terça-feira, 29 de julho de 2008

Manoel de Barros Begins


Temos, hoje em dia, que Manoel de Barros é um dos maiores poetas do país. Justo, muito justo. Mas na maior parte das vezes, essa crítica se refere à sua obra atual, esse desvario inominado em que se transformaram suas criações do quarto livro em diante. Assim abandonamos às traças três pérolas, livros que ficaram perdidos em estantes de colecionadores, amigos ou de quem comprou sua primeira antologia: Gramática Expositiva do Chão - Poesia Quase Toda. Poemas Concebidos Sem Pecados (1937), Face Imóvel (1942) e Poesias (1956), se inserem no que foi feito de melhor em poesia no Brasil, por uma poeta que viveu um tempo de profundas mudanças e fez do ato poético um grito de revolta contra o mundo que o cercava. Devíamos trazer à tona esses livros, fazer com que fossem estudados, admirados, pesquisados.

Em 1937 vivíamos já o pós-pós-Semana de Arte Moderna de São Paulo, eram tempos de consolidar a revolução dos "moços de 22", e a poesia tinha perdido os ares parnasianos, rima e métrica haviam sido viradas do avesso, tínhamos novos heróis buscando seu lugar ao sol. Manuel Bandeira, os Andrades, Drummond, Raul Bopp e tantos outros. Nesse meio de gigantes, ele ousou colocar seu tímido ovo de Colombo. Passou despercebido, eram tantos e tão maiores os polemistas da época que o Manequinho não foi considerado. Em 1942, com o mundo em meio à 2ª Grande Guerra, ele tentou de novo, voltou para falar do silêncio da dor, foi ignorado novamente. Manoel que depois seria (re)conhecido por sua mutação constante, em 1956, publica o terceiro livro, onde parece se despedir do meio em que não viveu. Quando o homem Manoel de Barros leva o poeta para o campo, ocorre a mudança final, agora ele vive no mato, para o mato, do mato, mas sempre sendo universal. Inegável dizer o quanto isso fez bem para a carreira de Manoel enquanto poeta (desnecessário dizer que para ele isso não queria dizer nada), aumentou seus horizontes, desbravou novas realidades e, enfim, quando nada mais fazia tanta mossa, alcançou o céu, deixando para trás essas três pérolas, diamantes brutos aguardando lapidadores.

Ele sempre foi grande, os olhos de então que não estavam treinados para sua poética que caminhava em direção à contradição. Insurgia-se contra os princípios norteadores do pensar, "por não se ajustar ao raciocinar retilíneo clama por um retorno ao originário do pensar", conforme nos diz o pesquisador Prioste. O Poeta apreende a realidade como um cenário construído a partir do alicerce verbal. E nessa desconstrução por que passa alcança um idioma quase próprio, que nada mais é que um misto de variações das novidades de vanguarda (fonte constante), com a simplicidade de um eu-poético em busca de um mundo adâmico. Foi ele quem melhor descreveu a representação poética do desfragmentado ser humano que restou das crises e novidades da sociedade moderna.

Em Poemas Concebidos Sem Pecados, o poeta ataca "a questão do humano a partir do confronto com uma civilização dominada pela técnica racional que delibera sobre a utilidade da produção e transforma os sujeitos em sujeitados a um modo de pensar delimitado ao objetivo, ao racional, ao exato, ao legível e ao inteligível".

"Sou bugre mesmo
me explica mesmo
me ensina modos de gente
me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa
me explica por que que um olhar de piedade
cravado na condição humana
não brilha mais do que anúncio luminoso?"

Barros realça o avesso do mundo, mira seu olhar no rejeitado desvalorizado "por uma sociedade produtiva de bens consumíveis tanto duráveis como descartáveis". A razão "condena ao ostracismo o poeta por declamar palavras sem sentido por serem contrárias tanto ao senso comum como à distinção das idéias".

No livro de 1942, a guerra atroz afeta o poeta: "a fala impossibilita-se, pois o homem encontra-se diante de contingências históricas graves: uma guerra mundial. Como então reagir diante do pesadelo da história? Frente ao ecoar de sirenes e explosões distantes, prevalece o silêncio".

"Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito"

Vemos o quanto, em alguns momentos, sua obra está impregnada dessa dor universal, mas misturada ao seu “fusionismo” habitual; temos que "a instância primordial da poesia de Barros, no entanto, preserva-se intacta, pois tanto ao valorizar a fala dos segmentos marginalizados da sociedade como ao enunciar o emudecimento e a consternação diante de um mundo em conflito, a preocupação fundamental é com o outro".

Em 1956, percebemos um poeta vivenciando a modernidade mais profundamente, aqui lemos poemas vigorosos e centrados no seu olhar único: "a boca do poeta frente a um mundo desigual não se permite compactuar com uma estética subscritora do vazio da neutralidade asséptica de um postal, mas vira a construção cenográfica pelo avesso para denunciar o humano que ainda pulsa".

"Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri sede."

Mostrando ser um poeta consistente, em busca de quebrar o cotidiano normal da poesia, se reinventando, e nunca abandonando a sua maior arma, a consciência perante a sociedade em que vive: "Frente à degradação humana o poeta não silencia e afronta o moralismo provinciano por uma intervenção que sobrevém através da palavra".

São esses os livros, guardados que estão nas estantes, belíssimas obras, um treino de luxo para as obras que surgiriam depois. Um poeta que viu esse mundo urgente surgir e diante do caudal de novas idéias que iam aparecendo, ia emprestando aqui, renovando ali, nunca se prendendo a nenhuma escola pré-fixada, mas sempre utilizando-se dessas inovações para se tornar esse poeta singular, muito singular que hoje conhecemos:

“Singular, tão singular
Ó passar-se invisível pela alma da alameda de casas
espaçosas —
Imaginando a feição ideal dentro de cada uma!
Ir recebendo um pouco de poesia no peito
Sem lembranças do mundo, sem começo...
Chegar ao fim sem saber que passou
Tranqüilo como as casas,
Cheio de aroma como os jardins.
Desaparecer.
Não contar nada a ninguém.
Não tentar um poema.
Nem olhar o nome na placa
Esquecer.
Invisível, deixar apenas que a emoção perdure
Fique na nossa vida fresca e incompreensível
Um mistério suave alisando para sempre o coração.
Singular, tão singular..."


Poemas:
Barros, Manoel. Gramática Expositiva do Chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.


E-book:
PRIOSTE, José Carlos Pinheiro. A Unidade Dual: Manoel de Barros e a Poesia. Tese de Doutorado. UFRJ, 2006.



Imagem: A Moça com Bandolim - Pablo Picasso



s.o.

sábado, 12 de julho de 2008

Poetas Mediocres

Todo cuidado é pouco. Não há como escapar deles: os puxadores de assunto. Eles estão por toda parte. Escondem-se sob os mais diversos disfarces. Normalmente surgem nas mais impróprias, nas horas da tua maior pressa. Um deles é perigosíssimo, usa a já até manjada armadura de velhinho aposentado. Ele chega ao teu ponto de ônibus, como quem não quer nada, olha em volta, te olha. Até quem vem a primeira pergunta. Sempre alguma exclamação relacionada com o tempo, como “que calor!”, “que frio!”, “que chuva!”, “que tempo feio!”. Daí, não há mais como você fugir, pois independente de qual seja a tua resposta, a tua opinião, você já se tornou uma presa. É irrelevante qual seja e como seja a tua réplica diante do comentário dele. Você pode simplesmente dizer “sim” ou “não”, ou ainda, simplesmente fazer um aceno de cabeça, negativo ou afirmativo. Não há como livrar-se, você já se tornou a próxima vítima. De repente, o assunto seguinte pode até não ter com qualquer relação com o segundo. Ele pode talvez querer comentar a partida de futebol da noite anterior, exalando opiniões sempre com muita propriedade. Faz uma nova escalação para o time, sugere um novo técnico, novos patrocinadores, classifica a torcida como quente ou fria, critica o locutor e comentaristas do jogo, xinga a mãe do juiz. Nesse momento de entusiasmada explanação, a tua recepção pouco importa. Você pode até mesmo ficar no teu cantinho, caladinho, sem dizer um pio. O que é até melhor para ele, porquanto faz o seu show sem interrupções. É melhor que você não tente concordar com o que ele diz e nem tampouco objetá-lo, já que ele não vai deixar você falar de maneira alguma. A única coisa que você tem a fazer, é torcer para que o teu ônibus chegue primeiro que o dele, e torcer para que não seja o mesmo que o dele. Se isso acontecer e o ônibus estiver vazio, procure sentar-se no fundo, normalmente ele vai querer ocupar os da frente. Mas se o teu ônibus estiver lotado e ainda por cima for o mesmo do teu algoz, não tente reagir, entregue os teus ouvidos na hora. Quando for a pontos de ônibus, escolha os que não ficam próximos a supermercados, porque os puxadores de assunto, depois que o papo já começou a rolar, costumam também exigir favores. Se você der o azar de encontrar um deles em dias de quinta-verde, a situação se agrava. Portanto, não se assuste se um deles te pedir que você corra até a seção de verduras e traga uma cebola, uma batata, uma maça que ele esqueceu de trazer enquanto fazia a compra.
Supermercado é também outro lugar bastante perigoso, onde todo cuidado também é pouco. Além do velhinho, existe a versão feminina da velhinha sorridente, que age quase sempre de forma aparentemente inofensiva. A princípio, ela chega pedindo apenas que você olhe para ela qual é o preço no pacote de café. Depois, ela sai agradecida, demonstrando que nunca mais vai te encontrar. Porém, ela sempre retorna e te reencontra na seção ao lado. Nesse momento, vocês dois já se tornaram íntimos, de maneira que ela já pode te dizer todas as opiniões políticas e econômicas dela. Então ela te despeja uma série de revoltas: “os preços estão absurdos”, “o atendimento no supermercado está péssimo”, “os produtos estão vencidos”, “os folhetos são mentirosos”, “a propaganda na televisão é mentirosa”, “ a novela está sem-graça”, “o governo é corrupto”, “tudo era melhor na época do Sarney”. Não obstante, a coisa não para por aí, logo ela passa a interferir nas tuas escolhas, dando palpite em quais produtos você deve levar; o mais barato, o de melhor qualidade, a melhor marca, qual marca mais tradicional, qual rende mais, etc. Lembre-se: o melhor que você tem a fazer é ficar sempre calado. E cumprir direitinho o seu serviço de ouvidoria. Ainda no supermercado, outro momento de alta periculosidade é quando você vai ao banheiro. Pois lá sempre existe uma versão mirim dos puxadores de assunto. O menininho perdido. Aquela velha história, do filho pequeno que diz à mãe que ele quer ir ao banheiro, a mãe o leva e diz: “fica aqui, que daqui dois minutos eu já volto!”. A mãe nunca volta em dois minutos. O menino acaba de fazer o que tem para fazer e volta com as calças ainda arriadas à procura de sua mãe. Logo ele arma o berreiro em frente às portas. Você sempre se penaliza, se sensibiliza com o caso. Entretanto daí em diante você terá que lidar com um dos casos mais graves de puxador de assunto, porque na verdade, ele não chega a ser um puxador de assunto, é apenas um puxador de choro. É você quem tem que puxar assunto. É uma árdua tarefa, pois a cada pergunta que você faz para ajudá-lo, ele dá apenas um novo acorde de choro, afinal você está lidando com puxador de assunto que é treinado para não dar assunto para ninguém. Das duas uma: ou você corre e deixa o garotinho em desespero, ou se vinga nele de todos os puxadores de assunto que você encontrou na tua vida, fazendo todas as formas de interrogatório possíveis, fazendo de tudo para ser ouvido por quem não quer te ouvir de jeito nenhum. Ainda no supermercado, no estacionamento, você pode ser abordado por outra forma ainda mais nociva de puxadores de assunto, os flanelinhas ou trombadinhas. Eles chegam contando histórias mirabolantes de que a mãe está doente, o pai está doente, que estão com fome, que precisam inteirar para pagar o passe de ônibus. Tudo para arrancar alguma moedinha de você. Os puxadores de assunto sempre querem alguma coisa de você. Por isso talvez, as meninas devam sofrer mais com milhares de manés que surgem por aí contando as asneiras.
Outro lugar que você deve evitar o máximo possível é o banco. Nele, os puxadores de assunto, acham que todos que estão na fila, são analistas ou podem resolver a desconfortante situação. E vêm esparramando lamúrias a torto e direito: “salários baixos”, “os juros abusivos”, “a fila que não anda”, “só tem um caixa atendendo”. E por aí vai... Outro personagem bastante comum é o office-boy. Existem dois tipos dele. O primeiro é aquele que quer parecer advogado ou executivo da firma em que trabalha. Esse chega todo engomadinho, de roupinha social, perfumado (embora já suado), cabelinho com gel. Daí a pouco, ele começa a reclamar que tem que andar rápido o atendimento porque ele “tem ainda uma série de compromissos pelo resto da tarde”. Na verdade, o que ele tem é uma porção de carnês e boletos para pagar nas lojas do centro da cidade, e vem com esse papinho de “compromissos”, insinuando que tem uma infinidade de reuniões importantíssimas e inadiáveis. O outro office-boy é o tipo mais desprendido que existe. Esse faz questão de mostrar que é adolescente. Chega vestido de roupa moderninha, brinco na orelha, bonezinho pra traz. Ele sempre dá uma de pegador. Ele sempre acha que tem um na fila que é truta dele. Daí ele começa a contar dos embalos de sábado à noite, como se o seu interlocutor realmente estivesse muito interessado na conversa. À medida que a fila vai diminuindo, tanto o office-boy moderninho, como o social, fazem novas amizades, procuram novas pessoas com que dialogar. Será tua sorte se você tiver muito à frente, ou muito atrás deles, e se livre de uma vez por todas do banco e dos puxadores de assunto.
Às altas horas da noite, os puxadores de assunto também estão à solta, de plantão, ainda por cima mais sensíveis, dispostos a conversar com qualquer um. O corriqueiro bêbado pode ser inevitável nessas horas. Ou ainda o viajante. É isso, sobretudo se mais uma vez você estiver em ponto de ônibus. O puxador de assunto viajante chega meio desnorteado, te perguntas que horas são, senta e de repente, não mais que de repente, solta: “acabei de chegar de viagem”. Não tente ser estúpido e simplesmente lhe responder: “e eu com isso?”. Ele pode ainda ser mais agressivo ou mais dramático e melancólico. Lembre mais uma vez: tudo que você tem a fazer é ficar quieto! Agressivo jamais! Deixe que o viajante conte de sua viagem. Ele vai te dar em detalhes toda a viagem que fez. Os lugares que visitou, as coisas que comprou, as pessoas que conheceu, os parentes que reviu, etc. É claro que é inevitável que ele faça comparações com o lugar que ele visitou e a tua cidade. O que você tem a fazer é escutar, já que pelo visto você tem mesmo vocação para atendente do CVV.
Saiba: conversas de puxador de assunto jamais serão agradáveis. Se ele está se dispondo a conversar com você que é um estranho, é porque todas as pessoas que ele conhece já não agüentam o papo dele, o cara pode ser realmente insuportável. Ou simplesmente carente. E outra, as pessoas com quem você gostaria de conversar, dificilmente virão falar com você. Elas já têm gente demais para falar, não vão querer falar com um estranho. Sendo assim, o jeito é você se tornar um puxador de assunto de vez em quando. Então é sempre bom que você tenha toda a paciência do mundo com os puxadores de assunto. Afinal ninguém sabe o dia de amanhã, você pode se tornar um deles. Seja mais compreensivo. Para muitos a rua é um abrigo, juntamente com supermercados e bancos. Na verdade não é a inconveniência que cria puxadores de assunto. É a solidão, a carência, a vontade de falar com alguém, a vontade de ser ouvido, de ouvir a voz de alguém, ainda que seja um desconhecido. Os puxadores de assunto por mais chatos que possam parecer, não são chatos, são mendigos, mendigam sentimentos, compaixão, diálogos. Mendigam palavras, como poetas medíocres em busca do verso. Por isso os assuntos são desagradáveis. Mas no fundo só querem registrar sua existência, a vontade de alguma coisa que querem, mas não sabem o que é, ou não querem dizer, ou não sabem como dizer, como poetas medíocres. Não há como fugir dos puxadores de assunto, eles são muitos.





t.c.s.