como no poema “Uso as palavras para compor os meus silêncios”:

Não gosto das palavras

Cansadas de informar.

Dou mais respeito

as que vivem de barriga para o chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.

Dou respeito às coisas desimportantes.

Prezo insetos mais do que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais do que dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática:

Sou da invencionática.

Só uso as palavras para compor meus silêncios.

(O apanhador de desperdícios, IX)


6. CONCLUSÃO:

Memórias Inventadas: a infância é um belo livro embalado para presente. Com sua fita azul, folhas soltas, uma infinidade de detalhes que absorvem o leitor. Tudo pensado para criar um pacto com o leitor. Propiciar uma atmosfera lúdica em que seu impacto vá se ampliando, crescendo, como uma boa lembrança sempre causa. Manoel de Barros usa e abusa de uma fórmula por ele mesmo consagrada, uma mistura de metalinguagem, retorno ao passado, linguagem infantil, ilogismo, buscando uma desconstrução e posterior recriação do universo que o circunda. Refundação aparentemente necessária para quem percebe o mundo que o cerca de maneira tão lúdica. Essa fuga do mundo presente, essa recriação dele em novas bases é como uma ponte que tenta salvar a si mesmo e a quem se propõe a pactuar desse novo universo.

7. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E ÁS VEZES CRTL C+CRTL VEZADA:

BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: A infância.

LINHARES, Andrea Regina Fernandes. Memórias Inventadas: Figurações do Sujeito na Escrita Autobiográfica de Manoel de Barros.

SÁ, Maria da Glória, et alli. Memória da Arte em Mato Grosso do Sul.



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