sábado, 19 de dezembro de 2009

Utopia de um homem que está cansado


Vivemos o tempo dos fenômenos anabolizados pela Internet, uma era torpedeada via Google. Novos Michaels estão sendo gestados em fábricas de fundo de quintal. Só não serão melhores, que o péssimo original, pois estrelas precisam de lendas e mitos pessoais para os engrandecer e isso demanda tempo. Tempo é o que não temos hoje. Vivemos para ser bombardeado pela próxima grande atração que durará o suficiente até que outra a supere. E assim ocorre uma substituição sem fim, numa redundância sufocante. Como músicas que baixamos aos montes e nem nos damos ao trabalho de prestar atenção de verdade, pois sempre tem uma novidade novinha em folha clamando por atenção. A voracidade e o péssimo gosto dos fregueses de novidades impressiona. Se é para ficar linkado em algo, que seja sempre aquele que se expõe mais e se joga sem medo: uma princesa Diana entre ferros retorcidos; um Bush desviando de sapatos. Nosso desejo pelo volátil é imenso. Adoramos vozes belas em invólucros esquisitos, é contra tudo o que crescemos vendo, e é o novo da estação que nós sempre queremos. Sendo estação o sucesso do dia, quiçá, da semana. Balões prateados flutuando ao encontro dos nossos desejos (ou os desejos da mídia e dos seus vampiros).


Mas sempre existirá os rebeldes. Sorrio para esses minúsculos agrupamentos de plantão. Nossos neo-hippies-passadistas. Sempre teremos em meio a toda unanimidade, focos de resistência inermes. Niilistas de fachada, fingindo ser contra tudo e todos. Nada mais fake que grupelhos que usam cabelos mau penteados propositadamente; tatuagens; a roupa que não está na moda; a camiseta do Che. Novos bandos para substituir os de antes: punks, góticos, hippies, nerds, indies, metaleiros. São a resistência ao irreversível. São os anti-tudo da nova era. Abandonados no seu córner, sem adversário para lutar: quem liga pra eles?. "Não, eu não tenho orkut, nem facebook, e odeio msn", significa dizer como em um ontem não tão longínquo: "eu odeio a sociedade, por isso moramos aqui, nessa comunidade, integrados com a natureza, livres da opressão do sistema". Bela inutilidade.

O mundo dá mais voltas que conseguimos acompanhar. Celular sem bateria; um dia sem msn; uns minutos sem trocar e-mails ou torpedos; impossibilidade de baixar mp3s; melhor o Inferno de Dante, diriam não só os jovens, mas também as crianças, os de meia-idade; os idosos. Como imaginar a vida sem internet? Minha mãe esperando na janela meu pai chegar, enquanto cuidava das roupas, dos filhos pequenos, matava uma galinha, arrancava uma cenoura do chão. Minha mãe não conheceu a internet, feliz dela? Creio que não. Imagino ela hoje, ainda esperando meu pai chegar, conversando com seus filhos e netos em São Paulo, com seus filhos e netos em Cuiabá, com seus filhos, netos, bisnetos, irmãs em Campo Grande, ela, com certeza, se sentiria bem mais completa se tivesse tido a oportunidade de algo tão futurista.

Uma vida bucólica como era da minha mãe, será, num futuro próximo, um grande hit. Fazendas ecológicas, em que o contato com a natureza, liberdade, vagarosidade, será o tradicional em voga. Serão as sacristias da modernidade galopante. Templos em que se oficiará as novas missas. Computadores ultra-high-techs, laptops mega-powers, celulares-câmeras 24 horas online, mp20, tudo desligado. Rede, só as que dormirão sonos reparadores os visitantes ilustres, ou melhor, os viciados da modernidade, ou seja, quase todo mundo.

Outra tradição de um futuro próximo será o se doar. Ser ou estar em ONGs fará toda a diferença. Dos bagres mandis do rio Paraguai aos moradores do mangue da Polinésia. Das Genis dos becos ou as de luxo às pessoas que nunca passaram num concurso público. Dos gnomos e fadas aos políticos anônimos. Todo mundo terá alguém pra chamar de seu. Algo como um bolsa-família monumental. Doar R$ 7,00 para o Criança Esperança que nada. Um mundo mais glorioso será quando todos, tradicionalmente, além da sua jornada de trabalho, partilharem de leituras de livros para cegos analfabetos. Oh, o mundo estará melhor assim? É claro, mas quem não gostará muito serão os totalitários de esquerda que perderão um nicho do seu mercado, no vale-tudo pelo social.

O Carnaval vai sobreviver. Ele, que não é mais o tradicional que conhecemos, mas vai viver e mostrar mulatas ainda rebolando quase sem roupas; celebridades com a pele pintada; comunidades em transe. O carnaval ainda vai ser algo que chamará a atenção do mundo, pois, nós somos o país do futuro, do samba, do futebol, da banana, do pré-sal e de todos os clichês possíveis, não seria justo a maior festa pagã que temos sucumbir assim assim. Que acabe o futebol, essa farra de obtusos desmilinguidos, correndo atrás de uma bola em arenas de concreto e gramados verdes como um pasto, tá, melhor não também, precisamos de toda distração possível para o povo (esse ente infeliz que sofre e sorri ao mesmo tempo que tem seus sentimentos usados pelo bando da hora).

Manteremos outras tradições. Aqui não aprenderemos a tomar o chá das cinco londrino, mas salvaremos as que mais nos representam. Pão com mortadela. Casamento na Igreja. Sentar num bar para jogar conversa fora. Festa de debutantes. Café com pão de queijo. Churrasco no fim de semana. Show caipira em festa agro. Pudim de padaria. Trote aos calouros. Banda de escola. Assistir novelas. Postar o novíssimo e revolucionário texto, que não vai ser lido por quase ninguém. Manteremos muitas das nossas tradições: da cidade, do estado, do país, pois somos saudosistas de plantão e nada como uma festa junina pra alegrar um espírito.

Já dizia um ilustre escritor: "modernos são móveis velhos e neuroses novas", e clássico o que é? Hoje é tudo que tenha um mix de velho com um élan irrepreensível de novidade. Livros velhos, fotos velhas, fatos velhos, filmes velhos. Mortos famosos. Mortes antigas. Gênios reais e do marketing pessoal. Coisas não tão vistas mas que se materializam e assombram a todos; isso é o clássico de hoje. Mas clássico mesmo num futuro próximo será tudo aquilo que conseguir burlar o tempo atual - eis o grande senhor do mundo: o Tempo, será ele o Deus tão procurado? Aquele que sobreviver à ditadura do já será o clássico do futuro. Quem sobreviverá? Twitter? Kaká? Fast food? Kuat Eco? Obama? U2? Susan Boyle? Faustão? Naruto? Paulo Coelho? Fotografia digital? Clássico, será sempre aquilo que surge e muda tudo ao redor; quebra barreiras, é imitado, e o simples fato de sabermos que existe ou existiu, nos transforma ou transformará. Como um filme do Carlitos. Como Homero e Shakespeare. Como ver Mané Garrincha colocando pra sambar um bando de joões. Hitchcock. Beatles e Ramones. All Star. Arroz feijão bife batata frita e salada. Coco Chanel. Jeans. Como Machado, Kafka e Borges, que aliás empresta o nome de um conto seu para o texto todo.



* Texto publicado no http://picidaribeiro.blog.terra.com.br/ - na verdade feito de encomenda para ela, que queria saber o que eu achava que no futuro seria clássico ou tradicional. Quase uma armadilha, pois eu, boca aberta, podia ter sido conciso e dito tudo de maneira mais simples, mas não, e tome texto enorme, para o desgosto dos fregueses.



s.o.