quinta-feira, 8 de maio de 2008

No caminho da palavra



Houve um tempo, segundo Calvino no seu Cavaleiro Invisível, que "era uma época em que a vontade e a obstinação de existir, de deixar marcas, de provocar atritos com tudo aquilo que existe, não era inteiramente usada, dado que muitos não faziam nada com isso - por miséria ou ignorância[...]"; esse tempo ressurge em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Considerado pela crítica especializada (ela existe?) como um romance social ou do ciclo da seca, é assim repassado a quem interessar possa. Abandona-se um longo e pedregoso caminho, apequena-se possibilidades que o autor levou às últimas conseqüências. Analisado de modo simplista, os ingredientes estão todos lá, a caatinga, os viventes, as aves de arribação, os animais mortos, urubus que "arrancam olhos". Uma vez ultrapassado esse primeiro contato, um novo mundo se descortina ao leitor; caímos no reino do onírico, das prospecções dos abismos da alma, da incomunicabilidade, do pesadelo, da condição humana como um fardo da existência, e temos uma busca paradoxal no encalço da linguagem, da palavra que falta, que grita, que pode salvar.

As personagens atravessam a narrativa perdidos entre tempos desconexos, são retirantes, vagam atrás de um lugar melhor, mas, principalmente, buscam um espaço onde possam estar nesse mundo. Suas ferramentas são parcas, se comunicam, ou ao menos tentam, guturalmente. O papagaio arremedava a todos, pois os sons eram puramente onomatopéicos. Transbordam de vazios incompreensíveis, se ressentem dessa falta maior: a linguagem. Quando Fabiano descobre que os filhos "têm idéias", se assombra; o crescimento deles, essa possível curiosidade cria "uma perturbação que sente", pois para ele é mais simples ensinar a praticidade do trabalho. Seus pensamentos quase transbordam pois se lembra do amigo Tomás da bolandeira, o "mais arrasado homem do sertão", "porque lia demais". Segundo Fabiano "pessoa como ele não podia aguentar verão puxado". Temos aqui um darwinismo total, no sertão até os fortes tem dificuldades de sobreviver, por isso é preciso ser forte e simples sempre, pois a morte está sempre se "avizinhando a galope".

Através das técnicas freudianas do fluxo da consciência, as personagens travam seus diálogos silenciosos. Tudo se conecta e se perde em instantes. Fabiano diante do soldado amarelo pensa que diz e não fala, quando fala não diz: "Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto etc. É conforme". Graciliano entrecruza o seu texto com conjugações verbais que desnorteiam o leitor, passado, presente e futuro se misturam, criando atmosferas oníricas, de sonhos ou pesadelos. Preso Fabiano na cadeia e na falta de linguagem "queria berrar para a cidade inteira"; a fuga de um drama se dá recordando de outros piores, mas conhecidos, assim logo devaneia com a seca e com suas faltas. Sinhá Vitória sofre com seus pensamentos que flutuam num ir e vir monocórdico, desfragmenta-se, chega a duvidar até do que está pensando: "Encostou o fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava pensando?". Como passamos o texto lado a lado com o narrador, nos perdemos nesse descaminho, onde estamos agora? Quem está pensando o quê? É tênue esse limite, só sabemos que o narrador é culto e que nossos heróis são capengas no falar, limitados e flutuantes no pensar. "Nesse ponto as idéias de sinhá Vitória seguiram outro caminho"; é assim como um carro de bois, aos trancos e barrancos, que a história segue. Quando Fabiano diz que sinhá Vitória tinha "pés de papagaio" isso faz com que ela se lembre do papagaio que virou almoço e logo a seguir da seca, pesadelo maior e que sempre volta num eterno retorno.

Graciliano consegue, e talvez seja um dos melhores nisso, introduzir no texto imagens translúcidas, aproveitando para, através delas, alcançar as prospecções dos abismos da alma; suas fraquezas, seus desejos, suas surpresas e indignações. Os meninos quando chegam à cidade se admiram de tudo “Impossível imaginar tantas maravilhas juntas”. Sabemos quando estão desconfortáveis e queremos até ajudar nesse momento ruim, para Fabiano a roupa nova é como a prisão; os pés de sinhá Vitória doem horrivelmente. Estar assim entre tantas sensações reais e outras devaneadas, desnorteia. Leitores e personagens ficam como que perdidos “Impossível readquirir aquele instante de inconsciência” avisa o narrador; Fabiano rebate nesse diálogo que parece só deles “- Como a gente pensa coisas bestas”. De monólogo em monólogo nos assustamos quando Fabiano se pergunta “Quantos anos teria?”, perdido e despersonificado, ele existe mesmo ou é só um sonho?

Mas é na busca da palavra, de uma linguagem que os recrie, que Graciliano se esmera. É uma batalha feroz, todas as personagens sentem falta ou são surpreendidos pela palavra: o menino mais novo quer falar, faltam-lhe esses apetrechos verbais. Admira o pai e não consegue exprimir isso. O menino mais velho aprende a palavra inferno, quer saber o que significa, mas sem ter como lhe explicar “sinhá Vitória aplicou-lhe um cocorote”; ele “tinha um vocabulário tão minguado como o do papagaio”, acha que “todos os lugares conhecidos são bons”; a descoberta da palavra inferno já é uma admiração. Quando se reúnem em volta do fogo no inverno (e assim se assemelham aos homens das cavernas ou até às sombras da caverna de Platão) sentiam necessidade de verem o rosto de Fabiano para tentarem decodificar o que ele falava, pois é como se assim fosse possível domar as palavras que saiam da boca dele.

Nessas histórias contadas à luz de fogo, Fabiano mente, aumenta, reconta com palavras diferentes (como se fosse possível), o filho mais novo não gosta “Teria sido melhor a repetição das palavras” avisa o narrador que diz também que o menino “Brigaria por causa das palavras”. Na festa da cidade, os meninos se maravilham com tudo e “nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão, provavelmente aquelas coisas tinham nomes”; e assombro maior “Como podiam os homens guardar tantas palavras?”, pois “livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas”; é a mesma surpresa que teve Cortéz, conquistador do México, que numa carta para o rei da Espanha diz: “eu queria falar de outras coisas da América, mas não tenho a palavra que as define nem o vocabulário necessário”. Quando sinhá Vitória é capaz de pensar lógicamente, cortando caminho: “as aves de arribações matam o gado”, Fabiano se admira, a considera muito esperta e sente-se feliz por tê-la como companheira. E na hora da fuga, quando o sertão está novamente em brasas é devaneando nas palavras de sinhá Vitória que Fabiano encontra forças para continuar: “As palavras de sinhá Vitória encantavam-no”. “E andavam para o Sul, metidos naquele sonho”. Sonhos trazidos pela palavra, ou palavras que levam ao sonho, mas de toda maneira palavra que é a única que salva quer seja na vida ou no devaneio.



s.o.