domingo, 28 de dezembro de 2008

Ensaio Sobre A Cegueira

Uma palavra vale mais que mil imagens. Não restam dúvidas. Contudo, leitores compulsivos quando começam a ser tornam cinéfilos passam a conviver com um eterno drama. Os olhos estão sujeitos a uma divisão cruel. E é impossível escolher. Como homem que realmente é capaz de amar na mesma intensidade a amante e a esposa.
Olhos que se encantam com bibliotecas, livros, capas, páginas, capítulos, parágrafos, frases, palavras, letras querem igualmente se encantar com cinemas, filmes, cartazes, cenas, imagens, diálogos. Mas sabemos que é impossível um encaixe de côncavo e convexo entre cinema e literatura. Porém, Fernando Meireles quase o faz com êxito. Eu disse quase.
Somos levados ao cinema quase que por um patriotismo idiota. Uma espécie de solidariedade com o diretor brasileiro que já nos surpreendeu com Cidade De Deus. Chegamos quase a delirar com a possibilidade de um Oscar inexistente. Os mais insensatos chegam até mesmo a esquecer que se trata de uma adaptação. E que José Saramago não é nenhum Dan Brown ou tampouco uma J.K. Rowling, cujos livros já são quase que roteiros prontos. A escrita do autor português é por vezes permeada por uma complexidade quase que impenetrável. Transpor tudo isso para a tela não é tarefa muito fácil. Porém, Fernando Meireles quase o faz com êxito. Eu disse quase.
Já na primeira cena, uma decepção recôndita. “Os atores não falam português? Mas como?”. No entanto, logo a inconsciência verde-amarela nos diz: “Mas você não quer nada hein? Além de adaptarem para o cinema americano a obra de um autor de língua portuguesa, você ainda queria que mantivessem o idioma original?”. Tratamos de esconder nosso orgulho e seguimos atentos.
Na medida do possível, o filme vai tentando ser fiel ao livro. Todavia, não demora muito para mais uma decepção. Não vamos cortar o dedo junto com o primeiro cego. E quase não vamos nos chocar com esposa insensível e leiga da enfermidade do marido que o fez bagunçar a casa toda. E o que se dirá do orgasmo da “rapariga de óculos escuros” (que assim não é mais chamada), tão fugaz quanto o masculino? Os personagens de Cegueira (o livro) não possuem nome, possuem rótulos. O “médico”, “a mulher do médico”, “o rapazinho estrábico”, “o velho da venda preta”, “o ladrão de carro”, “ a recepcionista do hotel”, “o motorista de táxi”, “o policial” e assim por diante... Durante todo o filme, é isso que nos falta: a narração de Saramago, a escrita portuguesa com seus termos incomuns para nós e suas particularidades ortográficas de “cépticos”, “adoptar”, “reflecção”, “retrete” e etc... E onde está o maravilhoso “cão das lágrimas”? Ele até está lá, mas não há ninguém que lhe dê uma nomenclatura digna.
Saramago em sarcasmos aos detratores do filme, disse à Revista Bravo!: “[...] não obstante as incompreensões de certa critica que diz que o filme é demasiado violento. Pelo visto esses críticos não costumam ver televisão.” Não, Meu Caro Saramago, quem quiser violência não necessita recorrer à televisão, basta que leia o livro. O livro consegue ser muito mais chocante que o filme. Os cegos em desordem dentro do manicômio, as mulheres sendo assediadas. A terrível libido masculina. É indescritível a sensação diante do sanguinolento sexo oral. O cheiro nauseabundo que emana daquele chão como um esgoto improvisado, onde realmente já se tornou um reservatório de urina e fezes. O filme não é nem mesmo capaz de nos trazer a repulsa pelos excrementos que nem ao menos aparecem. Saramago sabe ser repulsivo na hora certa, e assim surge sempre nas horas que menos esperamos. E no filme, onde está o fogo fátuo dos inúmeros corpos, na segunda ida ao supermercado? Sabe ser sensível, quando já não temos força nenhuma. Somos acolhidos nos braços da única pessoa que ainda enxerga, “a mulher do médico”. Que já passa a ser a nossa mulher, tamanho amor e solicitude com que ela nos trata. Somos seduzidos por sua beleza revestida numa penúria de vaidade. Ela e todas as demais mulheres.
Difícil é chegar a um denominador comum quando passamos a pensar quais eram os intuitos de Saramago com esse livro. Mas o mais louvável de se responder é que cegos somos todos nós. Todos nós padecemos do “mau branco”. Ao ver aqueles personagens sendo apresentados apenas por rótulos, nos identificamos imediatamente. É essa a multidão em que vivemos todos os dias. Os cegos se digladiando em busca de leito ou comida como se assemelham com nós quando queremos adentrar ao ônibus. Os humanos são todos cegos. E vivem e morrem sem descobri-lo.

Tem coisas que só Saramago faz por você:

“Ao mover-se em direção à sala de estar, e apesar da prudente lentidão com que avançava, deslizando a mão hesitante ao longo da parede, fez cair ao chão uma jarra de flores de que não estava à espera. [...] Quis recolher as flores, mas não pensou nos vidros partidos, uma lasca longa, finíssima, espetou-se lhe num dedo, e ele tornou a lacrimejar de dor, de abandono, como uma criança, cego de brancura, no meio duma casa que, com o declinar da tarde já começava a escurecer”

“Saíram dois hóspedes, um casal idoso, ela passou para dentro, premiu o botão do terceiro andar, trezentos e doze era o número que a esperava, é aqui, bateu diretamente à porta, dez minutos depois estava nua, aos quinze gemia, aos dezoito sussurrava palavras de amor, que já não tinha necessidade de fingir, aos vinte começava a perder a cabeça, aos vinte e um sentiu que o corpo se lhe despedaçava de prazer, aos vinte e dois gritou, Agora, agora, e quando recuperou a consciência disse, exausta e feliz, Ainda vejo tudo branco”.

“Não é só o estado em que rapidamente chegaram as sentinas, antros fétidos, como deverão ser, no inferno, os desaguadoiros das almas condenadas, é também a falta de respeito de uns ou súbita urgência de outros que, em pouquíssimo tempo, tornaram os corredores e outros lugares de passagem em retretes que começaram a ser de ocasião e se tornaram de costume”.

“As mulheres, todas elas, já estavam a gritar, ouviam-se golpes, bofetadas, ordens. Calem-se, suas putas, estas gajas são todas iguais, sempre têm de pôr-se aos berros, Dá-lhe com força que se calará, Deixem-nas chegar a minha vez e já vão ver como pedem mais”

“Chupa, e deixa-te de conversa fina, Não, Ou chupa, ou na tua camarata nunca mais entrará uma migalha de pão, vai lá dizer-lhe se não comerem é porque te recusaste a chupar-me, e depois volta para me contar o que sucedeu”.

“Não chegarás a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se lhe com toda a força na garganta do cego, girando sobre si mesma lutou contra as cartilagens e os tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais. O grito mal se ouviu, podia ser o ronco de outro animal de quem estivesse a ejacular, como a outros já estava sucedendo, e talvez o fosse, na verdade, ao mesmo tempo que um jato de sangue lhe jorrara na cara, a cega recebia na boca a descarga convulsiva do sêmen”.

“Não, só vi que havia fogos-fátuos agarrados às frinchas, estavam ali agarrados e dançavam, não se soltavam”

“Alguém tinha deitado a mão ao último farrapo que mal a tapava da cintura pra cima, agora ia de peitos descobertos, por eles, lustralmente, palavra fina, lhe escorria a água do céu”

“Não podem imaginar que estão ali três mulheres nuas, nuas como vieram ao mundo, parecem loucas, devem de estar loucas, pessoas em seu perfeito juízo não se vão pôr a lavar numa varanda exposta aos reparos da vizinhança, menos ainda naquela figura”

“Os cães rodearam-na, farejaram os sacos, mas sem convicção, como se já lhe tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos”.

“O cão das lágrimas anda a farejar inquieto, demorou-se a pesquisar um certo monte de lixo, provavelmente havia escondido debaixo dele uma supina iguaria que agora não consegue encontrar, se estivesse sozinho não arredaria pé, mas a mulher que chorou já vai lá adiante, é seu dever ir atrás dela, nunca se sabe se terá que enxugar outras lágrimas”.
t.c.s