segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Faz-me rir!

Domingo à noite, um dia mórbido. Ao sairmos de casa ou embarcarmos num ônibus, o que vemos é um cenário desolador. Os mais puritanos se revestem com a engomada roupa social, fazem o melhor ar de moço bom e carregam como um tesouro a bíblia debaixo dos braços. Mães desavisadas e pais embriagados equilibram sacolas e a coleção de filhos pequenos. Nesses rostos, o que se vê é a exaustão, a catarse de quem leva uma semana árdua de trabalho e tem como único lazer o fugaz fim de semana para levar os filhos para ver a avó, a qual talvez não os receba sempre com a mesma receptividade. Os bebês nos colos manifestam seu cansaço em lágrimas torrenciais e um berro incessante. Os emos púberes acham que a vida pode realmente ser mais colorida se encherem-se de piercings e trajarem o preto cotidianamente. Os bares, lotados de homens vazios, como lembraria Vinicius, todos diante de telões gigantes que exibem um futebol que inspira palavrões e o sarcasmo com o amigo que torce pelo time que está perdendo. Os que não assistem, praticam. As ruas esburacadas transformam-se em palco para a pelada dos amadores. Senhoras desperdiçam conversas nas calçadas. Outros e outras são mais acomodados ainda e se refestelam diante de domingos que eram ão e agora caminham para inho. É difícil acreditar que possa haver vida inteligente diante de tanto marasmo, tanta insalubridade. É quase impossível crer numa salvação. Mas ela existe. E existiu no último domingo.

O santo milagroso chama-se Fulano di tal. E o milagre produzido chama-se Faz-me rir. É claro que nem todos têm a chance de ser agraciado quando eventos assim acontecem. A peça aconteceu no Palácio Popular da Cultura. Que de popular só tem mesmo o nome. O pomposo teatro fica no meio do nada, ou melhor, no meio do Parque dos Poderes. Piada de mau gosto e herança maldita de Pedro Pedrossian; todos os órgãos públicos perto um do outro. Tudo perto. Mas longe do resto da população. Pra lá os ônibus rastejam levando uma multidão de funcionários públicos e cidadãos vitimados pela burocracia. Porém, só podemos desfrutar de tal infortúnio durante a semana. Nos finais de semana, só os bem-aventurados que dispõem de carros próprios ou de meios para custear os temperamentais taxímetros é que podem lá chegar. A “gente humilde” de Chico fica fadada ao nada da televisão. Na verdade, a “gente humilde”, muita das ocasiões, passa a ser também a ser gente invisível. Que importa saber se a maioria das pessoas não podem chegar lá, uma vez que elas também não vão ter como comprar os ingressos? O Palácio é palco das grandes produções, das estrelas globais e de vez vem em quando também frívolas. E o único meio é cobrar caro para bancar os gastos. No entanto, no último domingo não foi assim com Faz-me rir. A peça de produção local teve preços populares, mas o empecilho de se chegar lá persistiu. Os que conseguiram vencê-lo amanheceram em segundas-feiras encantadas.

A peça começa com um casal fazendo uma espécie de publicidade do grupo. Contando de como ele surgiu e as piadas e confusões que sempre surgem com o curioso nome de Fulano di tal. Nessa conversa a três com público, tomamos conhecimento de forma divertida de como é a dura realidade do artista que precisa buscar patrocínio. É verdade que essa introdução nem sempre traz piadas felizes e pode por vezes desanimar o público. Mas o espetáculo vai sempre ganhando vida num ritmo crescente a cada troca de personagem, o espetáculo é feito em esquetes.

A primeira é de um casal que se conhece pela internet e marca um encontro inusitado num restaurante. O computador é o cupido ideal para juntar personalidades que se atraem e se repelem. A menina é toda colorida, toda fashion como ela mesma diz, e ele parecer ter fugido da violada mais próxima; bota, calça apertada, camisa e boné. Não faltam tipos por aí assim. Sendo assim também não faltaram doces alfinetadas à música sertaneja que impera por aqui. Isso é o mais incrível da peça: humor local. Estamos carentes disso por aqui em todas as áreas. Na música, dança, teatro, poesia, sempre que queremos falar de nós lembramos de tuiuiús, jacarés, onças e afins como se fôssemos todos descendentes de Robson Crusoé. A segunda vem falar de política criando também tipos curiosos; o laranja, a secretária atraente e ambiciosa, o assessor corruptível e no centro de tudo, o deputado que não saber lidar com as próprias tramoias e alusões à política local também são meras coincidências. Risos também com as amigas que no meio da balada começam a pensar em casamento, em escolhas, em como lidar com os homens, se compensa mais ser uma princesinha ou uma amélia. O gaúcho de profissão não-revelada no início que começa a contar de seu cotidiano de trabalho criando uma série de trocadilhos de conotação sexual. A hilaridade única da noiva embriagada que foge do noivo e trava um diálogo ébrio com o público. Os nossos olhos também saem a dançar para acompanhar os movimentos do ator que percorre uns vinte de anos de dança para mostrar o quanto evoluímos nesse quesito. Música que já tínhamos esquecido, músicas que ouvimos sem querer, outras que já ouvimos e até sabemos a coreografia apenas por odiá-las. Mas engraçado mesmo é entramos no universo infantil e assistirmos com leveza temas como a pedofilia, a sexualidade em si e todas as noias e preocupações sérias e válidas dos adultos que afligem o pequeno mundinho de nossas crianças. Enfim, é impossível não sair extasiado depois de vivermos uma noite assim.

Morra! Mas não morra antes de ver essa peça. Talvez a única ressalva se faça é quanto ao uso de microfones que talvez pudessem ser dispensados dando mais liberdade aos atores e acabando com o problema de chiados ocasionais, embora quase imperceptíveis ao público. Com pouco cenário e não muito figurino fez-se um belo espetáculo. Vale a pena gastar dinheiro com táxi para vermos algo realmente fantástico.






 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
t.c.s.