segunda-feira, 17 de março de 2008

Orfeu

Na hora da divisão das tarefas celestiais um anjo que adorava fazer nada fugiu do céu, vagou aqui e ali, um passarinho encantado brincando entre nuvens e crianças. Descobriram-no, cortaram-lhe as asas, ganhou nome e endereço pouco fixo, Cássia Eller. Do seu tempo divino restou a voz; ela era uma das sereias que cantou quando Ulisses voltava para casa. Pensava nisso quando ia para o show dela na tenda do parque das Nações, era a véspera do lançamento do Acústico, era a oportunidade de ouvir os gritos mais famosos desde que Cazuza tinha ido embora. Era a chance, e não sabíamos, de vê-la pela última vez ao vivo, viva. Ela que descobriu esconderijos na garganta, que tinha uma timidez espalhafatosa, ela que no palco se transmutava, como se tivesse nascido nele ou para viver dele.

Quando ela surge e, nós já enfrentamos o enorme vai-e-vém das pessoas procurando e desprocurando o melhor lugar, é como se o mundo ficasse no ar. Não seria sua voz quem segurava os Jardins da Babilônia? Sua banda é o melhor acompanhamento possível para o apocalipse que se forma dentro do circo. Aos primeiros acordes de Partido Alto somos acariciados por um elefante, estupidificamos nossas sensações, somos joguetes nas suas mãos de unhas roídas. É como se o céu abrisse e de lá viesse uma voz dizendo: "essa é minha filha preferida", seu canto quase nos arranca da arquibancada, nos sustentamos como podemos e a cada pausa não conseguimos sequer saber o que nos atropelou, mas ela logo pega nossa mão e nos coloca no caminho errado de novo.

Ela bebe algo, lembro que também estou com sede, hipnotizado não saio do lugar, ou melhor não páro de pular no meu lugar; começam os acordes de Segundo Sol e lá vamos todos saborear o que restou da ambrosia que ela se deliciava quando morava no céu. Ela não canta Malandragem e ninguém se lembra de pedir, ela ressuscita Kurt Cobain e nós seguimos nosso mestre de cerimônias. Ela sorri, brinca, sua carótida quase explode, "Hoomeem-Pássaroo"; Cássia é a, como dizia Cortázar sobre Louis Armstrong: "alegria dos homens que te merecem". No fim restam milhares de pessoas que procuram lentamente e sem vontade a saída, cada um perdido nos seus monólogos interiores, que segue repetindo, como se estivessemos dentro das ruínas circulares de Borges, e no meio dessa conversa (ab)surda Cássia ainda está ecoando tal qual Orfeu diante do trono de Plutão e Prosérpina, tentando levar Eurídice com ele.

É NOCHE DE VERANO

Pulsas, palpas el cuerpo de la noche,
verano que te bañas en los ríos,
soplo en el que se abogan las estrellas,
aliento de una boca,de unos labios de tierra.

Terra de labios, boca
donde un infierno agónico jadea,
labios en donde el cielo llueve
y el agua canta y nacen paraísos.

Se incendia el árbol de la noche
y sus astillas son estrellas,
son pupilas, son pájaros.
Fluyen ríos sonámbulos,
lenguas de sal incandescente
contra una playa obscura.

Todo respira, vive, fluye:
la luz en su temblor,
el ojo en el espacio,
el corazón en su latido,
la noche en su infinito.

Un nacimiento obscuro, sin orillas,
nace en la noche de verano.
Y en tu pupila nace todo el cielo.

OCTAVIO PAZ

PS: Show realizado em Campo Grande/MS, no ano de 2000 - acho eu - num Circo montado do Parque das Nações Indígenas, com ingressos a R$ 6,00, parte do projeto Temporadas Populares que trouxe durante três anos shows sensacionais como esse e Ira!; O Rappa com Yuka ainda; Lenine (que não tocou pois acabou a luz); Zeca Baleiro; Chico César; Los Hermanos quando recém tinham recém-lançado o Bloco do Eu Sozinho. Projeto que acabou pois diziam que quem morava na periferia não podia ir ao shows, sendo trocado pelo Festival de Inverno de Bonito onde os periféricos, agora sim, não tem acesso nenhum.

s.o.

sábado, 1 de março de 2008

Juno


O assunto é sério, realmente sério. No nosso país ele assume ares de problema de saúde pública. Adolescentes grávidas é o que há por aqui, nesse ponto o filme acerta em cheio, o sexo é uma realidade entre os adolescentes e cada vez mais precocemente essa barreira antes quase intransponível vai se tornando banal. Corpos ainda não completamente formados. Psicologicamente longe da maturidade necessária para se criar um filho; criança que chega mudando tudo na vida da menina, o corpo, as sensações tão diversas como deixar de ser filha para se tornar responsável por uma vida. Como encontrar tempo depois para continuar a curtir as delícias da adolescência? Onde se localizar no mundo depois de ter um filho aos quatorze, quinze anos? Respostas que o filme não dá.

O roteiro do filme, premiado merecidamente com o Oscar, é sensacional, os diálogos são atuais, leves, irônicos, sarcásticos, a realidade é que foi adaptada ao paladar americano de ver o mundo. Temos, nós que conhecemos as dificuldades e surpresas que sentimos ao encontrar uma mãe-filha, no máximo que ver o filme como um entretenimento, de primeira qualidade, mas completamente longe da nossa dura verdade. Quantas jovens não são abandonadas pela família quando um fato desse ocorre? Pais intolerantes, revoltados com a "perda da honra", seja lá o que isso for, existem aos montes ainda aqui. Claro que também temos famílias que aceitam o desafio, enfrentam o fato com galhardia e aprumo, mas mesmo assim a vida de todos está irremediavelmente mudada. É questão social, isso é muito claro, meninas pobres engravidam muito mais, falta de se enfrentar esse problema de frente, conscientizar pais, mães, tocar nessa ferida já na escola, demonstrar o quanto um filho quando ainda se é tão criança não beneficia em nada nem a mãe-nova nem o novo-filho.

Mas o entretenimente é garantido, na sessão que fui notei muitos adolescentes, excitados antes, compenetrados durante, felizes ao terminar. Será que perceberam mesmo as nuances do filme? Espero que sim, a visão da Ellen Page grávida, andando como se carregasse na barriga não um filho, mas todo o peso do mundo fala muito mais que as ações tomadas por ela na ficção. Como é cativante os detalhes, como o telefone hambúrguer, a surpresa de todos na escola, a trilha sonora indie total, belezas da telona. Mas ser mãe jovem não é só fazer o sexo em si, é também depois vestir ares de fortaleza, força essa que sozinha uma adolescente ainda não tem, entra em ação a importância da família, do meio em que a pessoa convive. No filme tudo se resolve com o bom humor do texto, na vida real tudo está longe de ser assim. O filme então é excelente opção para todo mundo, até mesmo uma chave para muitos pais e mães penetrarem no hermético mundo dessas jovens esfinges modernas que nos rodeiam, ou ao menos para que pais e mães tirem dos olhos a venda da hipocrisia que vestem quando o assunto em questão são atitudes dos seus filhos.


s.o.